Bolsonarismo/fascismo: enfim a ferida narcísica na identidade nacional brasileira



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O dia 3 de outubro de 2022 fez amanhecer consigo um fenômeno relativamente raro numa sociedade: um assombramento geral, um espanto de dimensões quase cósmicas e espalhado em todas as direções, uma desilusão repentina que passou a fazer parte do sentimento nacional de norte a sul, de leste a oeste. Quero frisar o caráter de desilusão que o 3 de outubro trouxe em si. A DES-ilusão é quando uma antiga ilusão se DES-faz. Quando as brasileiras e brasileiros constataram que algumas pessoas haviam sido escolhidas através do voto para exercer cargos públicos, o que se abateu sobre o moral (o ânimo) e a moral (os valores) brasileiros foi uma imensa desilusão. O povo viu que parte substancial da construção do imaginário brasileiro havia desmoronado. Que a imagética de cordialidade (não a descrita por Sérgio Buarque de Holanda, que diz respeito a um comportamento que busca infringir hierarquias), de flexibilidade, de inclusividade que artistas como os do século XIX tentaram atribuir à nossa índole, que a estampa de civilidade colada e vinculada à suposta tendência brasileira; que tudo isso estava passando por uma crise profundamente arraigada, talvez nunca antes defrontada na história do Brasil, porque nunca antes tão evidenciada simultaneamente em território nacional por tantos meios de comunicação de massa.

Como eu costumo dizer, a revolução da informática às vezes arranca à força o recalcamento de conteúdos emocionais que, antes dessa revolução, ficavam resguardados cuidadosamente nas camadas inferiores do Inconsciente. É por isso que Bauman, Zizek, Judith Butler, Foucault, Deleuze, Guattari, Élisabet Roudinesco, Julia Kristeva são tão importantes à continuidade freudiana hoje como o foram Lacan, Jung, Melanie Klein, e até Hannah Arendt. 

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Enfim, como eu frisei, a manhã de 3 de outubro não trouxe à luz do Pré-Consciente e do Consciente brasileiros uma crise qualquer. Do Inconsciente (coletivo?) foi capturado um conteúdo recalcado que repousava cheio de ingenuidade por séculos na imaginação e na fantasia brasileiras. Algo que a mitologia grega poderia expressar, como num espelho às avessas, talvez, com o episódio do rapto violento da inocente e pueril Perséfone pelo poderoso Deus do submundo, Hades. 

Trata-se de uma crise de identidade, uma crise que acertou a cabeça, o coração do que por séculos se acreditava ser a alma brasileira, baseada supostamente em valores de solidariedade, igualdade, compaixão, civilidade. O 3 de outubro de 2022 despertou um Sol muito menos dignificante sobre a tal alma brasileira. Puxou para o submundo, como Hades a Perséfone, o poetizada e romantizado halo de “inocência” da média brasileira.

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Eis que o nosso povo amanheceu sem máscara nenhuma. Com a face desnuda, que gerou espanto generalizado. A face que afirmou, desavergonhada, que apoiava com louvor o comportamento de ex-ministros que foram responsáveis diretos pela morte até por falta de oxigênio de centenas de milhares (sabemos que são milhões) de pessoas. Meu pai era médico e morreu de covid, eu e minha mãe ficamos internados, na mesma ocasião, em estado grave, enquanto, na TV do hospital, o então presidente da república gargalhava dos “maricas” que tinham medo da doença. 

Foi arrancada a máscara de pessoas que votaram em ex-ministros cuja conduta ética está claramente explicitada em 100% dos meios de comunicação. Ex-ministros que apoiam que a Amazônia seja devastada por milicianos e grileiros, e que “essa boiada passe” enquanto as pessoas estão preocupadas exatamente em sobreviver da covid. Ex-ministros que mentem que existe “kit gay”, “mamadeira de pênis” (o termo é muito menos técnico-anatômico e muito mais distorcido do que “pênis”), “ideologia de gênero”, que defendem que meninas de 11 anos estupradas não tenham direito de tirar o feto de seu estuprador, que abominam meninas que não vestem rosa e meninos que não vestem azul, com toda a estupidez desse estereótipo normótico. 

