Brasil, Oriente, Ocidente
O Brasil precisa passar por transformação no poder. Mirar no único instante em que foi soberano, cidadão e desenvolvimentista: a Era Vargas
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Seis séculos de dominação, de escravização, de espoliação do mundo fizeram da elite ocidental senhores arrogantes e, como fanáticos de qualquer convicção, irracionais. E tornaram-se cegos do que ocorre ao seu redor.
Ocidente, tal como o oriente, não são definições geográficas, mas sócio-politico-econômicas. O ocidente é o poder que se desenvolveu a partir das cidades gregas e de Canaã, e tomou o mundo mediterrâneo e o Atlântico norte: Europa Ocidental, Israel e Estados Unidos da América (EUA). Porém, para estes efeitos geopolíticos, o Japão, após a Revolução Meiji, é ocidente; como, em muitos aspectos os povos eslavos podem ser vistos como orientais.
Portanto, em primeiro lugar, é necessário distinguir por fator não ideológico, não suscetível de interpretações, o que caracteriza hoje, no século XXI, ocidente e oriente.
Ocidente são todos os locais onde o poder está nas mãos das finanças, que se autodenominam: “mercado”. A forma de dominação pode variar, mas ali, naquele país, naquele conjunto territorial, prevalece a liberdade econômica sobre a prioridade social, o interesse de todos. São países que não implementaram a lei romana: “salus publica suprema lex esto” (o interesse comum está acima do interesse privado).
Oriente, contrariamente, são os locais onde a riqueza se obtém pela produção, por agregar valor aos bens, seja na transformação em novo bem, seja pela contribuição artística ou pelo aperfeiçoamento tecnológico. No oriente a referida lei romana subsiste; o particular se submete ao geral.
A forma de remuneração da elite ocidental é a renda financeira, quer fundiária, quer pelos juros. Terra e crédito são os esteios da riqueza ocidental. No oriente é o trabalho, a realização pela transformação, pelo acréscimo de valor do bem que explica a riqueza.
Vê-se, por conseguinte, que não se colocam, na base da questão, o capitalismo contra o socialismo. Efetivamente, a leitura atenta do “Capital”, de Karl Marx, um livro de economia, e de “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith, conduz a maior número de convergências do que oposições.
Porém o “mercado” não subsiste sem um contrário. Suas bases são muitos frágeis para que se sustente pelos supostos méritos. Observe o caro leitor. No limite da ação do mercado só haveria a apropriação, pois não há interesse em produzir mas em acumular, e, ao fim, geraria a disputa mais feroz e fatal. Está em Aristóteles, não em Lenine ou em Mao Tse Tung: “o mais censurável tipo de transação é o que procura criar dinheiro a partir do próprio dinheiro, isto é, através do juro auferido pelo usurário. Esta será a evolução mais contrária à natureza, entre as diferentes formas de adquirir riqueza” (Aristóteles, “Política”, Livro I - I.10.1258b2-8).
Dissemos que o pensamento ocidental tinha raízes na Grécia Antiga, porém estes fundamentos jamais foram comuns a todos os homens, eles geraram a escravidão. O que se lê nos pré-socráticos, em Homero? Que a virtude é atributo dos nobres (aristoi), as noções de honra e de dever manifestavam-se desde o nascimento, só uma minoria se eleva acima da multidão de homens.
Por outro lado, o que está em Lao Tse, em Confúcio? O homem social busca a verdade, o conhecimento, para o que se dedica toda a vida (tao=caminho); o homem individual busca a virtude (te), que o faz ser pessoa confiável, ética. Não se distinguem pela origem mas pelas ações.
A evolução do capitalismo está suficientemente documentada, muito já se escreveu para que tome o tempo do leitor. Apenas alguns momentos devem ser recordados, pois mostram a linha evolutiva.
O domínio do poder econômico pode ser entendido a partir das Magnas Cartas: a primeira firmada em 1215, por João Sem-Terra, a segunda, por William Marshal, regente, em nome de Henrique III, filho do Rei João, em 1216 e revisada em 1217, a terceira, já como rei, por Henrique III, em 1225, depois, em 1297, novamente reafirmada por Eduardo I. Em 1327, com a abdicação de Eduardo II, cessam estes documentos. Embora sejam habitualmente tomadas pelo sentido político de ampliação do poder dos nobres sobre os reis, estas cartas foram transferindo poder econômico da linha dinástica para uma aristocracia. Formou-se, assim, por primeiro na Inglaterra, um poder fundiário e argentário, para o qual contribuíram os judeus, o povo de Canaã, que havia se destacado no comércio mediterrâneo.
