Carta aberta a um desembargador do Paraná

Mas o que é preconceito, Desembargador?

Mário Helton Jorge
Mário Helton Jorge (Foto: Reprodução)


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Sua Excelência Desembargador Mário Helton Jorge,

Permita, Excelência, que este humilde nordestino – sou baiano – me dirija a vossa majes... ah! desculpe, ia usando expressão errada, a Vossa Excelência no sentido de observar alguns aspectos que dizem respeito às relações entre o Paraná e o nosso pobre povo culturalmente atrasado do Norte e do Nordeste. Creio que, com isso, poderei elevar meu nível cultural a um patamar bem superior.

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Devo dizer como ponto de partida que não tenho nada contra o Paraná. Ao contrário, é um estado que admiro, já visitei muitas vezes. Cheguei a morar no Rio Grande do Sul e em São Paulo, dois estados vizinhos, além do Rio de Janeiro. Assim passei muitas vezes de ônibus, de lá para cá e vice versa, como também sobrevoei nos mesmos sentidos. Posso dizer que conheço o Paraná. Fui lá no Oeste, conhecer as belas cataratas do Iguaçu, bem como ao litoral, trafeguei pela belíssima ferrovia que leva a Paranaguá, parando em Morretes para saborear um suculento e delicioso barreado. Uma vez passei pelo centro do estado, vinha eu fugido da polícia política gaúcha – era ditadura militar – escapei por Erechim, daí a Ponta Grossa, donde conseguir alcançar São Paulo sem ser notado. Quanto a vossa capital, visitei muitas vezes. Lembro-me de algumas. Numa delas, quando do Congresso Estadual de Anistia, por volta de 1978/79, participei de várias mesas, uma delas ainda lembro e devo ter recortes de jornais a comprovar, com intelectuais de renome, entre eles o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Também pouco depois fui à segunda maior cidade de vosso estado, Londrina, a convite do escritor Domingos Pellegrini Júnior, tratando de nossa luta comum pela liberdade e pela anistia.

Me permita uma divagação, Excelência. Ao lembrar de Londrina me veio à mente a outra cidade grande de vosso estado, Maringá, lá onde há marrecos. Mas devo ser franco: eu prefiro saborear um pato no tucupi que um marreco de Maringá. É bem verdade que o pato do norte tem sua origem em povos selvagens, aliás o próprio pato deve ser selvagem, tem até uma tal de erva jambu, típica daquela região sem cultura, mas, sabe como é, como nordestino, gosto mais destes sabores ancestrais. Aliás, me desculpe, até o barreado tem sua origem nos tempos coloniais quando os vaqueiros iam pelos campos em busca dos animais criados soltos nas imensas pastarias. Não era assim?

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Mas deixemos a culinária de lado, vamos voltar ao nível cultural superior do paranaense face aos nortistas e nordestinos. Espero que o senhor não desembargue o que disse, para que eu não me veja falando o indevido. Não faça como aquele seu conterrâneo de Maringá que disse que a calúnia contra o ministro do STF foi brincadeira junina... Eu não entendi bem, mas é vivendo e aprendendo: aqui no Nordeste e no Norte gostamos muito de festejar o São João, mas o jazemos no mês de junho. Se agora mudou para abril, vamos ter que corrigir nossa ignorância e parar de arrastar pé em junho nos nossos forrós, a levantar poeira que talvez alcance o puro Paraná.

Desembargador, desculpe o mau jeito, mas eu queria fazer uma pergunta a Vossa Excelência. O senhor já ouviu falar do ENEM? Sabe quantas pessoas, na última edição, tiraram nota 1000 em redação? Teve alguma nota 1000 no Paraná? Pelo que eu soube – desculpe a ignorância dos nordestinos – foram 19 com nota 1000. E sabe quantos foram os “burros” – e certamente “mulas” também, rapazes e moças – nordestinos? Apenas 11! Êta povinho ignorante danado...