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Foi arrancada a máscara que escondia que há uma parcela imensa de brasileiras e brasileiros que não se importam que milhões de vidas tenham sido arrancadas embaixo do escárnio do presidente e da sua mortífera comissão de frente. A máscara que escondia que as pessoas não estavam NADA preocupadas com o aumento do custo de vida em proporções avassaladoras. A máscara que escondia que as pessoas não se importavam NADA com o aumento perigoso do desemprego e da linha da miséria, que inevitavelmente causa o aumento da violência urbana. Embaixo dessas máscaras de cordialidade e civilidade, o que se viu foi uma face brasileira bastante estranha e inquietante, espantosa, quase enigmática, que revelou que o rosto de parte significativa do povo brasileiro não se importa NADA com NADA disso, mas se importa, encaremos a realidade, com “costumes” e “valores” muito cristãos e muito piedosos... 

Um dos grandes estupores e espantos foi exatamente em torno dessas questões: mas, afinal, que “costumes” e “valores” são esses que parte significativa dos brasileiros explicitou que almeja não somente para si e sua família, como quer impor como política de governo e de estado para todo o território nacional, transformando-nos numa teocracia cristã assim como o estado islâmico nos países em que ele impera? Que parcela é essa do Brasil – que chegou a pouco mais de 40% das pessoas – a conviver cheia de hipocrisia com uma outra parcela que está nas ruas cheia de convívio inclusivo, expressando-se sem a mesma hipocrisia que faz parte intrínseca dessa máscara que foi arrancada? Como, enfim, essa hipocrisia brasileira, tão decantada por Nelson Rodrigues, Caetano Veloso, Chico Buarque, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, é tão fundamental de ser compreendida como variável incontornável no conjunto de paradoxos que formam o que, de alguma forma, podemos chamar, sem fantasia, de uma “alma” brasileira real, concreta, empiricamente apreensível e argumentativamente irrefutável, para obedecermos aos dois principais critérios da metodologia científica? 

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E a pergunta central: que maldade, que indiferença, que crueldade eram essas que estavam adormecidas nas sombras dos corações de parte tão significativa das pessoas brasileiras? Que insanidade é essa que parte das pessoas expressou, mostrando que prefere ser frontalmente atingida – pela miséria galopante, pelo risco de verem seus empregos ceifados, pelo aumento do custo de vida, pelo perigo de ter um líder nacional que não se importa com as vidas e por isso não propõe nenhum plano de vacinação a não ser quando é pressionado por seus opositores –, que insanidade é essa que prefere se prejudicar de forma até fatal, se em nome disso for mantido o conjunto de “bons costumes” imposto pela hipocrisia dos dogmas do mesmo fanatismo religioso que cria a “Polícia da Moral” e a “Polícia dos Costumes” em estados islâmicos que assassinaram Ruqiya Farah Yarow na Somália por ela não usar “CORRETAMENTE” o véu? Que protótipo de sociedade essas pessoas perversas (trata-se muito nitidamente do que em psicanálise chamamos de perversão ou perversidade) desejam impor ao Brasil?

O Brasil acordou no 3 de outubro com essa ressaca moral quase unânime para curar. O pasmo foi GERAL. 

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Essa sombra brasileira foi vista de frente não por um ou outro brasileiro, aqui e ali, mas pela quase totalidade desse povo. Inclusive – posso afirmar como psicanalista – pela própria parcela do povo que teve sua máscara de cordialidade e civilidade arrancada à força. Sim, senhoras e senhores: até mesmo as pessoas desmascaradas, com a moral distorcida, egocêntrica e narcisista REVELADA, foram atingidas. 

