Corrupções e os malefícios do chamado “combate à corrupção”

O combate à corrupção está corrompido por natureza, é corrupto em si mesmo, pois expõe a visão do colonizador e reforça preconceitos



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“há algo em decomposição no estado da Dinamarca…”

Não há propriamente um discurso anticorrupção, mas uma armação de slogans, ordens, conselhos e dados, pretensamente oriundos de pesquisas realizadas de quando em quando, aqui e ali. Mesmo que essa armação seja difícil de ser entendida, ela busca convencer, por meio de um mecanismo de inibição. É um mecanismo de inibição ou de interdições, que não são explicadas, mas conectadas a consequências, que pertencem, igualmente, mais à ordem da imagem do que do conceito, ou seja, inexplicáveis.

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Exemplo dessa armação são as famosas pesquisas de sentimento ou de percepção de corrupção, além das não menos espalhafatosas afirmações de que a corrupção corresponderia a um certo valor da riqueza e que tiraria dinheiro disso e daquilo. A organização chamada Transparência Internacional publica um índice de percepção de corrupção, anualmente, afirmando que o “Brasil permanece estagnado em patamar ruim” (sic), em 2020. Quer dizer... brasileiros e brasileiras não perceberiam a corrupção como deveriam perceber... Em termos científicos rigorosos, essa afirmação não tem nenhum valor. Ou, analisada mais de perto, tem o valor (anticientífico, por natureza) do preconceito. Esses índices e pesquisas, como tantos outros criados por entidades internacionais têm, lamentavelmente, servido para frisar a ideia preconceituosa de que o Sul do planeta seria menos desenvolvido do que o Norte, de que os países e povos do Sul seriam mais atrasados e menos conscientes, educados e sábios do que os do Norte. Quer dizer, endossam a dicotomia colonizador-colonizado, expressando que o colonizado é mais corrupto e menos responsável no tal “combate” à corrupção que o prejudica, fazendo dele mais pobre do que o colonizador.

Além disso, o mercado dessa armação que se quer representante daquele combate ou cruzada anticorrupção - que gera a fama e a fortuna de alguns, entre os quais, pessoas de boa, mas também de má fé -, é um motor de compressão de imagens preconcebidas e, em muitos casos, hipócritas. Como exemplo, pode-se consultar os slides de uma conferência, que colhi a esmo, na internet, em que seu autor fez questão de expor a comparação – observem-se os termos empregados - entre “entrevistados de São Paulo” e “paraibanos” (sic)  com relação a quem seria responsável pelo “interesse público”, “Estado” ou “todos”, ajudando, assim, a sedimentar, no Sudeste (em que o preconceito e o racismo leva a chamar precisamente de “paraibano” qualquer pessoa advinda do norte do País), a concepção de que essa região é melhor do que as outras. A colonização, portanto, internaliza-se: espaços mais pobres são postos como mais corruptos do que espaços ricos do mundo. Além disso, perceberiam menos a corrupção.

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De quando em quando, o mercado dessa armação lança campanhas e publicações, exatamente nesses espaços da pobreza. Autoridades e mídia comparecem para deixar claro que não estão entre as corruptas, não aceitam corrupção e apoiam o combate.

Se estivéssemos tão só nesse mundo das festas e dos espetáculos das campanhas publicitárias, talvez o mal causado fosse de baixa intensidade, dissolvido em meio a tantas campanhas e slogans que bombardeiam nosso cotidiano. Entretanto, a armação vai além e busca influenciar e se imiscuir nas funções jurídicas e na instituição da justiça, que se tornam porta-vozes da ordem estrangeira dos preconceitos e imbuídas do espírito puro de missionárias da virtude, louvando uns e perseguindo outros.

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Os valores que esse combate à corrupção carrega são falsamente universais. As palavras de ordem, destituídas de sentido, mais ligadas a um método educacional repressor do que a um conteúdo preciso. É a deseducação do não e do impedimento da reflexão crítica. O que se chama de corrupção é um amontoado de regrinhas pretensamente básicas de etiqueta, do tipo “menino, não faça isso”, “menina, isso você não pode”. A par disso, vem o mote do denuncismo social, que é um modo de desfazer vínculos e de aumentar os conflitos: a corrupção é sempre a dos outros, portanto, “você, que é puro, aponte o dedo para os que não são, e salve a sociedade da corrupção”. É exatamente o oposto da regra de ouro de “atire a primeira pedra”, que saiu dos textos religiosos para o imaginário das músicas populares. 

Afinal, os missionários da honestidade propugnam várias soluções e regras para o empenho em seu combate, que estão entre a vagueza e a generalidade do ‘’mais educação” (repressora, evidentemente, para que cada um saiba o seu lugar) e a especificidade de um direito penal que passe por cima de garantias constitucionais. Finalmente, quem é apontado preferencialmente como corrupto são os políticos, em geral, e, entre eles, os de esquerda, em especial.  Nessa mesma série de slides que referi acima, correspondentes a uma palestra proferida em 2012, a ênfase é dada para “os últimos cinco anos” e “o governo Lula” (sic), em que se afirma, de modo tendencioso, anticientífico e irresponsável, que teria ocorrido o aumento do tal “sentimento de corrupção”, a que se acrescenta uma reflexão do autor dos slides, muito longe de imparcial: o que aumentou foi o número de ações levadas a cabo pelo Ministério Público no “combate à corrupção”. Portanto, mais uma pregação do que uma aula.

