BRICS: a Geoestratégia por trás da Nova Geoeconomia
O grande risco do Brasil no atual cenário mundial provém de sua situação política interna e da cegueira estratégica de uma elite neocolonial que aposta obtusamente na volta a um passado de dependência e fragilidade
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Quando o economista do Goldman Sachs, Jim O´Neill, cunhou, em 2001, o acrônimo BRIC, referindo-se aos megapaíses emergentes Brasil, Rússia, Índia e China, o termo não passava de uma expressão vazia, um mero exercício intelectual que pretendia denotar a crescente importância desses países para os investidores das nações mais desenvolvidas e seu potencial de gerar bons negócios para as firmas das grandes nações industrializadas. Os BRICs eram apenas uma nova fronteira de investimentos que se abria, no quadro de uma geoeconomia rigorosamente dominada pelos mesmos players de sempre.
Mal sabia ele que, 14 anos depois, em Ufá, Rússia, os BRICs, agora transformados em BRICS, com a adição da África do Sul, já seriam um importantíssimo e atuante bloco, que vem transformando a velha geoeconomia mundial e revolucionando a arquitetura financeira internacional.
Com efeito, na recente cúpula realizada na cidade fundada por Ivã, o Terrível, os BRICS fizeram algo que era impensável há uma década. Eles concretizaram seu próprio banco de investimentos, o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS (NDB), e seu próprio Arranjo de Contingente de Reservas (CRA) para ajudar países em dificuldades. Criados na Reunião de Fortaleza, eles agora passam a operar. Os BRICS são, hoje, um bloco institucionalizado, que atua com desembaraço sobre a ordem mundial.
Esses dois arranjos financeiros não surgiram por acaso. Eles sugiram de uma necessidade: as velhas instituições multilaterais surgidas no longínquo ano de 1944, em Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, já não conseguem lidar com os desafios postos pela nova geoeconomia mundial. A UNCTAD, agência especializada da ONU para o comércio e o desenvolvimento, estima que os países em desenvolvimento precisariam de US$ 1 trilhão para aprimorar a sua infraestrutura. FMI e Banco mundial são incapazes de responder a esse desafio.
Afinal, trata-se de instituições esclerosadas, cuja governança não incorpora os interesses e os anseios dos novos atores globais. Elas continuam nas velhas mãos das antigas potências, agora fortemente atingidas pela crise mundial. Para se ter uma ideia, a China, segunda economia mundial, tem menos votos no FMI que o Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Além disso, são organismos dominados por obsoletas ideias paleoliberais, e exigem condicionalidades draconianas para fazer empréstimos.
A tentativa de abrir mais espaço para os países emergentes nessas instituições multilaterais esbarrou no Congresso dos EUA, o qual até hoje não aprovou a modificação nas cotas e no sistema de votação do FMI e do Banco Mundial. Os EUA e a Europa continuam a ser seus mandantes privilegiados.
É uma situação absurda. Afinal, os BRICS têm 42% da população mundial e 26% do território do planeta. São responsáveis por 23% da economia mundial e 15% do comércio internacional. Não bastasse, eles detêm 75% das reservas monetárias internacionais. Além disso, os BRICS foram responsáveis por 36% do crescimento da economia mundial, na primeira década deste século. Com a recessão nos países mais desenvolvidos, esse número pulou para cerca de 50%, mesmo com a desaceleração recente do crescimento desse bloco.
Em outras palavras, a importância dos BRICS não é só avassaladora, como vem crescendo ano a ano, mesmo com a crise tendo se abatido recentemente sobre seus membros.
Enganam-se, contudo, aqueles que consideram os BRICS somente uma associação de caráter econômico. Na realidade, com a nova geoeconomia, na qual os BRICS são grandes atores em ascensão, cria-se também, inexoravelmente, uma nova geopolítica e uma nova geoestratégia.
É aí que a coisa se complica e surgem as resistências e as críticas ao bloco.
Por trás da nova geoeconomia, há uma surda luta geopolítica e geoestratégica.
A China está passando por um processo de transição econômica que inclui uma calculada desaceleração. A economia chinesa, baseada em investimentos volumosos e em exportações de manufaturados, tem atualmente excesso de capacidade instalada em muitos segmentos econômicos (construção civil, energia, etc.) e precisa refazer a sua estratégia econômica, face à desaceleração do comércio mundial.
Nesse sentido, a China vem fazendo um duplo movimento. Primeiro, aumentar o consumo doméstico, de modo a compensar o baixo dinamismo do comercio mundial.