Isso porque, quando um espanto se espalha de forma tão unânime e tão francamente, o ambiente outrora confortável em que essas pessoas perversas coabitavam é iluminado e tira essas mesmas pessoas de suas situações de conforto. Essas mesmas pessoas são inevitavelmente afetadas, implicadas no problema, como diriam Deleuze, Guattari, Lacan. Afetadas e implicadas no problema que elas antes criavam protegidas pelas sombras. Agora, elas não estão mais protegidas pelo anonimato e pelo conforto do Inconsciente. Esse é o poder que o espanto, uma vez que foi generalizado, impactou inclusive nas próprias pessoas desmascaradas.“Sei que nada será como antes amanhã”, como dizem Milton Nascimento, Beto Guedes e sua intérprete, Elis, no Brasil a partir de 3 de outubro. É preciso encarar que parte significativa do povo brasileiro, em resumo, simplesmente, NÃO SE IMPORTA. Simples assim. NÃO SE IMPORTA. Não se importar é ser indiferente. Ser indiferente é a melhor síntese para a normose. O Brasil é hoje, didaticamente, o país do mundo que melhor explicita o que e como a normose é prejudicial no tecido social de um povo. A indiferença, que é praticamente um sinônimo de normose, foi o que amanheceu revelado no 3 de outubro brasileiro. O país do mundo que, hoje, melhor terreno tem para mostrar didaticamente o que e como a normose é capaz de distorcer valores para inseri-los no rol egocêntrico, narcisista e perverso de tantos psiquismos.

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O que desejo enfatizar aqui é que essa constatação rara e repentina criou uma ferida narcísica na identidade da comunidade brasileira. É quase como se precisássemos nos redescobrir (e nos reinventar) não como “PÁTRIA”, que é algo secundário e que importa muito pouco, mas como NAÇÃO. 

O que foi ferido não foi a “pátria” brasileira, mas a NAÇÃO brasileira. Aquilo que Benedict Anderson nos mostra como nossa “comunidade imaginada”, aquilo que nos une e nos sedimenta como um só povo, apesar de tanta diversidade étnica, cultural, linguística, antropológica, psíquica, teológica. Já foi dito, olhando para um lado menos romântico (que, a propósito, terá de nos nortear cada vez mais de agora em diante...), que um dos valores que sedimentaram o Brasil como NAÇÃO e como um só povo foi o apego à manutenção da escravidão. É, senhoras e senhores, desde muito cedo parece que a sombra da perversidade pairava no Inconsciente coletivo de nossa terra e nós teimávamos em não admitir... 

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Enfim, o 3 de outubro não revelou uma ferida à “pátria” brasileira, mas sim à NAÇÃO brasileira. 

“Pátria é acaso de migrações”, como ensinou Mario de Andrade em seu poema dedicado a Carlos Drummond de Andrade, “O poeta come amendoim”: 

(...)

“Brasil amado não porque seja minha pátria,

Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...

Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,

O gosto dos meus descansos,

O balanço das minhas cantigas amores e danças.

Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,

Porque é o meu sentimento pachorrento,

Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.”

Esse sentimento de “pátria”, tão ligado ao bolsonarismo e aos fascismos, é a tentativa heterônoma desesperada de um estado com pouca cultura de base para impor “símbolos” que tentem unificar de fora para dentro todo um povo. Por isso o fetiche quase erótico por bandeiras, por cores estereotipadas, a verde-amarelia doente, por armas, revólveres e fuzis fálicos e viris, por machos-alfa em cima de motos fumegantes, por mulheres machistas (triste ser humano...) submissas e cordatas a esses machos-alfa. Todo esse circo de símbolos nada mais é do que o simulacro que os valores “patriotas” tentam dissimular por cima dos valores que realmente unificam um povo, que são os valores de NAÇÃO.

Gonzaguinha expressa isso bem:

“É!

