Boicote aos escravagistas, mas não mexam no meu Lollapalooza

São episódios desse tipo que fazem muita gente abandonar ou mesmo não fazer parte da luta progressista, pois quem deveria dar exemplo, está atrás do vil metal

(Foto: Raul Aragao)


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No inicio desse ano de 2023, o Brasil ficou chocado com o número de casos de resgates de trabalhadores que foram flagrados em condições deploráveis, considerados análogos ao regime de escravidão, como havia nos séculos passados, na época da escravidão africana brasileira. Seres humanos de origem pobre que simplesmente estavam trabalhando sem receber salários, vivendo e dormindo em locais inapropriados, sofrendo violências física e psicológica, e consequentemente, gerando riquezas e todos os tipos de lucros para seus patrões. Os casos de maior destaque foram os realizados no Rio Grande do Sul, na cidade de Bento Gonçalves, onde foram resgatados centenas de trabalhadores, a maioria oriundos da Bahia e alguns argentinos. Eles eram escravizados pelas maiores empresas nacionais de produção de vinho: Salton, Aurora e Garibaldi, a partir de uma outra empresa que faz o serviço de terceirização. Aliás, essas três empresas usaram esse argumento como desculpa, para se desassociar do crime, responsabilizando a terceirizada pelos fatos ocorridos, e alegando “não saber” o que estava acontecendo. Esse crime bárbaro, que é repudiado por todos aqueles que possuem cérebro, foi defendido e até mesmo ironizado publicamente pelo vereador gaúcho Sandro Fantinel do Patriotas, e (pasmem) por um grupo de empresários do mesmo estado, que fazem parte do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves. Esse último culpou o Bolsa Família, como sendo o verdadeiro responsável pela escravidão de seres humanos, pois segundo a esdrúxula explicação deles: “Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.” Ou seja, pra eles, bom mesmo é existirem cidadãos desesperados e sem ajuda do Estado, pois caso contrário, as pobres empresas e seus donos coitadinhos serão obrigados a ter que instituir a volta da escravidão, por não ter mão de obra querendo se sujeitar a seus subempregos. Também houve operações em outros estados, como em Goiás em plantações de cana-de-açúcar.  

Imediatamente após a repercussão dos acontecimentos, deu-se início a um movimento (correto) de algum tipo de boicote, desde a não consumação dos produtos por parte do público, a suspensão das vendas em alguns supermercados do RJ, e da proibição do uso de vinho, por parte da Igreja Católica, que seja fabricado por alguma dessas empresas. Também houve sugestões para a criação de Leis para frear esse tipo de crime, como a possível expropriação de terras de empresas pegas cometendo esse tipo de violação contra a dignidade humana. Obviamente, figuras públicas ligadas historicamente à defesa de políticas progressistas e de esquerda também engrossaram o movimento. Mas, a partir daqui vamos para a crítica daquilo que acredito ser uma enorme contradição.

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O festival de música, Lollapalooza, que já tem diversas edições no nosso país, com casting de bandas e cantores do rock, pop e música alternativa, além do eletrônico, é famosa não apenas por ser um sucesso de festival bem sucedido, mas também por sempre utilizar mão de obra escrava na montagem da estrutura do evento, como a construção dos palcos onde os artistas se apresentam, etc. Notícias dessas práticas são divulgadas aos montes, mas nada muda. Não há boicotes, não há críticas mais profundas. No máximo há postagens indignadas nas redes sociais, memes, vídeos, etc, e nada mais além. Não se verifica nada comparável ao que foi feito no caso das vinícolas. Aqui temos um padrão que se manifesta em diversas situações, até mesmo em coisas simplórias no dia a dia do indivíduo: “se algo não me afeta, tudo bem, caso contrário, serei contra”. Quando se trata de entretenimento e lazer, aquele que será acometido pela sua suspensão, irá se opor duramente. É muito bem visto por todos, aquela pessoa que se levanta contra a opressão aos fracos e oprimidos, desde que isso não impeça essa mesma pessoa de curtir seus momentos de festa, descontração e diversão. No caso do Lollapalooza, esse pacto invisível acontece entre o público e os artistas. Sobre os artistas, tem a ver com o cachê que vão receber, e o público com o dinheiro que gastaram nos ingressos. É claro que, ninguém é obrigado a ser um militante em favor do povo pobre brasileiro, mas quando se olha para a grade de atrações do festival, e encontra lá bandas e cantores, conhecidos pelos seus trabalhos engajados na luta popular, e que inclusive fizeram parte da rede divulgação do boicote às vinícolas, vê-se uma grande contradição e a decorrência de uma possível desmoralização num futuro próximo, pois caso essas pessoas voltem a fazer denúncias de novos casos de resgates de cidadãos em situações de trabalho degradantes, eles serão confrontados pelas suas próprias ações passadas, que não irão condizer com seus discursos.

Não vale citar nomes, basta pesquisar e irá ver. Tem até uma banda, que é conhecida pelo seu trabalho de denúncia do racismo nas suas músicas, que se orgulhou em ter feito um “grande protesto” no palco do festival, falando algo sobre “escravagistas”, como se isso fosse fazer alguma diferença na situação. Além de cantores de rap, que ano passado fizeram campanha aberta contra o fascismo e afins, estavam lá dando sustentação à festa dos senhores de engenho. Mas “pagando bem, que mal tem?”

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São episódios desse tipo que fazem muita gente abandonar ou mesmo não fazer parte da luta progressista, pois quem deveria dar exemplo, está na verdade atrás do vil metal. Depois não adianta reclamar e culpar o povo.

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