“Casas” de 15m2 e a incoerência biológica
Defender moradia digna significa muito mais do que ter um teto
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Recentemente vimos na mídia a divulgação absurda da construção de 116 moradias para até 7 pessoas cuja metragem total era de 15m2. Tais construções estão localizadas no Residencial Mandela, no distrito periférico do Ouro Verde, em Campinas-SP.
Até mesmo o presidente Lula sentiu-se na obrigação de condenar tais construções, o que ampliou o conhecimento das pessoas e fez com que o prefeito bolsonarista Dário Saadi (Republicanos) – pré-candidato à reeleição do ano que vem – viesse a público na tentativa de justificar, alegando se tratarem de “casas embriões”, que permitiria sua ampliação pelos proprietários.
As tais casas, cuja metragem é ridícula – e desumana – possui apenas um cômodo e um banheiro, indo contra a necessidade de moradia digna, conforme a própria ONU determina e faz parte do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 11 (quando até três pessoas partilham o mesmo quarto habitável, com uma área mínima de 9 m², além de espaços como cozinha e banheiro).4,5
Ainda que o jornalista (sic) bolsonarista Jorge Pontual tentasse vincular tais construções com o programa Minha Casa, Minha Vida do Governo Federal e foi prontamente desmentido ao vivo na Globo News, pela assessoria do presidente Lula, é importante dizer que os 15 m² da construção representam menos da metade do tamanho do imóvel para pessoas de baixa renda do programa federal, que tem 36 m². Ainda para fins comparativos, e demonstrando como são construções desumanas, as celas de um CDP (Centro de Detenção Provisória), por exemplo, medem 30 m².
Defender moradia digna significa muito mais do que ter um teto: pessoas que vivem em casas adequadas têm melhor saúde, maiores chances de melhorar seu capital humano e aproveitar as oportunidades disponíveis em contextos urbanos.
Paralelamente, quero discutir outro aspecto muitas vezes negligenciado: a ausência de áreas verdes e seu impacto na saúde das pessoas.
Mais do que isso é preciso que contextualizemos um pouco mais sobre essas áreas de construção. Não raramente, são regiões muito afastadas das regiões centrais – diria que até de forma proposital, excluindo ainda mais aqueles que já são marginalizados na sociedade – e que para isso, a retirada de toda a vegetação ocorre, tornando o local extremamente quente. Em pleno século XXI, a volta de guetos torna-se uma realidade em uma das cidades mais ricas do país.
A ausência de áreas verdes aumenta a sensação de solidão. Soma-se a isso ao isolamento provocado pelas redes sociais – ainda que pareça incoerente, nada substituiu a realidade e o contato social – e as taxas de ansiedade e depressão em uma sociedade medicada cada vez mais, a situação só piora.6,7 Mais do que nunca, a sabedoria dos povos indígenas é cada vez mais atual. E como diz Ailton Krenak, o futuro é ancestral.Em estudo científico publicado em 2022, constatou-se que a urbanização desregulada, com a retirada de áreas verdes, potencializa os efeitos e aumenta o risco de transtornos mentais, como transtornos de ansiedade, depressão e esquizofrenia. Assim, a presença de vegetação reduz a atividade cerebral na amígdala, responsável pelo estresse e potencializadora de doenças.8,9Isso porque existe uma necessidade inata do ser humano em se conectar com a natureza, na chamada Hipótese da Biofilia10, o que está sendo retirado de nossa vivência. A hipótese da biofilia afirma que os seres humanos sentem uma tendência inata de se conectar com a natureza, uma vez que essa atitude está enraizada em nossa história evolutiva.Esses desmatamentos urbanos também causam o efeito das ilhas de calor, potencializadas pela combinação de concentração de asfalto e concreto numa dada área e poluição atmosférica.11 E, como resultado, doenças respiratórias, mal-estar e estresse potencializado. 12
Vegetação, mais do que microclima local, também favorecem à manutenção da umidade em uma área menor. E, quando extrapolamos ao nível macro, lembremos que é justamente a evapotranspiração de florestas que permite o carregamento dos chamados “rios voadores”, responsáveis pelas chuvas em várias regiões, como ocorre com a Amazônia e o Pantanal, provedores das chuvas e do abastecimento fluvial, respectivamente.
