Cadeirada

Chegou, francês, no horário. Servi-lhe o vinho ansiando por aprovação. Não quis o tira-gosto. Bebeu meia taça. E, pretextando o horário da reserva, mencionou que deveríamos nos apressar. Em resumo, cagou para o vinho caríssimo e para os acepipes que eu havia preparado

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Em Paris, há uns dez anos, por circunstâncias agora irrelevantes, fui convidado por um francês da elite, embora militante do Partido Socialista, para jantar. Passaria para me buscar.

Sabendo-o reputado apreciador de vinhos, caprichei. No Bon Marché comprei um naco de patê de fígado de pato e no cavista pedi um bom vinho. Não fui compreendido adequadamente. Trouxe-me sugestões de garrafas tão caras que teria que vender um rim. Sem querer passar recibo de minha inata, ancestral e atávica pão-durice, bufei para parecer afrancesado e perguntei por algo menos sofisticado. Adorei minha escolha da palavra. Foi a vez dele bufar. Perguntou-me quanto queria gastar, por um bom vinho, enfatizando o adjetivo esticando-lhe a vogal. Sou estrangeiro mesmo, sem-vergonha, e fingindo displicência informei, 80 euros. Valor absurdo, daria para comprar com esse valor uma dúzia dos que costumava beber. Bufou novamente, abriu um sorriso artificial e me trouxe uma garrafa que estava em oferta. De 122 por "apenas" 96 euros. Que vá.

Em casa arrumei as coisas, abri a garrafa para o vinho respirar, seguindo as orientações do somelier, cortei a baguette, os pepininhos em conserva, os frutos secos, arrumei os pratinhos e talheres.

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Chegou, francês, no horário. Servi-lhe o vinho ansiando por aprovação. Não quis o tira-gosto. Bebeu meia taça. E, pretextando o horário da reserva, mencionou que deveríamos nos apressar. Em resumo, cagou para o vinho caríssimo e para os acepipes que eu havia preparado.

Recolhi as taças, arrolhei a garrafa, guardei os trecos de geladeira. Tinha uma hóspede, ainda na rua, mochileira, que passava por Paris naqueles dias. Não queria deixar bagunça.

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Descreveu onde iríamos, Automóvel Club de Paris, no caminho. Era um prédio lindo, em pedra, na Place de la Concorde. Parecia um museu. Expunha-me minha ignorância ao falar sobre os pintores e sobre os retratados nas telas, molduras enormes, que ladeavam corredores amplos. Elevador com ascensorista, roupas com botões, luvas brancas.
No terceiro andar, restaurante. Os garçons chamavam-no pelo nome. Reverentes.

Entrada, prato principal, sobremesa e café. Tratamos do que motivara o convite. Ao final, me propôs uma visita ao resto. Amplas salas com mesas de sinuca, uma delas sem caçapas. Salas de leitura, vazias àquelas horas, mesas de carteado. Tratava-se de um clube masculino, explicou, muito seleto. Um lugar para ficar em silêncio, ler os jornais do dia e, claro, sorriso maroto, falar de negócios e conspirar.

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Na saída encontrou com dois outros sócios. Falaram mal do Sarkozy, presidente à época, e deitaram falação sobre os sindicatos e o perigo comunista. Uma gente nojenta.

Hoje lendo sobre a cadeirada em um fascista no Rio de Janeiro lembrei-me dessa história. Compreendo o agressor. É dos meus. Faltou pouco para que tivesse reação semelhante aquela vez.

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Nos despedimos, combinamos outro encontro para dali a alguns dias e preferi voltar caminhando para pensar no que havia vivenciado. Era um mundo estranho o daquela gente. Muito estranho.

Chegando em casa tomaria aquele vinho maravilhoso ignorado pelo francês. Causo pensado, bem-intencionado.

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Encontrei minha hóspede lavando a louça. Contou-me seu dia, batendo pernas, e que jantara ali mesmo. Um sanduíche. Ah, e tomei aquele vinho que estava aberto, não queria incomodar, nem abrir garrafas fechadas. Fiz bem?

Pela segunda vez em poucas horas tive vontade de dar uma cadeirada em alguém.

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Fez bem.

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