Carlos Jurandir: despedida tardia, mas necessária
Marcelo Auler, do Jornalistas pela Democracia, faz referência ao jornalista falecido Carlos Jurandir Monteiro Lopes. "Mal teve tempo de se beneficiar de uma recente conquista: a revisão de sua aposentadoria especial", afirma. "Alguns ex-chefes, que ao serem chamados a testemunhar a seu favor, deram depoimentos que só o prejudicaram", relata
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Por Marcelo Auler, em seu blog e para o Jornalistas pela Democracia
Há um mês, em 06/03, aos 78 anos (completados em outubro), o paraense Carlos Jurandir Monteiro Lopes – quinto-anista de Medicina, jornalista, escritor, músico – nos deixou, após 34 dias internado no Hospital Miguel Couto (Zona Sul do Rio). Não foi acometido da COVID-19. Um tumor no pâncreas, que ele imaginava contornado, o enganou. Dois dias antes de sua situação se complicar, viveu a expectativa de uma alta que não ocorreu. Do hospital saiu no caixão, para um enterro às pressas, providenciado por Jurema, sua companheira nos últimos 26 anos. Na presença de pouquíssimos familiares, entre as quais sua irmã, que veio de Manaus, e a cunhada, hoje residindo em São Paulo.
Pouquíssimos amigos souberam de sua passagem, nenhum deles na data do ocorrido. Não houve tempo de comunicá-la. Nem mesmo obituário, como costuma acontecer, foi publicado. Jurema também não quis expor a morte no Facebook, evitando levar a notícia aos conhecidos mais idosos de forma impessoal. Preferiu poupá-los.
“Jura”, maneira carinhosa como alguns o tratavam na década de 1970, se foi sem a despedida merecida. Mal teve tempo de se beneficiar de uma recente conquista: a revisão de sua aposentadoria especial. Revisão muito aquém da que desejava e pela qual vinha lutando insistentemente há 21 anos. Brigou por uma aposentadoria com salário de repórter-fotográfico especial. Nos autos do processo calcularam esse valor em pouco mais de R$ 12 mil.
O máximo que conseguiu, graças, inclusive, a uma antecipação de tutela determinada pela desembargadora Simone Schreiber, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, foi majorar sua antiga aposentadoria de pouco mais de R$ 2 mil para R$ 3.354, em agosto de 2019. Valor que tinha como referência o longínquo ano de 1996.
O reajuste – que demorou a lhe ser creditado – só ocorreu por ter a desembargadora atentado para o risco da situação. Consta da decisão dela, onde registrou que o debate judicial se arrastava por mais de duas décadas.
“A discussão judicial acerca sobre o valor correto do benefício já perdura mais de 21 anos, o autor conta atualmente com quase 78 anos de idade e a determinação de complementação do laudo pericial afastou momentaneamente a expectativa de um provimento jurisdicional final acerca da matéria em debate, fatores que evidenciam o perigo de dano no caso concreto.”
Esta luta que Jurandir travava nos bastidores o tornou um homem magoado. Inclusive com relação a alguns ex-chefes, que ao serem chamados a testemunhar a seu favor, deram depoimentos que só o prejudicaram. Mágoa também com amigos de outrora, que ele considerava que o abandonaram. Ou mesmo o traíram.
Dentre as mágoas que carregava, talvez a principal delas relacionava-se ao jornal O Globo. Foi na antiga redação da Rua Irineu Marinho que nos conhecemos no ano de 1976, quando de minha meteórica passagem por ali, onde por nove meses estagiei. Fomos demitidos juntos – ele em 23 de agosto, eu, no dia seguinte. Por conta de uma reivindicação salarial de toda a redação.
Uma redação recheada de colegas que se transformaram em “feras” na profissão. Ou mesmo fora do jornalismo. Eu era o foca, com pouco mais de dois anos de experiência, vindo da Rádio Globo.
Uma época em que a categoria se uniu, inicialmente na briga contra a ditadura militar e contra a censura. Colegas eram presos e torturados. Outros permaneciam trancafiados. A briga contra a ditadura nos juntou e nos fortaleceu. Dessa união surgiram as reivindicações por melhores condições de trabalho. Uma luta que, dois anos depois – em julho de 1978 – nos faria retomar o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro das mãos do pelego José Machado.