A gente quer viver pleno direito

A gente quer viver todo respeito

A gente quer viver uma nação

A gente quer é ser um cidadão

A gente quer viver uma nação.”

Foi o Brasil enquanto NAÇÃO, não enquanto “pátria”, que se viu ferido narcisicamente no 3 de outubro. “Uma ferida funda demais”, como quase diria Clarice. 

E, como tenho dito, a própria bolsonarosfera sentiu o impacto dessa ferida. Ainda que tenham sido eles os seus causadores, nem por isso eles deixam de senti-la na própria carne. É, amigas e amigos, faz parte dos paradoxos da dinâmica psicanalítica. Estranho ser humano... É sadomasoquismo puro: ferir o tecido social de tal forma (sádica) que essa ferida se volta até contra aqueles que o feriram, arcando e gozando, no sentido lacaniano, com essa regressão (masoquista) em suas próprias carnes. 

Quando se desloca o básico princípio de prazer de Freud para uma mera compensação (que é tudo o que a sociedade normótica pode oferecer aos que venderam suas almas a ela), o que se apresenta é exatamente o que o bolsonarismo/fascismo incentiva tanto e o tempo todo: que se saia da pulsão de vida (Eros, ou Amor) em direção à pulsão de morte (Tânatos, ou Poder).

É aquilo que Jung nos ensina sobre a sombra do Amor. Ele mostra que o oposto do Amor (que se encaixa perfeitamente nessa dinâmica desvelada no 3 de outubro brasileiro) é o Poder. Onde há Amor – continua Jung –, não pode haver Poder; onde há Poder, não pode haver Amor. 

Quando uma suposta “ideologia” político-estatal espalha, em nível Subconsciente, que o Amor é uma pulsão que DEVE SER SUBSTITUÍDA pelo Poder, ou, em outras palavras, que a pulsão de vida DEVE SER SUBSTITUÍDA pela pulsão de morte, a normose, então, ganha terreno fértil. O que vemos é o arrancar maciço de máscaras com que fomos surpreendidos (?), assombrados e subsumidos no 3 de outubro.

Como psicanalista, vai meu conselho: é preciso se dar o tempo para que esse LUTO ocorra. Sim, foi um LUTO. Parte de nossa imagem e identidade como NAÇÃO – mais de 40% dela – simplesmente MORREU. Provou que NÃO SE IMPORTA, que é INDIFERENTE, NORMÓTICA. Disse com todas as letras que substituiu o prazer, Eros, a pulsão de vida, O AMOR, pela mera compensação da “jouissance” lacaniana, por Tânatos, pela pulsão de morte, PELO PODER. 

Continuando meu conselho: depois de se permitir esse tempo para a elaboração do LUTO enquanto NAÇÃO, é preciso AGIR. 

Temos uma parcela significativa da NAÇÃO – mais de 40% – padecendo de uma patologia profunda e estrutural. Todo aquele racismo, toda aquela discriminação, todo aquele conjunto de preconceitos e falsos tabus, toda aquela HIPOCRISIA deixaram de ser protegidos por máscaras. 

Isso tem um lado bom: agora, afinal, a investida por valores civilizatórios e REALMENTE MORAIS E ÉTICOS, e até uma libertação das amarras normóticas e hipócritas dessa parcela da população, que optou por Tânatos, e não por Eros, tudo isso poderá de forma mais franca, agora, ser encarado. 

Creio que nunca no Brasil as questões psicanalítico-psíquicas e antropológico-culturais estiveram tão de mãos dadas como agora.

É preciso introjetar que somos uma NAÇÃO, não uma “pátria”. É preciso aprender com Caetano que

“A língua é minha pátria

E eu não tenho pátria, tenho mátria

E quero frátria.”

É preciso amar a MÁTRIA e desenvolver a FRÁTRIA. É possível.

Como diria Gonzaguinha muito sucintamente: É!

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