Este poder se consolida e se espraia, impedindo que a industrialização crie nova classe de poder no que hoje é o Reino Unido. O poder ficou sempre nas mãos financeiras, de tradição fundiária e dos prestamistas, estes os judeus, aqueles os barões que encurralaram João Sem-Terra.
Outros poderes ocidentais, no entanto, investiram no aumento de bens além das incorporações fundiárias. Estas por guerras de conquistas. Foram principalmente os que dominaram os EUA e que surgiram com a Revolução Industrial.
O limite do início da economia capitalista, dita de massa, marca o fim da economia individual, dita de subsistência.
Porém, para o oriente, este capitalismo veio sob a forma de colonização, ou seja, da dominação e exploração dos povos orientais pelos ocidentais. Houve muitas guerras, muitas mortes, mas havia o impulso de apropriação que fazia o ocidental se arriscar, combater e submeter os demais. O capitalismo não teve por início a prosperidade mas a acumulação, o enriquecimento de uma classe.
Havia igualmente a necessidade de estabelecer algum tipo de ordenamento ou de institucionalização. Para isso buscaram-se, de início, as religiões, depois as teorias que explicavam a realidade, tal como os interesses no poder entendiam.
As religiões monoteístas triunfaram sobre as politeístas pois apresentavam hierarquia mais nítida e compreensível. Era também imperioso encontrar a explicação ontológica que fizesse sobressair desigualdades, indispensáveis para justificar segregações. O judaísmo e suas derivações cristãs e islâmicas formaram o berço desta estruturação.
Este foi um trabalho de séculos, foi sendo construído e destruído, testado, mesmo sem poder coator, sem agente que cuidasse de selecionar. Podemos dizer que esta foi a forma encontrada pelo ocidente para administrar seus próprios interesses, isto é, de satisfazer suas elites e foi quase inteiramente empírica, começando a ganhar contornos teóricos com o Renascimento.
Tivemos então de um lado, como formuladores teóricos do capitalismo: Nicolau Maquiavel (1469-1527), com “O Príncipe” (1513), Jean Bodin (1530-1596), com os “Seis Livros da República” (1576), Thomas Hobbes (1588-1679), com o “Leviatã” (1651) e John Locke (1632-1704), com “O Ensaio sobre o Governo Civil” (1690), porém tivemos, como o empreendedor, aquele que excluiu a religião concentrando nas instituições, nos impactos sobre a propriedade, na ascensão de economia moderna e civil, o rei inglês Guilherme III (1650-1702) e sua sucessora, a rainha Ana (1665-1714), esta já da Grã-Bretanha.
Habitualmente descrevem-se os reinados de Guilherme e sua irmã Ana como parte do estabelecimento do protestantismo na Inglaterra. Porém como afiança John Greville Agard Pocock (1924), “as instituições fundamentais nas quais a mudança era vista (eram) o parlamento e as forças armadas”, ou seja: o “Estado” (J.G.A. Pocock, “Cidadania, Historiografia e Res Publica - Contextos do Pensamento Político”, Edições Almedina, Coimbra, 2013).
A questão de “Estado” ou “mercado” tomará o debate no século XX com a Revolução de 1917, no Império Russo, constituindo o primeiro Estado socialista, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a União Soviética.
Esta é uma das falácias do sistema capitalista, quer industrial quer financeiro, fazer-se crer atuando independente do Estado, como se o mercado sozinho, livre e solto, promovesse a expansão da sociedade. Todo desenvolvimento estadunidense se deu com o Estado sustentando guerras de conquista para os empreendedores privados, garantindo seus negócios com a presença de suas forças políticas, administrativas, policiais e militares, financiando e adquirindo produtos ou pagando serviços, principalmente nas frequentes crises que um sistema desregulado sempre provoca. E, mais tarde, após 1917, a regulação dos sistemas econômicos será qualificada de ditadura.
