Borboletras
o que é o que é, tem escamas mas não é peixe? a borboleta, professora. respondi, para espanto geral da turma. desapontada, a professora resolveu checar se a minha resposta inusitada não se tratava apenas de um chute que acabou dando certo
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o que é o que é, tem escamas mas não é peixe?
a borboleta, professora.
respondi, para espanto geral da turma.
desapontada, a professora resolveu checar se a minha resposta inusitada não se tratava apenas de um chute que acabou dando certo.
porque isso acontece, veja que é assim que esses zagueirões pernas-de-pau conseguem fazer gols; dão um chutão pra frente, tendo como único objetivo se livrar da bola, e a danada acaba por entrar no gol adversário.
e para quê servem as escamas na borboleta?, ela perguntou.
ué, professora, são as escamas que dão colorido às asas desse lepidóptero, redargui.
estávamos na quinta série e eu tinha míseros dez anos de idade, para ela, a professora, era impossível que eu conhecesse um termo grego e ainda conseguisse aplicá-lo assim tão corretamente a um contexto.
e quem disse que elas são lepidópteras?
os entomologistas, eu respondi de pronto.
o que é um entomologista, ela me perguntou e eu percebi que essa ela própria não sabia.
era uma aula de ciências da natureza, a professora resolveu falar das borboletas achando ter trazido um assunto inédito e curioso para a sala de aula.
era inédito para todo mundo, menos pra mim que sou curioso.
quando criança eu adorava correr atrás das pequenas borboletinhas amarelas, embora amasse também as coloridas. por isso, resolvi ler sobre elas.
certa vez, passou uma Kombi vendendo livros em minha rua – na minha infância, as livrarias eram ambulantes, não ficavam em shoppings como hoje – e eu pedi pro meu pai comprar aquele que mostrava borboletas na capa.
li tudo sobre elas, da fase larval até sua crisálida explosão.
o que faz o ser borboleta ser?, eu perguntei à professora.
ela me olhou com os olhos arregalados como os da mulher do Cunha.
sua possibilidade de voar, de polinizar e ter uma metamorfose completa; ela respondeu.
a essa altura, a turma só ouvia, sem entender quase nada do que dizíamos.
entendendo tudo, eu contestei a resposta da professora: não, o vôo não, professora. a borboleta não é a única criatura alada nem nada. por isso, não é o seu voo lépido e colorido que a faz borbolar.
o verbo borbolar deixou a professora bolada.
com mil diabos, ela deve ter pensado, de onde esse moleque tira essas coisas?
hoje eu tenho a resposta para uma dúvida que a minha professora não conseguiu sanar: o que faz o ser borboleta ser é a sua ousada explosão de liberdade, sua fuga fome do casulo uterino e a negação abnegada de levar uma vida rastejante e limitada.
em vôos e voltas, como uma anáfora, a metamorfose desse lepidóptero é também uma metáfora.
isso o entomologista não enxerga, porque ele estuda apenas o cadáver que disseca.
mas não o poeta.
o poeta vê a vida.
enxerga, na infante crisálida, a potência de um ser que se abre para a beleza da vida embelezando-a.
sabe, o sábio poeta, que a borboleta, em segredo, cochila em conchinha em seu exoesqueleto.
e, dormindo, suspira profundamente como se recebesse carícias e sonhasse.
sonhar com borboletas é sempre bom, porque, no sonho, as borboletas representam bons presságios.
mas depende, sempre, onde e como elas surgem no sonho: se dentro de casa ou num jardim, se sozinhas ou em pares, se pousadas ou voando, se pretas, coloridas ou amarelas...
cada situação dessas indica interpretações diferentes.
para a psicanálise, as borboletas representam a transformação;
já para o cristianismo, elas simbolizam a ressurreição: as fases lagarta, crisálida e borboleta são representações que se encaixam na tríade nascimento, morte e ressurreição.
na mitologia grega, a borboleta é a zoomorfização da alma humana.
o que pensam as borboletas?, lembro de um garoto ter perguntado naquela aula lá na quinta série.
as borboletas são criaturas enigmáticas, eu lembro de ter respondido, jamais saberás o que se passa por dentro da alma delas.
por que tudo isso? é porque sonhei, essa noite, com uma mulher linda, grávida e com uma borboleta desenhada na barriga.
a mesma mulher que havia deixado na palma da minha mão uma borboleta vermelha e cheirosa.
acordei intrigado e insone, peguei um livro de Fernando Pessoas pra ler e abri justo neste poema:
“passa uma borboleta por diante de mim / e pela primeira vez no Universo eu reparo / que as borboletas não têm cor nem movimento / assim como as flores não têm perfume nem cor / o cor é que tem cor nas asas da borboleta / no movimento da borboleta, o movimento é que se move / o perfume é que tem perfume no perfume da flor / a borboleta é apenas borboleta / e a flor é apenas flor”.
efeito borboleta, pensei. soprei o candeeiro, aproveitei a escuridão do quarto e voltei a dormir.
palavras sapienciais.
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