Carta aberta à Janja

"Nos últimos dias falei de você, por acaso, em uma entrevista e algumas pessoas começaram a distorcer o que eu disse", introduz Marcia Tiburi

Rosângela Silva, a Janja
Rosângela Silva, a Janja (Foto: José Cruz/Agência Brasil)


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Querida companheira Janja,

Escrevo essa carta por que nos últimos dias falei de você, por acaso, em uma entrevista e algumas pessoas começaram a distorcer o que eu disse. Como conheço a arte da intriga patriarcal, estou aqui para refletir com você sobre isso e te convido a ler, caso você tenha tempo. 

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Essa carta nasce porque um companheiro veio me dar uma lição de feminismo, tentando me opor a você. Imagine o que é uma “lição de feminismo” lançada contra uma feminista por parte de homem em pleno abuso de um “mansplaining” que ele mal consegue disfarçar. 

Sim, eu tive que escutar pérolas de prepotência e partilho parte dessa história com você, pois sei que você também está acostumada com coisas do tipo. 

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O referido companheiro – no seu lugar de privilégio de homem e, ao mesmo tempo, boneco da ventriloquacidade patriarcal - se coloca no lugar de fala de uma mulher esperando que ela fique em silêncio. Pois o homem em questão distorceu a minha fala na referida entrevista dizendo que eu estava tentando legislar sobre o seu lugar e dizer o que você tinha que fazer. Eu nunca falei isso, nem falaria, pois princípio feminista básico – pelo menos do anarcofeminismo, é respeitar a individualidade de outra feminista. O que eu falei ia além do argumento ad hominem, com o qual o companheiro me ataca. 

Meu assunto com você diz respeito ao “pessoal que é político”, outro princípio de base do feminismo que é insuportável para o patriarcado, pois quando problematizamos a posição das mulheres na vida doméstica (esse laboratório do patriarcapitalismo), mexemos na base do patriarcado. Quando avisamos uma mulher sobre jogos de poder da estrutura, ela tem a chance de se livrar desse jogo. 

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Entre o que podemos chamar de feminismo de atitude e o que podemos chamar de feminismo da consciência, entre a espontaneidade e a práxis, existe um abismo, mas as pontes que avançam sobre o abismo são construídas por nós, feministas, e não por fazedores de intrigas que são os sacerdotes do patriarcado. 

Antes de seguir, buscando um diálogo com você e com as feministas do nosso tempo, gostaria de dizer que, apesar de eu trabalhar num projeto chamado “feminismo dialógico”, está para nascer o homem que vai dizer o que é feminismo para mim. Ou melhor, esse homem não vai nascer.

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Vamos ao que eu disse na entrevista. Eu disse que, apesar de gostar de você, de admirar seu astral e sua presença pública e midiática, eu achava que você deveria renunciar ao papel de primeira-dama. Se você não fosse a Janja, se você fosse a Carla, a Maria ou a Paula, eu diria a mesma coisa. Quero dizer, minha questão não é “com você”, mas com o “lugar” da “primeira-dama”. Aliás, essa não era a principal questão da entrevista, mas o sensacionalismo pinça o que pode produzir polêmica, e cá estou eu enfrentando essa máquina de maledicência. 

Veja, às vezes, algumas pessoas me disseram que você não gostava de mim (me perguntei: quem sou eu na fila do pão para ser gostada ou desgostada por alguém como Janja). É que as pessoas querem reduzir a minha colocação a gostar-desgostar. Quando alguém disse que você não gosta de mim, eu respondi que gosto de Janja. Estou acostumada às intrigas machistas e sempre tenho resolvido as maledicências entre mulheres falando direto com as próprias, e deixando os homens maldosos na poeira da estrada como faço agora, sabendo que a raiva desse homem contra mim poderá crescer mais e mais, ainda que eu também tenha alguma esperança de que ele possa ser mais responsável e mais inteligente e, portanto, capaz de perceber o papel ridículo que ele fez e se retratar. 

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Sempre bom lembrar que, no jogo de poder masculino, nós mulheres temos que estar sempre atentas aos perigos. Eu aprendi isso a duras penas desde 2018, quando fui candidata ao governo do Rio pelo PT e já era atacada por esse des-companheiro. Conheço bem o esquerdo-machismo e os fofomachistas, fiz estágios impressionantes no campo com gente até mesmo perversa. O sujeito em questão me persegue desde a minha candidatura, espalhando interpretações sobre minha pessoa, minha vida e minha história que não condizem com a realidade, mas certamente lhe permitem o gozo da maledicência. 