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 Os malefícios, portanto, dessa armação são os de sustentar uma ordem de preconceitos e de reprimir a crítica, além de se imiscuir na política, fingindo desprezá-la, sobretudo para a tornar cada vez menos popular e democrática. Quem deve fazer as regras são os sabidos missionários, que também devem imiscuir-se no processo eleitoral, a favor ou contra determinados candidatos, ocupar os cargos públicos e tomar conta das verbas públicas, apropriando-se delas para criar mesmo instituições privadas da eterna e rentável cruzada. Eterna porque os missionários sabem que o diagnóstico que fazem e as soluções que propugnam não servem senão para prejudicar a consciência e o engajamento político popular. Não trazem solução nenhuma e se encarregam, por meio dos slogans de fácil assimilação, que se legitime o combate artificial. 

Enfim, o combate à corrupção está corrompido por natureza, é corrupto em si mesmo.

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Como desfazer esse ciclo?

Em primeiro lugar, descartando a imagem mesquinha – porque meramente econômica - de corrupção que esse movimento oportunista criou. Além disso, é preciso mostrar que há corrupções, de diferentes naturezas e que são passíveis de diferentes remédios e ações, jamais de uma cruzada moralista – e falsa.

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O termo já é equívoco em si, como uma consulta ao dicionário evidencia: corrupção é termo derivado de ruptura e pode denotar processos de deterioração, decomposição, assim como de modificação, adulteração de características originais de algo, e, em sentido figurado, de depravação de hábitos e costumes, devassidão. Em um sentido específico, tem a ver com subornar. 

A visão de burla por meio de dinheiro é apenas um aspecto do conjunto de salvaguardas constitucionais, administrativas, civis e penais contra o que se chama genericamente de corrupção. O direito não é assim tão mesquinho e cego quanto querem fazer ver os militantes do ativismo jurídico pretensamente anticorrupção. No Código Penal, por exemplo, ela está classificada entre os crimes contra a Administração Pública, que compõe um longo rol de atos ilegais praticados contra a regularidade da prestação dos serviços públicos: peculato, emprego ilícito de verbas ou rendas públicas, concussão, corrupção passiva, facilitação de contrabando ou descaminho, prevaricação, advocacia administrativa, violação de sigilo funcional, tráfico de influência , corrupção ativa, impedimento, perturbação ou fraude de concorrência, contratos e licitações e de contribuições sociais, e corrupção ativa em transação comercial internacional.. Isso além de outros crimes convenientemente esquecidos da tal “cruzada”, como a violência arbitrária, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la, um fenômeno do cotidiano e de suas injustiças.

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A corrupção é, sim, abuso de poder, mas não apenas ou meramente econômico. Está frequentemente em jogo o poder social, hierárquico, policial, familiar, mas sobretudo político, no qual se inclui o jurídico. É um ato precipuamente de violência contra as pessoas e os sistemas políticos e jurídicos. E é essa violência que é esquecida nessas análises, mais do universo da publicidade do que do direito, sobre a corrupção.

Essa violência é marca da desigualdade, em todos esses campos em que se abusa do poder. Quem causa a ruptura é a desigualdade, e não o contrário. Essa desigualdade decorre da permanência de um projeto colonial, que destitui o outro de seus atributos e impõe-lhe valores, culpas e responsabilidades que não lhe pertenceriam se não houvesse a violência, e que são insuportáveis. A questão do sentimento ou percepção de corrupção é uma dessas imposições arbitrárias. É uma forma de coação, que coloca contra a parede a sociedade civil, os movimentos sociais, as mídias e as autoridades realmente conscientes e próximas ao povo, impondo uma via de mão única e taxando de corrupta a pessoa que não a segue. 

Esses índices são imposição de quem quer espalhar uma visão de mundo mesquinha, que só interessa aos poucos que prosseguem a senda da colonização da existência. Despois de introduzirem uma concepção de mundo, encaixam todos os demais problemas nesse molde, fazendo com que tudo se explique por um princípio. E a adoção desse princípio impede que se busquem outros caminhos, outras explicações mais autênticas e plausíveis.

Daí que é frequente encontrarem-se nesses textos dos donatários do saber da corrupção as afirmações de que finda a corrupção, cessarão a exploração, a opressão e a dominação humanas e ambientais. Ocorre que se trata de uma inversão. A ruptura se dá com esses processos de exploração, opressão e dominação, de que faz parte a visão invertida, como uma ilusão de representação, que se acresce à visão distorcida de mundo, necessária para que os condenados da terra não consigam perceber o que sentem e quem lhes causa sofrimento.

A armação tenta fazer crer que o mundo é constituído de bons e maus exploradores e opressores. Os maus seriam os corruptos e os bons os que fazem a dominação mais honesta. O objetivo do combate é de refrescar uma concorrência entre titãs e não empoderar a humanidade para os eliminar e construir a igualdade.

Dotar a sociedade de instrumentos de controle e fiscalização dos poderosos – em que se incluem os missionários da falsa cruzada – é o melhor caminho para a construção da consciência de que com igualdade – “sem reis e sem escravos”, diria Luiz Gama -, desfeitas as correntes de dominação e subordinação, não viveremos num mundo de rompimentos, mas naquele em que os verdadeiros liames serão de coordenação política e jurídica, numa cosmovisão solícita e solidária da existência.

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