Não podemos esquecer também que a previsão de seca e estresse hídrico irá dobrar até 2050, e as áreas verdes, sendo fundamentais para a manutenção do ciclo da água e proteção dos mananciais, novamente são negligenciadas.13Além disso, a própria diversidade das espécies é garantida com áreas verdes, favorecendo não apenas a manutenção de teias ecológicas, com predadores de insetos e aracnídeos, mas com a própria presença de insetos indispensáveis à polinização. O desmatamento e a retirada dessas áreas favorecem a aproximação de animais que “invadem” as cidades, como é o caso das capivaras, hospedeiras de carrapatos que, uma vez contaminados, podem transmitir a febre maculosa para os humanos – como aconteceu recentemente na própria cidade de Campinas.14
Ou revemos nossa maneira de utilizar os recursos, o que implicará na mudança do sistema capitalista e o consumismo exacerbado, ou estaremos fadados à extinção. E não importará se continuaremos a marginalizar os mais necessitados em guetos, pois de nada importará a detenção de recursos monetários quando não houver mais onde usá-lo.
A raiz de todo o problema que passamos em nível mundial, gerando fome, pobreza e desigualdades diversas, tem como único causador o capital. É inegável. E com ele, fortalece-se e sustenta-se o machismo/patriarcado, a misoginia, racismo e todas as formas de preconceito. É sabido que o capitalismo está sim com os dias contados, mas a questão é uma só: a minoria que manda e desmanda hoje, estará disposta a abrir mão de suas benesses pelo bem coletivo, mesmo sabendo que sua própria existência depende disso?
Acredito que jamais abrirão mão desse poder e é por isso que a mudança deve partir das mobilizações populares. Mas para isso, é necessário a conscientização geral de que somos a maioria que está sendo esmagada, explorada e a mais prejudicada pela burguesia. E não, não é uma fala retórica e ultrapassada. É uma realidade que coexiste ainda que tenhamos inteligência artificial e todos avanços científicos. Acabar com a fome e a desigualdade nunca foi interesse dos detentores do capital. Eles vivem da exploração e da miséria alheia.
E por isso temos que lutar e apoiar tanto o MST e MTST, que ocupam (e não invadem!) terras e imóveis que não desempenham seu papel social mas servem ao mercado de especulação imobiliária e, portanto, devem ser destinadas à reforma agrária.15 Exigir que se cumpra aquilo que dita nossa Carta Magna de 1988 é o mínimo que podemos fazer. Pressionar o Estado para que moradia digna e terra para produzir sejam destinadas ao povo brasileiro, não é nada mais do que o cumprimento da lei.A saber, em seu Artigo 6º, a Constituição Federal de 1998 estabelece a moradia como um direito social: são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Por fim, no Artigo 23 reafirma-se o dever do Estado em relação ao direito à moradia digna, como a programação de programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.15
O que não podemos admitir é que construções desumanas como as feitas em Campinas sejam uma maneira de legalizar e normalizar o absurdo. Moradia digna, com respeito às necessidades humanas e respeito ao ambiente devem ser reais e não como mera solução improvisada para findar um problema – gerando outros – ainda mais quando se almeja interesses eleitorais.
Por fim, faço uma indagação: por que, ao invés de isolar essas pessoas em regiões periféricas, não se opta pela compra de milhares de imóveis abandonados e em quase eterna desocupação, que esperam valorização imobiliária nas regiões urbanas? De acordo com o censo de 2022, há milhões de casas e apartamentos vazios em todo o Brasil.16
Seria uma alternativa mais viável, evitando-se, inclusive, os casos de corrupção por conta de superfaturamentos que novas obras geralmente estão envolvidas. Afinal, assim como não nos falta área de plantio mas a distribuição adequada para geração de alimento de verdade e não commodities, não nos faltam casas, mas o direcionamento para famílias e não para a especulação imobiliária.