Sigo agradecendo por sua atenção à minha modesta comunicação na sua direção. Sigo tentando abrir meu ponto de vista sabendo que possivelmente nem chegue a interessar a você, a essa altura você já pode ter parado de me ler. Certamente você tem coisa mais importantes para fazer do que me dar atenção e isso é um direito seu como pessoa, talvez não como primeira-dama, mas sobre isso podemos conversar. De minha parte, eu estou dando atenção ao colega do machoesquerdismo, por que me arrependo das tantas vezes em que não dei atenção a certos ataques de que fui alvo. Ataques pelas costas por gente que não têm coragem de me chamar para um debate e me olhar de frente, se tornaram comuns. 

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Me permita dizer ainda que o referido homem deveria largar do meu pé e atacar quem merece – temos toda uma direita e uma extrema-direita trabalhando com afinco para voltar ao poder. Temos que nos superar politicamente a cada dia. Se esse homem parasse de me tratar como inimiga, o que, de fato, não sou, talvez pudéssemos avançar na interseccionalidade das lutas. Ao mesmo tempo, penso que, ao me escolher, talvez, na verdade, ele possa estar sem assunto, talvez ele esteja surfando no machismo de intriga e na misoginia natural que tenta usar mulheres para criar ódio às mulheres, talvez ele esteja só querendo adular você, como muita gente que pensa que, para ter acesso a Lula, precisa passar por você. Como dizia dona Estamira, o que mais existe é gente “esperta ao contrário”, gente que trata mulheres como imbecis e otárias enquanto tenta se atravessar nos seus assuntos para aparecer. Homens ocupam lugares privilegiados através da misoginia naturalizada, ela mesma mascarada de inteligência superior masculina. 

O sequestro da opinião das mulheres, a falsa polêmica, a tentativa de reduzir o outro a um imbecil fazem parte da misoginia nesse sistema racista, capacitista e capitalista, salvo as exceções que confirmam a regra. 

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Falando desse modo, eu pretendo apenas continuar falando a verdade. É meu dever de ofício e vocação, pois sou uma professora de filosofia. Assim como Sócrates, vou seguir falando a verdade e pagando o preço desse meu gesto, antipático para muitos. Mas não vou mais pagar o preço da distorção e da mentira, por isso escrevo para você. 

Mais um aspecto antes de seguir com o que me move a essa carta. Com seus ataques, o homem que estou citando tenta fazer parecer que eu sou uma mulher burguesa. Eu preciso falar sobre isso, pois cada machista se aproveita dos personagens femininos criados nas suas cabeças maldosas para fomentar o ódio. Como se pode perceber, o homem real começa a dar lugar ao homem metonímico do machismo. O homem em questão se coloca como um filho da classe trabalhadora, como se eu não fosse. Assim, criando a falsa personagem de uma mulher burguesa, ele aparece como o não-burguês. Ele me ataca num argumento ad hominem e ainda me usa. Machistas fazem isso com os alvos que eles escolhem e, mais uma vez, eu sou o alvo. O referido homem insiste em falar que vim de família rica e burguesa, e isso é uma prova de que não sabe de onde vim. Quem fala publicamente tem que se informar melhor. Como dizia a Simone de Beauvoir há décadas, uma mulher tem sempre que se justificar, e lá vou eu mais uma vez. 

