Cabo Anselmo, o traidor maior na ditadura
Nesta semana, a revista Época publicou uma boa reportagem do repórter Danilo Thomaz. O título já indicava o que viria: “Cabo Anselmo, famoso agente duplo da ditadura, agora é palestrante de direita”. Em Cuba, segundo o Cabo Anselmo, comeu ‘muita lagosta, peixe’, conheceu intelectuais cubanos contrários à revolução castrista, trabalhou nas plantações de cana-de-açúcar e ouviu os discursos de Fidel
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Nesta semana, a revista Época publicou uma boa reportagem do repórter Danilo Thomaz. O título já indicava o que viria: “Cabo Anselmo, famoso agente duplo da ditadura, agora é palestrante de direita”. No interior do texto, Danilo Thomaz escreveu sobre a fala do palestrante:
“Em Cuba, segundo o Cabo Anselmo, comeu ‘muita lagosta, peixe’, conheceu intelectuais cubanos contrários à revolução castrista, trabalhou nas plantações de cana-de-açúcar e ouviu os discursos de Fidel.
Depois de Cuba, o relato de Cabo Anselmo mudou de rumo. Não abordou sua volta ao Brasil, em 1970, como membro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Nem os seis companheiros da VPR que delatou e que seriam mortos em Pernambuco em 1973 — incluindo sua mulher, a paraguaia Soledad Barrett, que estava grávida. Sim, ele delatou a mulher grávida...
Ele se referiu, então, em sua apresentação ao Direita São Paulo, à doutrinação marxista. Segundo ele, ‘a maior obra de engenharia mental’, a da União Soviética, ‘só foi superada em um país chamado Brasil’. O problema está nos ‘38 anos de gramscismo nas escolas’...
Cabo Anselmo explicou como se estivesse em mãos com a cartilha da antiga Tradição, Família e Propriedade (TFP), grupo ultraconservador católico. ‘O espírito crítico é das pessoas que tiveram uma boa formação familiar e que se sentem na presença de Deus’, afirmou o homem que delatou a própria mulher. Voltou então aos militares. ‘Os serviços de informação distorcem tudo para que a imagem dos generais pareça bonitinha matando um monte de gente’, disse, como se não houvesse delatado cerca de 200 pessoas ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops)”.
Esse palestrante da direita brasileira, conhecido pelo nome universal de Cabo Anselmo, creio ter podido transformar em personagem de uma ficção tão real que se confunde com ele próprio, espero. Ele, ainda que contra a minha vontade, tem ocupado boa parte de minhas preocupações de escritor. Apareceu primeiro em "Soledad no Recife", quando narro o conflito entre ele e sua máscara, que se apresentava como Daniel para os socialistas em Pernambuco:
“Daniel é um homem de 30 anos em 1972, cabelos compridos, cabeleira dividida ao meio, bigodes finos, com um sorriso de esboço, olhos entrecerrados, parece, diante do flah. Ele é o marido de Soledad e se encontra em uma pequena festa de aniversário da amada esposa, entre religiosos brasileiros e norte-americanos. Há um desalinho nos cabelos, um penteado ao vento, que cai como uma luva no modo de ser em 1972. Suas orelhas, que se tornaram famosas pela semelhança a orelhas de morcego, se escondem, para assim deixar o dono mais formoso. Esse retratado luta contra o Anselmo por trás da máscara, que somente cai, nos traços exteriores, pelas retiradas dos longos cabelos, do bigode e do ar brincalhão, simpático. Anselmo, por trás, dirige muito contrariado o rosto de Daniel, por deixar a pista dessa máscara. Já o conflito entre retratado e retratista, nesse flash, se dá fora do terreno comum da pose, que artificializa o natural da pessoa. O mascarado, ainda que obrigado a se mostrar na máscara, dirige o fotógrafo, porque ele, personagem, escolhe o ângulo, a direção e o momento da fotografia. Mas o fotógrafo, por força da reprodução mecânica, química, da película contra a luz, ainda assim nos permite uma pequena viagem nesse rosto digno do mestre Julião, o artista das caras do carnaval de Olinda.
As sobrancelhas, que seriam redesenhadas com mais pelos em cirurgias plásticas depois de Soledad, aqui ainda são ralas e estreitas, sem que se arqueiem como um risco de boneco de desenho. Os olhos ainda são os dos mestiços de Sergipe, vindos de sangue índio. Mas então ocorre esta descoberta: há um deserto de humanidade entre as órbitas dos olhos e a boca. Há uma superfície batida sem traços de gente, de qualquer gente, e de tal maneira que, ao se relacionar com a região da testa, faz os olhos de índio se tornarem fendas, meras aberturas no papel machê, por onde Anselmo nos vê pelos buracos rasgados da máscara Daniel.”.
Uma intelectual brasileira que o conheceu em Cuba assim comentou sobre o trecho acima:
“É assustadora a descrição. Conheci o Cabo Anselmo. Eu era criança e tem tudo a ver com ele, assim como as orelhas de morcego. Meu Deus, é uma história de horror que parece não ter fim. Quando chegamos ao Brasil éramos seguidas por um tipo que eu conhecia a voz, mas o rosto era diferente. Tratava-se deste ser abjeto soube depois que ele mostrou o rosto em reportagens”.