A bem da verdade, as palavras ganham significado distinto conforme os interesses no poder.
Pierre Deyon (1927-2002), historiador francês, no muito traduzido “Le Mercantilisme” (1969), escreve na Introdução, com título “À Procura de um Mito”: “o mercantilismo foi definido e batizado pelos seus adversários. Não é de espantar que lhe tenham dado o nome errado. Para melhor o desacreditarem, fingiram não reparar senão no seu aspecto comercial e conseguiram atribuir ao adjetivo mercantil um tom pejorativo e odioso. Ao denunciarem no mercantilismo o triunfo dos interesses egoístas dos mercadores, esqueceram-se de que ele era também um sistema manufatureiro, agrícola e toda uma concepção do poderio do Estado” (tradução de Margarida Sérvulo Correia, para Gradiva Publicações, Lisboa, 1983).
Outra palavra falaciosa desta discussão é democracia; lembrando as origens gregas do ocidente. Democracia em Atenas era privativa do sexo masculino e daqueles que eram naturais do lugar e de origem nobre, reconhecida. Não havia democracia para as mulheres nem para os trabalhadores, estes escravos. Os democráticos varões ocupavam seu tempo exibindo destreza bélica e discutindo o melhor meio de viverem. Na verdade, democracia, hoje, também é para poucos. Para todos, em alguns países, é o ritual de transferência decisória.
Para alguns efeitos, democracia se estabelece conforme a quantidade de partidos políticos, mas, usualmente, é distinguida pelo Ocidente pelo grau de sujeição a seus interesses. A Arábia Saudita, sem eleições, imprensa opositora, partidos políticos, nem parlamento, não é ditadura, mas a Venezuela, que promove eleições conforme sua legislação, tem partidos políticos, imprensa e parlamento funcionando, é ditadura.
Cuidemos deste século XXI, quando o Oriente se transformou não em expectativa mas em efetiva e vitoriosa opção ao financismo que proclamou, na última década do século XX, “o fim da história”.
Escreve o jornalista Pepe Escobar em “The Craddle” (09/06/2022, Beirute - “O Sul Global se libertará da dívida dolarizada?”, encaminhado por Vila Mandinga): “É o ápice da estratégia política do “capitalismo financeiro”: “capturar o setor público e transferir o poder monetário e bancário” para Wall Street, City de Londres e outros centros financeiros ocidentais”.
Desde 08/11/1991, com a dissolução da URSS, o financismo se espalhou pelo mundo. E mostrou a que veio promovendo sete “crises”, entre 1992 e 2002 (1992 – Sistema Monetário Europeu; 1994 – México; 1997 – "Crise dos Gigantes Asiáticos”; 1998 –Rússia; 1999 – Crise da reeleição de FHC; 2000 – Bolha da Internet e 2001-2002 – “A crise argentina”).
Todas estas sete crises, diferentemente das que provocara desde 1970 (crises do petróleo) e em 1987 (Nova Iorque), não visaram a derrocada do “industrialismo”. Estas, do seu período de dominação, buscaram a transferência de recursos das áreas produtivas para as áreas financeiras, ora atingindo mais as finanças públicas, ora as privadas. Mas o sistema estéril do financismo apenas cresce com apropriações de outras atividades. Logo gera déficits ou, como está ocorrendo, e em velocidade assustadora, papéis sem lastro.
Foram os papéis sem suporte em bens reais que provocaram a longa crise de 2008-2010, que esvaziou os bancos centrais do Ocidente. Mas esta crise teve também outro objetivo: resolver o confronto que se dá no financismo entre as duas origens do capital que orienta suas ações: tradicional e marginal.
O capital financeiro tradicional foi descrito, anteriormente, como da “tradição fundiária e prestamista”. O capital marginal tem origem em ilícitos penais, assim entendidos os crimes, especificados em leis nacionais e tratados e acordos internacionais. São exemplos: o tráfico de drogas, o comércio de pessoas e de órgãos humanos, o contrabando de armas, a evasão de divisas etc. Estes capitais entraram no sistema financeiro internacional com as desregulações iniciadas no Reino Unido (Margaret Thatcher) e nos EUA (Ronald Reagan), na década 1980. Posteriormente, com quatro trilhões de dólares, testaram o sistema nos anos 1990, e neste século XXI passaram a dele se utilizar amplamente.