Isso me obriga a falar algo sobre meu pai, a quem dedico um livro chamado “Complexo de Vira-lata – análise da humilhação brasileira”. Meu pai era um homem pobre e, segundo ele mesmo, “um homem humilhado”. Assim como minha mãe, ele estudou até a quarta série, como muitos brasileiros. Se tornou carpinteiro e trabalhava como funcionário da prefeitura construindo e consertando escolas no interior de Vacaria, uma cidade que fica na serra gaúcha. Minha mãe era uma mulher que trabalhou tirando leite de vacas, plantando uma horta para nossa subsistência, assim como meu pai fazia, e depois fazendo tricô para vender para custear nossos estudos. Eu também fiz muito tricô para pagar meus estudos. Algo que o des-companheiro que me ataca vai detestar saber. Eu estudei com crédito educativo na faculdade de filosofia enquanto fazia artes na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – aliás, eu não sabia que esse tipo de formação não era para uma moça pobre como eu. De fato, eu desviei do caminho natural da minha classe. De modo algum era para eu ter chegado onde cheguei. Eu estudava o que queria, enquanto meu irmão fazia medicina também com o crédito educativo que, naquela época, era a versão do FIES. Todas as minhas irmãs estudaram com esse tipo de empréstimos nos anos 80 e 90. Certamente, ter estudado muito e sempre – o que faço até hoje, pois me tornei professora e assim espero seguir até o fim dos meus dias – melhorou a minha vida em todos os sentidos. Se, apesar de tudo, cheguei até aqui entre sucessos e fracassos, e penso que isso seja uma coisa boa ter chegado a algum lugar, espero que estudar e ter acesso à escola possa cada vez mais ser um direito de todos. Bom lembrar também que, se eu pude fazer uso de um direito, isso não quer dizer que eu não queira que outros o tenham e que eu não possa lutar para que outros o tenham. Dito isso, me chamar de burguesa é pura maldade de quem não me conhece. 

Creio que o homem que está sempre pronto a me atacar, não saiba e também não queria saber que eu escrevo livros nos quais tento elaborar problemas que podem nos ajudar a dialogar. 

Eu não vou comentar outros ataques que ele faz, porque a carta ficaria muito longa e em vez de ser uma carta para a primeira-dama Janja esse texto viraria um desabafo para uma amiga (talvez, quem sabe, um dia). Em tempo, o desabafo virá e, com ele, a justiça. 

O problema é que esse homem, ao tentar dar uma lição de feminismo para uma feminista como eu, e, de algum modo, para todas as outras que o leem, distorce o que eu digo tendo como pressuposto que seu lugar de mansplaining, lugar que ele ocupa como homem, é melhor do que o meu lugar como mulher que pode falar de si mesma e deve falar por si mesma. Mesmo sendo de esquerda, o que ele faz é coisa que a extrema-direita sempre fez recortando e usando minhas falas em uma artilharia pesada contra mim que se constitui numa longa campanha de difamação. Ele se mete na minha conversa sobre você. Mas ele é de esquerda e acha que pode fazer isso. 

O que ele fez é o que os homens constantemente fazem contra mulheres: criar intrigas entre elas. Na construção da intriga, ele aproveitou para se posicionar a seu favor diante do meu argumento, somo se eu estivesse contra você, e nesse ponto, criou uma falácia, a saber, a falácia do espantalho, pela qual se cria um personagem que não está em cena e não disse o que ele está falando que foi dito. 

Ora, óbvio que não estou contra você com o que eu disse, Janja, mesmo que ele assim o deseje. Como eu disse antes, meu argumento não foi ad hominem, como é o dele em relação a mim. 

Também não estou contra ele, mesmo que ele pense que estou apenas por existir, já que nunca me dirigi a ele na minha vida. Tenho milhares de outros inimigos, não escolheria quem deveria estar comigo na trincheira para atacar. Estou sim, contra a maledicência que ele dirige a mim, não é de hoje. 

Sobre o argumento ad hominem: o que eu disse sobre você não foi sobre a sua pessoa física e psíquica que eu não conheço, mas sobre a pessoa histórica que ocupa o lugar de primeira-dama e se posiciona como feminista. O que eu disse, sequer foi “contra a primeira-dama”, mas foi apenas uma crítica ao posto ultrapassado e antiquado a ser ocupado por uma mulher que, ao casar com o presidente, se torna “Primeira Dama”. Sinceramente, eu acho que esse posto não combina com uma feminista, seja ela Janja, Maria ou Paula.

Por isso, venho publicamente dizer que, caso você veja a entrevista que dei no UOL, preste atenção na minha fala. Tenho certeza que você não distorceria o que eu disse, por mais chata que você possa me achar. Me achar chata ou qualquer outra coisa nessa linha é um direito seu - e também do homem que me critica e vem me dar lição de feminismo, e, afinal, de qualquer um que esteja aí na esfera pública e queira julgar os outros por chatice. Mas o sentimento privado não tira da cena a questão séria que eu coloquei sobre o que significa manter o cargo de primeira dama. 