*Luiz Fernando Leal Padulla é professor, biólogo, doutor em Etologia, mestre em Ciências e especialista em Bioecologia e Conservação. Autor do blog e do canal no Youtube “Biólogo Socialista” e do podcast “PadullaCast”. Autor do livro “Um irritante necessário”.
Instagram: @BiologoSocialista.
Referências bibliográficas
1. 'Casa popular' de 15m² da prefeitura de Campinas gera indignação nas redes. Disponível em: https://www.brasil247.com/midia/casa-popular-de-15m-da-prefeitura-de-campinas-gera-indignacao-nas-redes
2. Especialistas da USP e Unicamp chamam de ‘inaceitável’ casa de 15 m² em Campinas. Disponível em: https://sampi.net.br/ovale/noticias/2766990/campinas/2023/06/especialistas-da-usp-e-unicamp-chamam-de-inaceitavel-casa-de-15-m-em-campinas
3. Lula critica programa de casas de 15m² em Campinas: 'Daqui a pouco estamos construindo poleiros'. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/06/19/lula-critica-programa-de-casas-de-15m-em-campinas-daqui-a-pouco-estamos-construindo-poleiros.ghtml
4. Directrices para la Aplicación del Derecho a una Vivienda Adecuada. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G19/353/93/PDF/G1935393.pdf?OpenElement
5. Novas diretrizes da ONU para a implementação do Direito à Moradia Adequada são publicadas. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/novas-diretrizes-da-onu-para-a-implementacao-do-direito-a-moradia-adequada-sao-publicadas/23248
6. Saúde nas grandes cidades. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/reportagens-especiais/saude-nas-grandes-cidades/
7. Entenda como a poluição sonora está encurtando vidas. Disponível em: https://noticias.r7.com/saude/entenda-como-a-poluicao-sonora-esta-encurtando-vidas-22062023 8. SUDIMAC, S.; SALE, V.; Kühn, S. 2022. How nature nurtures: Amygdala activity decreases as the result of a one-hour walk in nature.
8 Molecular Psychiatry, 27: 4446-44452. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41380-022-01720-6
9. Tost, H.; Champagne, F.A.; Meyer-Lindenberg, A. 2015. Environmental influence in the brain, human welfare and mental health.
10 Nature Neuroscience., 18:142. 10. WILSON, E. O. Biophilia: the human bond with other species. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1984.
11. Aumento de temperatura em municípios com poucos milhares de habitantes é equivalente ao observado em grandes metrópoles do Brasil e do mundo. Disponível em: https://jornal.unesp.br/2023/02/24/aumento-de-temperatura-em-municipios-com-poucos-milhares-de-habitantes-e-equivalente-ao-observado-em-grandes-metropoles-do-brasil-e-do-mundo/
12. Mental health and the environment: Bringing nature back into people’s lives. Disponível em: https://ieep.eu/wp-content/uploads/2022/12/Mental-health-and-environment-policy-brief-IEEP-ISGLOBAL-2021.pdf13. Munia, H. A., Guillaume, J. H. A., Wada, Y., Veldkamp, T., Virkki, V., & Kummu, M. (2020). Future transboundary water stress and its drivers under climate change: A global study.
13 Earth’s Future, 8, e2019EF001321. https://doi.org/10.1029/2019EF001321
14. Campinas faz 'censo' e quer castrar capivaras em ação contra febre maculosa. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/06/21/campinas-comeca-inventario-de-capivaras-em-acao-contra-febre-maculosa.htm?cmpid=copiaecola
15. Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
16. Censo 2022: Brasil tem 11 milhões de casas e apartamentos vagos. Disponível em: https://apublica.org/2023/06/censo-2022-brasil-tem-11-milhoes-de-casas-e-apartamentos-vagos/
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