Em O Globo, a mobilização começou no início de 1976. Na briga com o concorrente Jornal do Brasil, então carro chefe do jornalismo do Rio de Janeiro, os chefes na redação da Irineu Marinho nos exigiam maior produtividade. Mas não ofereciam condições.
Um levantamento mostrou que em 19 meses nada menos do que 35 profissionais tinham deixado o jornal e apenas 11 (menos de um terço dos que saíram) foram contratados. Estas vagas não preenchidas correspondiam então a uma economia de Cr$ 130.200,00 (cruzeiros, moeda da época) mensais. O salário mínimo de então era de Cr$ 768,00.
Um abaixo assinado cobrava reajustes e o pagamento dobrado dos domingos trabalhados. Tal como previa clausulas antigas dos acordos salariais entre sindicato da categoria e dos patrões. Descobriu-se, porém, que parte da “economia” gerada com vagas aberta tinha sido distribuída entre chefes e alguns poucos repórteres.
O abaixo assinado, porém, nem chegou a ser entregue às chefias pelos dois jornalistas de O Globo que tinham mandato sindical, consequentemente, imunidade: o diagramador Fichel Davit Chargel e o repórter Domingos Meirelles. Ouviram de Henrique Caban, o segundo homem mais forte na redação, em uma reunião na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que se o recebesse demitiria quem o endossara.
Surgiu daí a ideia da reportagem no então jornal alternativo O Movimento (Edição nº 60 – data de capa 23/08/76). Foi redigida em uma noite a seis mãos – Meirelles, Jurandir e eu – na casa de uma namorada de “Jura”, na Rua Paissandu, bairro do Flamengo. O jornal começou a circular no sábado, dia 21. Já na segunda-feira à tarde houve a demissão de Jurandir. A minha ocorreu no início da tarde de terça-feira. Meirelles, com mandato sindical, não podia ser demitido.
As duas demissões geraram um dos mais nobres gestos que conheci ao longo dos meus 46 anos de profissão. Partiu do então redator da editoria de Geral de O Globo, Aguinaldo Silva. Hoje, à profissão de jornalista ele acumula os títulos de escritor, roteirista, cineasta e tele novelista. Um dos melhores texto que conhecemos à época. Mas, acima disso, destacava-se o seu caráter excepcional, como demonstrou na tarde daquele dia 24, ao chegar para trabalhar.
Antes de sentar-se defronte da velha Remington que utilizávamos, questionou ao editor Iran Frejat: “Quero saber se devo sentar para trabalhar ou se também estou demitido?”. Diante da surpresa da pergunta, esclareceu:
“Vocês demitiram dois colaboradores de O Movimento por conta de uma reportagem sobre O Globo. Não sou colaborador, mas editor de O Movimento e não abro mão do meu direito de escrever, fora da jornada de trabalho em O Globo, o que quiser, onde quiser. Quero saber se posso sentar para trabalhar, ou se também me demitirão?”.
Silva não foi demitido. Marcou posição junto a todos os colegas de então. Inclusive junto a Jurandir, que o resto de sua vida o teve em alta consideração, como atesta Jurema, sua companheira.
Relembro tudo isso, um mês depois da passagem de Jurandir, na véspera do 7 de abril em que comemoramos o Dia do Jornalista, porque se trata de uma parte da história do jornalismo fluminense. Das muitas lutas que os jornalistas tiveram, com a participação direta dele. Ativamente. Até a mágoa e a decepção o abaterem.
Nessa data homenageio o velho amigo Jura, lamentando de não termos realizado os encontros que eu gostaria. Com toda a sua mágoa, ele ficou recluso.
Não quis sequer participar, em 2019, da luta pela retomada da ABI, quando um grupo de jornalistas destituiu Meirelles da presidência da entidade. Foi por conta de Meirelles que ele também se afastou da entidade onde militou por muitos anos. Não acreditava mais. Desconfiava de tudo. Mas jamais será esquecido. Descanse prezado Jura.
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