Bob Dylan e nós

Bob Dylan importa. E importa em todos os sentidos que dizem respeito ao estar-no-mundo, como ser humano e como poeta comprometido com a condição humana



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Maio já começa dar adeus. O mês se vai, mas ficam as tristezas acumuladas que começaram a se espalhar por aqui no começo do ano de 2020. Em meio a tanta tristeza e dor, uma pausa se faz necessária para comemorarmos o aniversário de 80 anos de Bob Dylan, um dos maiores poetas do século XX, cuja existência e contribuição às artes é imensurável.

Robert Allen Zimmerman nasceu no dia 24 de maio de 1941, adotando tempos depois o pseudônimo de Bob Dylan em homenagem ao poeta galês Dylan Thomas (1914 – 1953). Ao longo da sua carreira, Dylan recebeu todos os prêmios que um artista pode almejar, o que significa o reconhecimento de público e crítica pelo trabalho que desenvolveu em todas as áreas nas quais esteve, a saber, cinema, literatura, música, artes plásticas etc. No ano de 2016, o autor de Like a rolling stone foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura por ter, segundo a Academia sueca, “criado novas expressões poéticas dentro da enorme tradição da música americana”. Dylan é, continuou a Academia, “provavelmente o maior poeta vivo”. A decisão de premiar Dylan com o Nobel de Literatura foi pra lá de acertada. Não o fazer seria como ter a oportunidade de premiar Homero ou Walt Whitman e, simplesmente, ignorar.

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Mas por qual razão, em meio a uma pandemia que devasta a terra, tecer loas a Bob Dylan? Numa resposta simples e rápida seria, basicamente, por que Bob Dylan importa. E importa em todos os sentidos que dizem respeito ao estar-no-mundo, como ser humano e como poeta comprometido com a condição humana. Assim, a canção de Dylan ultrapassou há tempos os limites da própria canção, atingindo o statusde poesia, fazendo com que o autor de Tarântula (1971) se tornasse referência indispensável para a compreensão sócio-histórica, política e cultural do século XX, uma vez que sua poesia é toda ela permeada não apenas por lirismo, mas por temáticas mais cruas e ácidas que abordam os direitos civis, religião, política, direitos humanos, assim como variados aspectos dos movimentos de contracultura e além. Em outras palavras, a poesia de Bob Dylan tornou-se, pela qualidade que a engendra, uma arte atemporal e universal.

Bob Dylan é um poeta contemporâneo, e como tal mantém todos os seus sentidos voltados para a observação e apreensão daquilo que constitui e transforma o ser humano. Pois, como bem define Giorgio Agamben na obra O que é o contemporâneo? E outros ensaios (2009): “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente (...). Pode-se dizer contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade (...). O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”. Assim sendo, a contemporaneidade do pensamento poético de Bob Dylan pode ser notada já nas suas primeiras produções. Como admirador de Woody Guthrie (na guitarra de Guthrie estava escrito: “essa máquina mata fascistas”), Bob Dylan já sabia muito bem por quais caminhos sua poesia deveria seguir.

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Em “Blowin’ in the Wind” (1963), por exemplo, o poeta faz ecoar uma pergunta que se mantém bastante atual, embora em contexto diferente. Diz (tradução livre): “...quantas pessoas ainda terão que morrer, para que ele perceba que já se matou demais?”. Em “The Times They Are a Changing” (1964), por sua vez, o poeta conclama todos a abrirem os olhos e ficarem atentos, pois “os tempos estão mudando, ou aprendemos a nadar ou afundaremos feito pedras”. Já em “Like a rolling stone” (1965) o questionamento é sobre aqueles que possuem tudo, mas que de repente perdem. E então? “Como é se sentir assim, sem destino, como uma pedra que rola?”. Os aspectos surreais observáveis em “Mr. Tambourine man”, por seu turno, aproximam-se do que se vive hoje, no que concerne ao vazio, a insônia e ao cansaço dos dias, como se estivéssemos eternamente presos em um filme de Fellini. Tem-se: “... não estou dormindo e não há nenhum lugar onde eu possa ir, pois todos os meus sentidos foram destroçados...”. 

Concluímos, retomando Agamben (2009), quando diz que o poeta, enquanto contemporâneo, é uma espécie de fratura que impede o tempo de compor-se e, simultaneamente, o sangue de suturar a quebra. O poeta – o contemporâneo – continua Agamben, deve manter fixo o olhar no seu tempo. Mas o que vê quem vê o seu tempo, o sorriso demente do século? A resposta, meu amigo, está logo ali, em cada verso da poética de Bob Dylan que, aos oitenta anos, ainda tem muito a nos dizer. 

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