Cármen Lúcia e o Judiciário não são a Justiça

"O juiz Moro foi um dos artífices do golpe contra a democracia e o STF dele também participou de forma ativa e pela omissão. Ali está a raiz da degeneração e da degradação desse poder. O horizonte que se tem pela frente é o da anarquia judicial, da insegurança jurídica, das bravatas de juízes a exemplo desse que tomou o passaporte  de Lula, das conspirações na emissão de sentenças a exemplo dos três desembargadores do TRF-4, da perseguição jurídica como a praticada por Moro e da fanfarronice como a praticada por Bredas ao se apresentar portando um fuzil", diz o professor e cientista político Aldo Fornazieri

Juiz Sérgio Moro, durante evento em São Paulo 24/10/2017 REUTERS/Paulo Whitaker
Juiz Sérgio Moro, durante evento em São Paulo 24/10/2017 REUTERS/Paulo Whitaker (Foto: Aldo Fornazieri)


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Cármen Lúcia, presidente do STF, afirmou na semana passada que "o que é inadmissível e inaceitável é desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la. Justiça individual, fora do direito não é Justiça, senão vingança ou ato de força pessoal". Antes de tudo, é preciso dizer que nem ela, nem o STF, nem os tribunais e nem os juízes são a Justiça. Eles são integrantes de um poder do Estado e, como tal, no sistema republicano e democrático, são passíveis de críticas e precisam responder pelos seus atos perante a nação e perante a opinião pública. A toga não lhes confere poderes  divinos ou angelicais. Pelo contrário - com exceções, claro, porque existem bons juízes - o Judiciário brasileiro está mais próximo da encarnação do mal. 

Como se disse, o Judiciário não é a Justiça. A Constituição o define como um dos poderes da União, sendo um de seus atributos e objetivos distribuir a Justiça, algo que o Judiciário não faz bem pela sua incompetência, pela sua parcialidade, pela sua arbitrariedade, pelos seus privilégios e pela sua corrupção. Se há alguém que aplica a Justiça de forma individual, fora do direito, como ato de vontade moral ou imoral, são muitos juízes, como vários juristas vêm denunciando. A caso do julgamento de Lula é emblemático neste sentido. Mas, diariamente, juízes decidem a partir de suas presunções e fora do direito, de forma enviesada, contra os pobres, contra os negros, contra as mulheres, contra os índios e contras várias outras minorias. Se isto não é vingança, é perseguição e é aplicação de força pessoal, respaldada por um Estado injusto. 

No Brasil, mal se tem acesso ao Judiciário. E ter acesso ao Judiciário não significa ter acesso à Justiça. Pelo seu caráter elitista, pervertido e corrompido, o Judiciário é um obstáculo ao acesso à Justiça. No Brasil, definitivamente, o Judiciário não garante a tutela jurisdicional efetiva aos direitos dos cidadãos, pois somos uma sociedade em que a imensa maioria não tem direitos garantidos. Ter acesso à Justiça, segundo doutrinadores de renome internacional, é um direito humano básico e preeminente e requisito fundamental de um sistema jurídico modero e igualitário que não se acomoda na mera proclamação dos direitos, mas que se empenha para garanti-los. Isto o nosso sistema não faz. 

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Se Cármen Lúcia quis se referir ao Judiciário quando falou em Justiça, também se engana. De John Locke, pai do liberalismo moderno, aos Federalistas, de Henry David Thoreau a Martin Luther King e tantos outros, o direito à resistência e à desobediência civil a leis injustas e a poderes arbitrários é um direito consagrado no pensamento liberal-democrático dos Estados modernos e é uma forma de exercício da cidadania. No Brasil, temos várias leis injustas e os poderes, incluindo o Judiciário, degradados e perversos, a serviço de uma elite predatória. Locke conferiu estatuto de dever a desobediência a poderes arbitrários, arbítrio que se vê em muitas decisões do STF e de vários juízes. 

