Bolsonaro e Guedes e o pacto autoritário
Colunista Aldo Fornazieri avalia que não há como Paulo Guedes implementar suas propostas "sem o apoio de um Estado autoritário". "O programa ultraliberal, inequivocamente, acirra o conflito social e o conflito político", alerta
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O casamento entre Bolsonaro e Paulo Guedes não foi algo improvável, fortuito, casual. Pelo contrário: o projeto político de Bolsonaro só pode desenvolver-se com programa econômico de Guedes e o programa econômico de Guedes só pode realizar-se com o projeto político de Bolsonaro. É falsa a tese de analistas de esquerda que afirmam que Bolsonaro não tem projeto estratégico. O projeto político de Bolsonaro consiste em viabilizar um Estado autoritário e o programa econômico de Guedes consiste em implementar um projeto de economia neoliberal. Ambos têm a mesma referência do passado: o Chile de Pinochet e dos Chicago-boys, discípulos de Milton Friedman.
Na verdade, tanto a brutal experiência de combinação de neoliberalismo e ditadura ocorrida no Chile quanto o pacto Bolsonaro-Guedes se inscrevem no programa político da nova direita que surgiu ainda nos anos de 1970 e que teve nos governos Ronald Reagan e Margaret Thatcher seus pontos cardeais. Se Bolsonaro-Guedes são uma tentativa de reedição do Chile de Pinhochet, em certo sentido, Trump é uma tentativa de reedição de Reagan.
Qual é a essência desse programa? Como já notavam os seus críticos dos anos de 1980, consiste em adotar a economia de mercado como projeto político. Na essência, isto consiste em alocar no mercado todas as decisões sobre o investimento. Para que isto se viabilize não basta reduzir o tamanho do Estado e acabar com seu papel acerca do investimento. É preciso desconstituir direitos. É justamente neste ponto que se torna necessário romper com dimensões do Estado Democrático de Direito e de viabilizar um Estado autoritário.
Com efeito, a democracia e o capitalismo só encontraram um momento de equilíbrio estável a partir do pacto keynesiano que viabilizou a configuração do Estado de Bem Estar. Como mostraram vários autores, o equilíbrio estável entre democracia e capitalismo implicava no compromisso no qual os trabalhadores consentiam com as instituições da propriedade privada e da concentração dos meios de produção nas mãos de capitalistas na medida em que estes consentiam com a existência das instituições de mediação da democracia orientadas para a solução pacífica dos conflitos e proporcionadoras de direitos e de um sistema distributivo de renda. Os trabalhadores precisavam ter certeza de que as suas condições de vida melhorariam com a garantia e a ampliação de direitos e com as políticas públicas redistributivas que tinham no sistema tributário um de seus pontos fortes.
O neoliberalismo, enquanto programa econômico da direita, rompe com este pacto e com este equilíbrio estável entre democracia e capitalismo. Por isto, precisa de reformas trabalhistas que destroem direitos e com reformas previdenciárias assimiladas aos sistemas de capitalização, nas quais o próprio indivíduo decide acerca de sua condição futura de velhice, retirando o Estado desta função que era exercida de forma compulsória. Procura-se não apenas retirar o papel do Estado no investimento, mas também quebrar seu compromisso com despesas obrigatórias, orientadas para garantir direitos nas formas de serviços.
Para viabilizar a economia de mercado como projeto político, outros pontos importantes do programa da nova direita consistem em eliminar os controles e restrições ambientais, reduzir ou eliminar mecanismos e regras de controles sociais, desmontar as políticas públicas de bem-estar, retirar dos órgãos públicos de saúde e de outras instituições a fiscalização sobre a saúde e segurança dos trabalhadores e dos consumidores, reduzir a tributação do lucro e do capital, aumentar a tributação sobre os benefícios dos trabalhadores e aposentados, aumentar a tributação do consumo etc. Parte deste programa vinha sendo implementado pelo governo Temer e agora vem sendo aprofundado pelo governo Bolsonaro com amplo apoio do setor financeiro e empresarial.
O problema é que não há como implementar este programa de forma consequente sem o apoio de um Estado autoritário. O programa ultraliberal, inequivocamente, acirra o conflito social e o conflito político. Assim, será preciso enfraquecer todas as formas de representação social e do trabalho. Daí vem o ataque aos sindicatos, às organizações estudantis, aos conselhos participativos – medidas que já vinham sendo adotadas no governo Temer e aprofundadas agora.
A viabilização do Estado autoritário consiste na constituição da retaguarda institucional e repressiva para a viabilização da economia de mercado como projeto político. Por isso, os apelos para o fechamento do Congresso e do STF, a invocação do AI-5, a conclamação para a intervenção das Forças Armadas, as várias tentativas de aprovar o excludente de ilicitude, as investidas de criminalização e de deslegitimação dos movimentos sociais e da oposição política e incitação à eliminação ou prisão dos partidos e líderes de esquerda.
Este programa político-econômico vem apoiado pela propagação de uma série de valores conservadores e reacionários relacionados à família, à religião, à sexualidade, à educação, à cultura etc. Trata-se, nos termos gramscianos, de uma ofensiva da direita para disputar a hegemonia, algo que as esquerdas não vêm fazendo.
As instituições democráticas e o Estado de Direito vêm sendo sistematicamente atacados, senão visando sua supressão formal, com certeza, minando o seu funcionamento e esvaziando o seu conteúdo democrático e a sua funcionalidade. Na linha de frente desta investida autoritária estão o presidente Bolsonaro e seus filhos, o vice-presidente Hamilton Mourão, o general Augusto Heleno, o ministro Sérgio Moro, o ministro Paulo Guedes e vários bate-estaca alocados no governo, no Congresso, em igrejas evangélicas, em setores empresariais e nas milícias digitais. É importante perceber – e parece que as esquerdas se negam a isto – que existe um projeto, uma estratégia coerente em andamento, que conta com vários operadores.
A conduta de Bolsonaro, de seus filhos e dos seus ministros ideológicos precisa ser compreendida no contexto deste empenho na viabilização de um projeto político e ideológico de direita que se define por um programa econômico, por um modelo de Estado autoritário e por uma visão de sociedade. É nesse contexto também que precisam ser entendidos os ataques de Felipe Martins, de Carlos Bolsonaro e de outros olavistas e bolsonaristas à ordem existente, à conciliação e ao establishment. Este ataque pressupõe uma dimensão revolucionária e reacionária do movimento, agora comandado pelo governo. Tal movimento visa a restauração dos valores tradicionais, a moralização da política, o vigor da lei e da ordem, a redução do Estado e do poder político, a afirmação do individualismo etc.
É nesta chave que se explica também a tendência isolacionista do governo em relação ao centro político e até mesmo o seu afastamento depurador em relação ao PSL. O novo partido, criado pelo clã Bolsonaro, pretende conferir um grau maior de pureza ideológica ao movimento conservador.
Neste momento, nem o centro político e nem as esquerdas têm projetos estratégicos visíveis e coerentes para enfrentar a direita. Alguns acreditam na ilusão de que Bolsonaro cairá amanhã. A crer em algumas análises, Bolsonaro já teria caído há meses. O projeto da extrema-direita não será enfrentado de forma eficaz com apelos saudosistas ao passado. Nem com lamúrias autocomplacentes de vitimização. A sociedade e a realidade política nas quais o PT ascendeu ao poder não existem mais. A realidade e os tempos mudaram. Para enfrenta-los e para enfrentar a direita autoritária as esquerdas precisam se atualizar e se renovar.
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