Em meu romance mais recente, “A mais longa duração da juventude”, eu o retomo, de passagem, ao narrar o seu papel ao lado da pessoa/personagem inesquecível Soledad Barrett:
“Em mais de uma oportunidade, a pessoa de Daniel, ou do Cabo Anselmo, o personagem da traição, me escapou por entre os dedos. Em primeiro lugar, porque vê-lo como um animal, um porco, indivíduo covarde, traiçoeiro, cínico, monstro de egoísmo e simulação, nessas qualidades que de fato lhe pertencem, vê-lo assim não explica o mal que tem causado até hoje. Falar que um homem é um monstro congela a investigação, porque o qualificador se satisfaz no insulto, a saber, “ele faz tais coisas porque é um monstro”. Ah, então estaria explicado. E não está. Em segundo lugar, ele tem escorregado à compreensão porque é da sua natureza ser escorregadio, ter o domínio da ambiguidade, de agradar para obter favores, de apunhalar no escuro e pôr a culpa em terceiros, de se mostrar como um indivíduo que fala jargões, que soam à semelhança de música aos ouvidos que ele conquista. Ele é multiforme, camaleão de muitas peles. Ardoroso socialista com socialistas, assim como artista, pintor com donos de galerias, fotógrafo com críticos de cinema. Alternativo, hippie com jovens largados que só querem um bom fumo e desprezam o mundo careta. Tapeceiro e trapaceiro, por outro lado é cínico, despudorado, moleque entre policiais torturadores, de quem se tornou inseparável amigo. As suas múltiplas faces de sobrevivência são como bolas de sabão. Onde pegá-lo por entre tanta espuma?....
Aqui, na primeira revelação, os militantes ainda não o alcançavam. É que, como nuvem de embaraço a confundir a visão do seu caráter, estava a sua companheira Soledad, a suave guerreira. Ela nem precisa pedir licença para entrar nesta página. Vem e se impõe, logo ela, que não gostava de se impor ou se destacar.
Na memória, a sua imagem volta em preto e branco ou sépia. Em uma ampliação fotográfica, o sépia. O preto e branco na penetração de um sonho. Ela é a mulher pretendida por mim e outros militantes naqueles anos. Há um sentimento de delicadeza que nos invade. Eu a vejo no quintal da casa de Marx, em Jaboatão. Cheia de uma beleza que não desejava chamar atenção, me ocorreu. Então ninguém podia imaginar que a visão das suas pernas, que ela nos furtava com túnicas, calças jeans, saias longas, cobriam o trauma de cruzes nazistas em cicatriz, gravadas à força em suas coxas no Uruguai. No entanto, a aparência de pudor era superficial, porque o furto e a negação para os olhos não detinham toda a Soledad, feminina plena do rosto nos seios e pessoa. Há sempre um tom da verdade que busca o núcleo sensível da imagem em sépia. Toca no músculo mais vivo, ponto delicado....
Soledad, a neta de Rafael Barrett, é uma revolucionária total, da política à cama e costumes. Mas a nossa brava e incauta mulher não sabe, logo ela, tão provada em sete países, do Paraguai ao Brasil passando pela Argentina, Chile, Uruguai, Cuba e Rússia. A nossa incauta guerrilheira não adivinha, naquela cegueira típica dos militantes para quem o mundo se reserva no ideal, no altar de Marx, Engels e Lênin. A nossa pura guerrilheira não adivinha que Anselmo/Daniel adota jogos duplos ou triplos com todos. Ou seja, ele é um animal que sobrevive com a cor do ambiente e da conveniência. Sabe mentir e fazer de idiota as pessoas com quem vive, nele isso é um sistema organizado. Então ele a faz de bola, de joguete, quando a chama para cúmplice na fala diante do pintor:
- Coisas de homem, Sol.
E lhe dá uma piscadela, um sinal de olho oblíquo que aponta para o pintor: “este ao meu lado é um macho típico, entendes?”. Mas se fores comigo, amor, o teu encanto irá destruir a atenção para minhas palavras. É mais um falsa explicação, ele afasta Soledad do lugar para onde vai esta noite, ao mesmo tempo – este é o caráter do camaleão, mentir com a pele que se transforma conforme a mudança do meio -, ao mesmo tempo que mente, na sua insinuação há um mote da verdade. A saber, ele usa Soledad para legitimar o seu papel na esquerda, ele usa Soledad para encontros onde quer mostrar um casal comprometido na luta, usa a beleza de Soledad para legitimar os abusos, as impropriedades teóricas que ele recita entre militantes. Isto é, as palavras de Daniel/Anselmo, mesmo para o nível de um homem de esquerda de cultura mediana, são desprovidas de substância. O crédito arrancado para elas vem dos militantes que já perderam a noção do real, ou que admiram a verdade da sua companheira. Se ele está com ela, deve ser um homem da revolução. E a favor da própria farsa, ele insinua a origem ilustre, intelectual e socialista de Soledad”
Esse é um pequeno trecho de “A mais longa duração da juventude”. O romance então passa por uma descoberta sobre o Cabo Anselmo que eu não sabia. E não quero estragar neste momento.
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