O STF não merece respeito porque não se dá o respeito. O STF agride a democracia de várias formas: magistrados são assessores informais do presidente da República a quem julgam; ministros do STF não se respeitam entre si, ofendendo-se mutuamente; o Tribunal é uma casa da mãe joana, sem regras, sem colegiado, funcionando sob a batuta do arbítrio individual, com a discricionalidade de um ministro poder paralisar um processo indefinidamente com um pedido de  vistas; muitas de suas decisões seguem, não a lei e a Constituição, mas a vontade arbitrária aplicando decisões diferentes para casos semelhantes e assim por diante. O STF não merece respeito porque não respeita os cidadãos, as leis e a Constituição. 

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O Judiciário é um poder notadamente corrupto. Juízes como Moro e os desembargadores que julgaram Lula, assim como o juiz Bredas, que se apresentam como paladinos do combate à corrupção, são moralistas sem moral. Todos eles recebem acima do teto constitucional e lançam mão de privilégios inescrupulosos e inaceitáveis, que ofendem a consciência nacional e a decência pública. O auxilio moradia é expressão da mais degradada e inescrupulosa forma de privilégios de uma casta, que merece repulsa pelo seu caráter odiento. 

O salário normal dos juízes já  os coloca na faixa dos 1% de privilegiados, cujos rendimentos são mais do que 36 vezes superiores aos dos 50% que integram a população mais pobre do país. A renda média dos brasileiros é de R$ 1.242. Cem milhões vivem com até um salário mínimo. Já 90% têm renda inferior a R$ 3.300. O valor do auxilio moradia dos juízes é de R$ 4.377, fora os outros privilégios, chamados penduricalhos. Ou seja, somente esse auxilio é superior à renda de 90% dos brasileiros. Trata-se de um crime, de uma violência inaceitável contra a sociedade brasileira. Trata-se de um vergonhoso escândalo praticado por muita gente que tem casa própria. Mesmo que não a tivessem, o auxilio não se justifica porque é uma imoralidade, uma agressão ao interesse público. Esses privilégios todos, nas diversas formas de penduricalhos, atentam contra o  princípio da moralidade pública inscrito na Constituição. Portanto, não são só imorais, mas também ilegais, pois se algum dispositivo os abriga, ele inconstitucional. 

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Anarquia judicial

O que se tem é uma profunda crise de legitimidade do Judiciário, que funciona praticando graves irregularidades: mantém presas pessoas que não deveriam estar presas, violando direitos; muitos juízes não julgam conforme o direito, mas segundo sua vontade arbitrária; muitos juízes são racistas e preconceituosos, ministram uma justiça contra os pobres e protegem os ricos; o Judiciário é incapaz de garantir uma tutela efetiva dos direitos dos cidadãos; o Judiciário é caro, moroso e ineficaz; juízes constituem uma casta de privilegiados, ofendendo os princípios republicanos e democráticos da Constituição; vários juízes, inclusive ministros do Supremo, violam recorrentemente a Lei Orgânica da Magistratura; o STF não só não vem exercendo o controle constitucional na atual crise, mas viola a própria Constituição em várias decisões. 

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Isto tudo já não são formas de ativismo judicial. Trata-se de um poder degradado, que degrada a democracia e se autodegrada a si mesmo. O STF é o carro-chefe dessa degradação. Degradação que se alastra para as esferas inferiores, onde juízes de primeiro grau passaram a buscar a fama, destruindo a prudência, julgando com critérios midiáticos, ideológicos e moralistas. Ao se revelarem moralistas sem moral, por serem beneficiários de privilégios que são formas de corrupção, passam a ser alvos do desprezo e do ódio da opinião pública, deslegitimando a instituição que deveria ser a garantia do funcionamento legal e constitucional do país nesta grave crise política. 

O juiz Moro foi um dos artífices do golpe contra a democracia e o STF dele também participou de forma ativa e pela omissão. Ali está a raiz da degeneração e da degradação desse poder. O horizonte que se tem pela frente é o da anarquia judicial, da insegurança jurídica, das bravatas de juízes a exemplo desse que tomou o passaporte  de Lula, das conspirações na emissão de sentenças a exemplo dos três desembargadores do TRF-4, da perseguição jurídica como a praticada por Moro e da fanfarronice como a praticada por Bredas ao se apresentar portando um fuzil. Se a perda da sacralidade pelos homens e mulheres de toga é um ganho para a cidadania, a anarquia judicial é um estímulo crescente para a violência social e poderá sê-lo para a violência política, pois as instituições mediadoras estão desmoralizadas.

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