O controle deste sistema financeiro significa acompanhar, controlar e orientar os 85 paraísos fiscais existentes atualmente, quer como um bairro londrino ou estado nos EUA, quer como ilha no Oceano Pacífico ou um país africano.
A economista, professora e escritora residente em Londres, Loretta Napoleoni (“Maonomics”, 2011, tradução de Pedro Jorgensen para Bertrand Brasil, RJ, 2014) assim escreve na Introdução deste livro, que analisa a República Popular da China (RPC, China):
“Desde o distante ano de 1989, o padrão de vida médio na China melhorou radicalmente, ao passo que na Europa Oriental e territórios da antiga União Soviética, onde a democracia ao estilo ocidental se enraizou, a pobreza e o analfabetismo voltaram a crescer. E nem se fale de Iraque e Afeganistão, onde a exportação da democracia pela força das armas levou à guerra civil”.
Por que? Porque a miopia e arrogância política do Ocidente, que faz de suas falácias dogmas de fé, não consegue ver outras formas de gestão, e muito melhores para seus povos. Acredita em suas mentiras, mas considera que as verdades daqueles que não seguem seu modelo sejam simplesmente hipocrisia.
O Partido Comunista Chinês (PCCh) tem como maior objetivo promover a felicidade do povo chinês. Surpreso? Porque o ocidente além de não entender, distorce quando não mente desavergonhadamente sobre os chineses e seus dirigentes. Por que o comunismo na RPC é dito “com características chinesas”, porque o confucionismo impregna o pensamento, o inconsciente do povo chinês.
Loretta Napoleoni exemplifica no citado livro com empréstimos “familiares”. Parentes e amigos se unem para financiar o negócio de um deles. “Jamais (o beneficiado) cogitaria faltar ao compromisso”. Ele se tornaria um proscrito (hei ren), mostraria não possuir o te (virtude).
Ao discursar em 17/11/2012, a respeito das decisões do 18º Congresso Nacional do PCCh, Xi Jin Ping disse que “o sistema do socialismo com características chinesas integra organicamente o sistema político fundamental e os sistemas políticos básicos com o sistema econômico básico e os regimes e mecanismos específicos em todos os aspectos. Ele também integra organicamente o sistema democrático a nível estatal com o sistema democrático a nível de base e integra ainda a direção do PCCh, a posição do povo como dono do país e a administração conforme a lei. Correspondendo à realidade do nosso país, ele mostra completamente os atributos e as vantagens do socialismo chinês, fornecendo uma garantia sistêmica fundamental para nosso desenvolvimento e progresso” (Xi Jin Ping, “A Governança da China”, Contraponto: Foreign Language Press, RJ, 2019).
O sistema político fundamental refere-se ao sistema de assembleias populares, que é a forma organizacional do sistema político chinês; os sistemas políticos básicos espelham as características regionais, étnicas e de conteúdos de locais e culturas/intelectuais; e o sistema econômico básico é aquele onde a propriedade pública ocupa posição predominante, ao mesmo tempo em que coexiste com outras formas de propriedade (cooperativa e privada), sempre em busca do desenvolvimento comum.
A China não é uma perspectiva, é a realidade que está substituindo o ocidente, sem o tipo de dominação colonial, impositiva, agressiva, com canhoneiras e mísseis. O domínio chinês, como ocorreu no tempo em que os mongóis dominaram o Império Chinês, não é o mesmo de hoje. A China busca integrar fisicamente os países, respeitando suas individualidades, suas culturas, seus nacionalismo. O exemplo é a Nova Rota da Seda que soma 145 países integrantes, sendo a maioria (44) da África, 42 da Ásia, 29 da Europa, 20 da América Latina e o Caribe e 10 da Oceania. Onde estão países nórdicos e ilhas do Pacífico.
O Brasil para usufruir desta nova fase da humanidade não pode se prender ao passado que sempre lhe impediu de prosperar, de manter a elite escravagista e alienada da cultura nacional, que o dirige. O Brasil precisa passar por transformação no poder. Mirar no único instante em que foi soberano, cidadão e desenvolvimentista: a Era Vargas, no nacional trabalhismo.
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