Segundo, e mais importante, reduzir a sua dependência em relação ao dólar e sua exposição às crises norte-americanas, face às suas gigantescas reservas nessa moeda, diminuindo a hegemonia do dólar norte-americano como grande meio de troca mundial e como reserva internacional de valor.
A criação do NDB e do CRA e a expansão do banco da China, bem como os maciços investimentos desse país no exterior são parte de um processo que troca investimentos em títulos do tesouro americano (reservas) por investimentos em infraestrutura em países em desenvolvimento. Com isso, a China não apenas assegura o afluxo de commodities e influência geopolítica, como prepara as condições para que o renmimbi seja uma moeda mundial, competindo com o dólar.
Outra disputa surda, mas intensa, que envolve o BRICS tange ao domínio da Eurásia.
Em 1997, Zbigniew Brzezinski, scholar extremamente influente, que fora assessor presidencial para assuntos de segurança nacional no período de 1977 a 1981, publicou, na Foreign Affairs, um artigo intitulado Uma Geoestratégia para a Eurásia, que já antecipava algumas teses de seu livro O Grande Tabuleiro de Xadrez.
Nesse artigo, ele argumenta, com razão, que a Eurásia é o eixo geoestratégico do mundo, já que esse supercontinente, além concentrar boa parte do território e dos recursos naturais do planeta, conecta os dois grandes polos econômicos do mundo além dos EUA, a União Europeia e o Leste da Ásia. Para Brzezinski, é vital que os EUA tenham o controle desse supercontinente, caso queiram permanecer como a única e inconteste superpotência.
Pois bem, a geoestratégia concebida por Brzezinski implicava várias ações de longo prazo concomitantes. Em primeiro lugar, o fortalecimento da Europa unida, sob a liderança dos EUA. Para tanto, Brzezinski já sugeria, inclusive, a celebração de um tratado de livre comércio transatlântico, como o anunciado recentemente. Em segundo, o fortalecimento das novas nações independentes da Ásia Central e do Leste Europeu, que surgiram após o colapso da União Soviética, e a consequente expansão da OTAN até a Ucrânia. Em terceiro lugar, e mais importante, a geoestratégia de Brzezinski previa o enfraquecimento da Rússia e o enquadramento de sua política externa nos imperativos geopolíticos dos EUA e seus aliados.
Essa geoestratégia colidiu, obviamente, com o fortalecimento da Rússia sob Putin e a formação do BRICS. A crise da Ucrânia nada mais é que a expressão visível e aguda desse choque geoestratégico.
Para fazer frente a esses novos desafios, os EUA reordenaram sua geoestratégia, que antes estava centrada na luta contra o terrorismo e no Oriente Médio. A nova geoestratégia norte-americana, explicitada em 2012 com o documento "Sustentando a liderança global dos EUA: Prioridades para a Defesa do Século 21", pretende se contrapor à crescente erosão de poder econômico e geopolítico dos EUA e aliados europeus e realizar movimentos de contenção da ascensão de países emergentes, notadamente os reunidos no BRICS.
Fazem parte dessa contraofensiva a TPP, a Trasn-Pacific Partnership, que inclui países asiáticos próximos à China, mas que exclui Beijing, e a Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), que pretende reforçar os laços econômicos entre os EUA e a União Europeia.
Essa contraofensiva também implica o abandono parcial da política unilateralista de confrontação no Oriente Médio, que não funciona e consome volumosos recursos militares e estratégicos. Os investimentos no shale oil, mesmo com todos os problemas ambientais que geram, se inserem nessa tentativa de diminuir a importância do Oriente Médio, na nova geoestratégia norte-americana.
E o Brasil, como se insere, nesse tabuleiro geoestratégico?
Em primeiro lugar, é preciso considerar que o Brasil também é alvo da contraofensiva norte-americana.
A recente distensão das relações entre os EUA e Cuba, por exemplo, faz parte de um movimento de reaproximação da única superpotência do planeta à América Latina e ao Brasil. O conflito com Cuba sempre significou um entrave desnecessário e obsoleto para uma relação mais fluida com os EUA. A eliminação desse entrave, do ponto de vista dos EUA, ajuda a abrir caminhos para uma retomada de sua histórica influência na região.
A Aliança do Pacífico, um factoide do ponto de vista econômico e comercial, representa, na realidade, uma ofensiva geopolítica direcionada contra a integração regional, sob o disfarce de um regionalismo aberto voltado à integração assimétrica com os EUA e outras potências tradicionais. O alvo é o Mercosul e sua união aduaneira.
A contraofensiva geoestratégica dos EUA passa, na América Latina, pela tentativa de desarticulação da integração regional liderada pelo Brasil e pela limitação da influência da China e da Rússia na região.