Irina Karamanos, a namorada do presidente do Chile, não quis ocupar esse lugar na cena do poder. Obviamente você não é a namorada do Boric e deve fazer o que quiser - como, aliás, eu disse na entrevista, onde nem citei a mulher do Boric, por sinal. Antes de ser a mulher do Lula, você também é a Janja, bom lembrar para os desavisados que querem a sua acomodação ao posto. 

É tão obvio que você deve fazer o que quiser da sua vida, que estou aqui para corroborar e repetir o que eu disse na entrevista. Embora, se eu fosse você, como eu disse, eu não ocuparia esse lugar. Mas você é você e deve fazer o que quiser, evidentemente.  

De minha parte, sou uma feminista em busca de coerência, mas não cheguei até aqui pronta. Ninguém nasce feminista, torna-se feminista. Sei que ser feminista não é, como o machista de plantão que quer me ensinar a ser feminista enquanto opera no gozo da distorção, bancar os acordos patriarcais. O machista de plantão alegou que você e seu acordo com seu marido estão acima do feminismo. Ele esqueceu um preceito básico do feminismo, que “o privado é político” como falei anteriormente. Não é em todos os lares que há acordos favoráveis às mulheres e muito menos à causa feminista. Confundir acordos entre indivíduos sob a lei do patriarcado é mais que ingenuidade quando vem da boca de um machista. O casamento sempre favorece os homens. 

Não há problema em você ser casada e querer ser casada ou não casada, mas não é sobre isso que estou falando, obviamente. Estou falando que precisamos dar um passo adiante e entender as estratégias do patriarcado para submeter e subalternizar mulheres. 

É obvio que eu não tenho nada que ver com sua vida pessoal, mas sobre sua vida pública eu posso opinar, assim como qualquer um pode fazê-lo também em relação à minha vida pública (no limite legal, o que inclui a distorção dos argumentos), mas para isso ser feito é importante conhecer a vida pública de uma pessoa. Eu conheço parte da sua, o que posso ver na internet, o livro que foi escrito sobre você. Que bacana que você existe e é uma pessoa legal. Só aplaudo. 

Contudo, sobre o posto de “primeira dama” e sobre a mística do “primeiro-damismo” já não posso falar com condescendência, pois se trata de um posto subalterno. Não posso mentir sobre isso ou dourar a pílula para parecer simpática com você. Ninguém precisa disso. 

Veja, mais uma vez, você faz um casal lindo com o Lula, nosso presidente. Não há problema nisso e não é disso que estou falando. Quero que vocês sejam felizes pela vida afora e por anos e anos. 

Na verdade, estou menos te chamando para intensificar a luta feminista, do que afirmando que o feminismo tem que avançar nesse país atrasado pelo fascismo, machismo e conservadorismo. Estou dizendo que minha fala não tem nada demais e que os machistas que destilam ódio hoje contra mim, não estão querendo enfrentar o problema de fundo que eu coloco: o da subalternidade e secundariedade das mulheres na política.

Talvez seja cedo para o Brasil que afunda sob a artilharia fundamentalista, machista e fascista da extrema-direita, defender um lugar para as mulheres que esteja para além do inessencial e subalterno, secundário e servil à qual são destinadas. Os machistas de plantão adoram ver uma mulher servil e de cabeça baixa, ou “bela, recatada e do lar” falando mansamente. Não é o seu caso, evidentemente, mas é o que esperam os que distorcem meu argumento de modo falacioso regozijando-se com falácias e esperando o cultivo da intriga.

Eu não vou ficar quieta. Já fiquei demais. 

No meu caso, tenho a obrigação de falar o que penso. 

Continuarei falando em nome da democracia.  Continuarei falando em nome do meu feminismo, quem sabe do feminismo dialógico que eu professo, que é uma promessa de vida na sociedade tanatopolítica que é o patriarcado. 

Seguirei fiel ao meu caminho, mesmo que ele não me leve ao poder jamais. 

Por fim, quero dizer que uma mulher na sua posição desperta todo tipo de afetos e como figura pública, sei que você saberá lidar com isso. 

De minha parte, desejo felicidades a você e ao seu esposo ilustre (um político que eu aprendi a admirar e respeitar), nosso presidente querido, e que você se aproxime cada vez mais da luta feminista por uma democracia radical exigida para um futuro melhor para toda a população brasileira num país ecologicamente saudável. 

Meu abraço feminista

Marcia Tiburi 

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