Brasília, 58

Hoje Brasília completa 58 anos, mas o clima no horizonte árido do cerrado é de 64. Brasília é a única capital do mundo construída às margens de favelas, porque primeiro vieram os barracos, depois é que veio ela

Hoje Brasília completa 58 anos, mas o clima no horizonte árido do cerrado é de 64. Brasília é a única capital do mundo construída às margens de favelas, porque primeiro vieram os barracos, depois é que veio ela
Hoje Brasília completa 58 anos, mas o clima no horizonte árido do cerrado é de 64. Brasília é a única capital do mundo construída às margens de favelas, porque primeiro vieram os barracos, depois é que veio ela (Foto: Lelê Teles)


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Hoje Brasília completa 58 anos, mas o clima no horizonte árido do cerrado é de 64.

Brasília é a única capital do mundo construída às margens de favelas, porque primeiro vieram os barracos, depois é que veio ela. 
 
A Vila Amauri, por exemplo, é o grande símbolo do que significou o projeto mudancista, muda-se a capital de lugar, mas o capital permanece nas mesmas mãos.
 
A Vila Amauri era um amontoado de barracos estrategicamente erigidos na cratera do que seria mais tarde o Lago Paranoá. 
 
Lá viviam 16 mil trabalhadores, inicialmente eram os que trabalhariam na construção dos ministérios e do Congresso Nacional. 
 
O Congresso Nacional, como se sabe, é um grande agá.
 
A ideia era que no final de '59 o lago seria inundado e aquela gente seria forçada a se mandar dali. 
 
E assim foi feito.
 
Ao abrirem as represas, os miseráveis, descartados como restos de construção, ou corriam ou morriam afogados.
 
É por isso que até hoje, no fundo do lago, existe uma estranha e triste Atlântida em ruínas, com casas, tratores e toda a estrutura da grande favela que foi engolida, como em Canudos.
 
Foi nesse mesmo ano, precisamente no carnaval de '59, que houve o grande massacre do Acampamento Pacheco Fernandes. 
 
Os operários, reclamando das péssimas condições de higiene nas cantinas e do feijão azedo, tentaram se rebelar.
 
As forças policiais do estado entraram na cantina e abriram fogo contra os trabalhandores. 
 
Até hoje não se sabe ao certo quantos morreram e nem onde foram enterrados.
 
Eu morei na Vila Planalto, bairro que fica entre o Congresso Nacional e o Palácio da Alvorada, precisamente na rua Pacheco Fernandes, nome do acampamento onde ocorreu o massacre.
 
Ouvi muitos relatos de trabalhadores que presenciaram o episódio. 
 
Oficialmente isso não aconteceu. 
 
No filme Conterrâneos Velhos de Guerra, o cineasta Vladimir Carvalho pergunta a Niemeyer sobre o massacre na Pacheco Fernandes e o velho comunista xinga o diretor e pede pra cortar a conversa.
 
Mais de 60 mil trabalhadores afluíram para o cerrado atraídos pela propaganda do estado, homens em quase sua totalidade e tendo entre 18 e 45 anos.
 
Foram submetidos a uma rotina exaustiva de trabalho, triturados nos canteiros de obras, até hoje não se sabe o que era feito dos mortos e dos mutilados.
 
Só inauguraram o cemitério Campo da Esperança porque morreu o Bernardo Sayão. Não havia cerimônia fúnebre para operários, eles não eram humanos, eram uma ferramenta de trabalho.
 
Os infelizes, muitos fugindo da seca de '58 no nordeste, trabalhavam na construção pesada sem luvas nas mãos, com chapéu de palha e chinelo de dedo.
 
Muitos trabalhavam pendurados nas estruturas de aço que formavam o esqueleto dos ministérios, manipulando rebites incandescentes que saíam de caldeiras, os acidentes eram constantes.
 
Como havia uma ambiguidade jurídica na proto-cidade, criou-se uma milícia com fama de truculenta e assassina com o nome de JEB, cujos "soldados" eram recrutados entre os próprios trabalhadores, tendo como atributo indispensável serem fortes e valentes.
 
O antropólogo Gustavo Lins Ribeiro esmiúça isso em seu livro O Capital da Esperança. A historiadora Ivani Neiva também escreveu um livro interessante sobre a Vila Amauri.
 
No livro Porque Construí Brasília, JK comenta sobre a primeira missa, realizada em 3 de maio de '58, ali ele se arvora o Pedro Álvares Cabral.
 
Não só a data era a mesma da realizada quase 500 anos antes, mas a própria simbologia. 
 
Mandaram trazer índios da Ilha do Bananal para saudarem o grande chefe branco, os trabalhadores miseráveis compunham o cenário, onde havia uma cruz de madeira e um certo contingente de homens brancos vestidos impecavelmente à francesa.
 
Essa foi a primeira presepada da cidade presépio.
 
No ano passado, ao abrir o teto da cúpula do plenário da Câmara dos Deputados, encontraram uma pixação feita por um operário de nome José Silva Guerra.
 
Ele marcou a data, 24/04/'59, era um poema que ele rabiscou com seu lápis de pedreiro: " que os homens de amanhã que para aqui vierem tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra"! 
 
Ao lado havia outros pixos assinados por outros colegas de trabalho, todos expressavam lamento e um grito de socorro.
 
Durante a construção da capital, o Brasil viveu um grande momento econômico, crescendo 7% ao ano. A produção industrial cresceu 80%, mas a miséria não diminuía.
 
O Jornal A Hora, de São Paulo, disse em junho de '58: Centenas de famílias estão ao relento, proibidas de ingresso na área de Brasília... os flagelados chegam nas proximidades da área da Novacap e encontram soldados armados que lhes impedem a entrada.
 
Aquela cidade pertencia à pequena burguesia burocrática que migraria pra lá quando tudo estivesse pronto e os pobres seriam enxotados para bem longe.
 
Não nos esqueçamos que a corrupção corria solta, um caminhão de areia passava pela fiscalização assinando cinco ou seis notas.
 
Ninguém contava pregos e tijolos.
 
No meio daquela miséria, muita gente ficou rica. Nem todos honestamente.
 
Na Cidade Livre, os comerciantes não pagavam impostos, esse era o incentivo; quem sabia fazer negócio prosperava. 
 
Zé Mineiro, dono da JBS/Friboi começou vendendo carne aos operários, houve até uma família que fez fortuna e comprou uma companhia aérea.
 
Mas ninguém olhou pelos miseráveis. 
 
Os homens de amanhã, que o pedreiro José Silva clamava, só chegaram em 2003.
 
Eu ainda estava na Vila Planalto, peguei a bike, com a esposa, e fomos à esplanada.
 
Era a posse do Lula, um filho do povo. E foi ele quem olhou pelos Josés pedreiros. 
 
Durante seu governo filhos de pedreiros, porteiros e padeiros chegaram à universidade e milhões de miseráveis saíram da linha da pobreza.
 
E os negros, como eram a maioria dos trabalhadores da construção de Brasília, puderam desfrutar de uma vida melhor.
 
Até que os burocratas, Weber previa isso, passaram a achar que essa gente estava a lhe incomodar os privilégios e usou do seu poder institucional para encarcerar o presidente operário. 
 
Se pudessem fariam o lago transbordar, qual fizeram com a Vila Amauri, e matariam o presidente afogado dentro do palácio.
 
Porém, Lula vive.
 
Lula livre.

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