Entretanto, essa contraofensiva não é necessariamente ruim para o país. Ao contrário, o Brasil pode se aproveitar dessas disputas para se projetar ainda mais no cenário mundial.
Essa possibilidade esbarra, contudo, na total cegueira estratégica das nossas elites.
Com o arrefecimento (não o fim) do ciclo das commodities e a crise que agora também afeta países emergentes e em desenvolvimento, ressurgiu com plena força o mito de que a recente política externa brasileira é equivocada e precisa se reorientar em direção ao seu "leito natural", isto é, os EUA e demais potências tradicionais. Critica-se o Mercosul, a integração regional, a cooperação Sul-Sul, a parceria com os países emergentes e, é claro, também os BRICS, grande foro que o Brasil utiliza para se consolidar como liderança mundial.
Para os que padecem dessa irremediável cegueira estratégica, o Brasil deve renunciar ao Mercosul e sua união aduaneira, à cooperação Sul-Sul e a um BRICS politicamente mais atuante e investir em acordos de livre comércio com os EUA e a União Europeia, de modo a se inserir celeremente nas cadeias internacionais de produção. Com a crise e a baixa das commodities, que demanda esforços para se aumentar as exportações, principalmente as exportações de manufaturados, em razão da óbvia contração da demanda interna acarretada pelo ajuste, essas teses ganharam contornos preocupantes de urgência.
Ora, isso seria um erro gravíssimo. A integração regional absorve mais produtos manufaturados brasileiros que todos os países desenvolvidos somados. A competitividade dos nossos produtos manufaturados em nosso entorno regional está relacionada justamente à união aduaneira. Sem ela, nossos produtos não poderiam competir com bens chineses, norte-americanos, europeus, etc. O mesmo ocorre com os outros vetores da nossa política externa, como a cooperação Sul-Sul e as parcerias estratégicas com países emergentes. Foram esses vetores que nos permitiram expandir nossa participação no comércio mundial, de 0,88%, em 2000, para 1,43%, em 2011, e elevaram substancialmente o protagonismo internacional do Brasil.
É claro que o Brasil, em sua condição de global player, tem de se aproximar mais dos EUA, da União Europeia e qualquer país ou bloco que queria, nesse momento de baixo crescimento do comércio mundial, estreitar seus laços de cooperação conosco. Mas o país tem de fazer isso a partir da posição de relevo e de alto protagonismo que conquistou justamente com esses vetores da política externa ativa e altiva, que nos livrou da antiga dependência e fragilidade dos tempos paleoliberais. Como membro do Mercosul e do BRICS, o Brasil pode muito mais.
A celebração açodada de acordos de livre comércio assimétricos com potências tradicionais, somada a uma desarticulação da integração regional e a um baixo investimento no BRICS e nas demais parcerias estratégicas com países emergentes, acabaria transformando o Brasil num grande México, o país da América Latina, que nos últimos 12 anos, apresentou o menor crescimento do PIB per capita na América Latina, à exceção da Guatemala. O país que tem 51% da sua população abaixo da linha da pobreza.
Na recente viagem de Dilma aos EUA, Obama declarou, em alto e bom som, que seu país considera o Brasil não somente uma potência regional, mas também uma potência mundial. Não foi mera retórica diplomática. Foi constatação da verdade.
Contudo, o Brasil só adquiriu esse status perante os EUA e os demais países do mundo porque fez aposta geoestratégica correta de investir na integração regional, na cooperação Sul-Sul e nas parcerias com os demais BRICS. O Brasil se converteu em grande ator mundial porque, em essência, investiu em seus próprios interesses.
O grande risco do Brasil no atual cenário mundial não vem, portanto, do arrefecimento do ciclo das commodities e da crise internacional, que afeta todo o mundo. Na realidade, o grande risco do país provém de sua situação política interna e da cegueira estratégica de uma elite neocolonial que aposta obtusamente na volta a um passado de dependência e fragilidade.
O centro da política externa brasileira tem de continuar a ser a integração regional a cooperação Sul-Sul e as parcerias estratégicas com emergentes, particularmente com o BRICS, que se tornou, de fato, um novo polo político que contribui para o multilateralismo e uma ordem mundial menos assimétrica. É isso que nos cacifa para termos uma relação mais proveitosa com os EUA. É isso que nos faz potência.
Entretanto, se os interesses retrógrados internos preponderarem, talvez na próxima viagem aos EUA o Brasil não seja saudado nem como potência mundial, nem como potência regional. Seremos, de novo, apenas o quintal.
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