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Vamos a outra. Vamos às Olimpíadas de História. Realmente, eu sei que esse negócio de história é uma estória sem valor, pois o que passou, passou. O importante é o presente, a tecnologia, pra ganhar muito dinheiro e deixar nortistas e nordestinos cada vez mais para trás. Vejamos o que consegui apurar das últimas Olimpíadas de História, Desembargador: a quantidade de medalhas ouro/prata/bronze vão na sequência: Bahia, primeiro, 4, 8, 6 medalhas; São Paulo, o estado mais populoso: segundo, 4, 8, 4; Pernambuco, terceiro: 4, 5, 5; Ceará: 4, 2, 6. Segue-se Minas: 2, 2, 3; depois Rio Grande do Norte: 2, 1, 10. Paraná, Desembargador, o estado mais culto: com apenas 1 medalha de prata, perdeu ainda para o Piauí e Sergipe com uma de prata e uma de bronze cada um! Êta povinho nordestino que não estuda, não tem cultura...

Quero voltar à história, desembargador, para relembrar três fatos relevantes que engrandecem o povo paranaense: os Sete Povos das Missões (também chamado da República Comunista Cristã dos Guaranis), em parte foi paranaense; a Guerra do Contestado, e a resistência camponesa de Porecatu, ambos a demonstrar a valentia de seu povo em defesa da terra. São exemplos relevantes da história paranaense.

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E por falar em política, é bom que o senhor reconheça: “Porque é uma roubalheira generalizada. E isso no Paraná, que é um estado que tem um nível cultural superior ao...” Alto lá, Desembargador! Reconhecer a corrupção em seu estado é direito vosso, mas respeite o Norte e o Nordeste! E quanto a seu estado, peço que faça uma exceção, quanto aos outros governadores não boto minha mão no fogo: no Paraná tenho um xará, o Requião, é um patriota, um homem honrado, merece respeito!

Finalmente, Desembargador, gostaria de fazer uma última pergunta: o senhor já ouviu a música Maringá? E o senhor sabe quem colonizou o Norte e o Meio Oeste do Paraná? Pois é, Excelência, foram estes de baixa cultura, nordestinos! Desbravaram as matas para criar Maringá, Londrina, Apucarana e tantas outras cidades paranaenses. A música? Ora, a música se casa com a cidade, ou melhor, o nome da cidade nasce da música. A pedido do governo, com a grave seca dos anos 30, Joubert de Carvalho ao fazer a música, pensou numa personagem “Maria” da cidade de “Ingá”. Daí nasceu a expressão bem sonora Maringá, uma cabocla que numa leva deixou a cidade do Pombal, na Paraíba. A música ganhou fama, conquistou os corações, correu este imenso Brasil, muito cantada pelos nordestinos que colonizaram suas terras norte paranaenses, daí nasceu o nome da cidade. Sabia, Desembargador?

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Pois é, Excelência, os nordestinos que desbravaram grande parte de seu estado são hoje tratados como homens de pouco cultura. E depois o senhor tenta desdizer o que disse numa sessão de vosso tribunal, que vossas palavras não tiveram sentido preconceituoso. Mas o que é preconceito, Desembargador? Não é aquilo que já está concebido em nossa mente, que a gente fala naturalmente sem maior preocupação? Não é um conceito prévio que usamos no comum das vezes? Por certo o senhor não deve ter expressado este conceito em muitas outras oportunidades, nunca se dando conta de que cometia... digamos, um deslize, só o percebendo quando a imprensa pôs a boca no trombone? Mantenha o que disse, não desembargue, Desembargador. 

E por fim, permita a esse nordestino, a este humilde baiano, terra de tão pouca cultura que teve apenas um Castro Alves... um Ruy Barbosa, aquele pequenininho da cabeça grande, que um dia representou nosso país em Haia. Sobre o episódio de sua fala lá pelas “Oropa” lhe endereçaram uma quadra, se não me falha a memória, assim: “Dez minutos é tempo bastante / para um orador do mundo inteiro / porém é sovinice e revoltante / para quando falar um brasileiro.” E acrescento: especialmente um baiano. Mas por fim, finalmente, Desembargador, permita a este humilde baiano um conselho: pense duas vezes antes de falar, especialmente quando falar em público; reveja os conceitos estabelecidos em sua mente, para não ter que se humilhar depois a pedir desculpas pela besteira que falou.

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Atenciosamente,

Roberto R Martins

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