Biografias descartáveis

Em determinados momentos da história, alguns personagens tornam-se descartáveis pelo emaranhado de relações sem princípios

Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, durante sessão plenária em Brasília. 24/11/2015 REUTERS/Ueslei Marcelino
Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, durante sessão plenária em Brasília. 24/11/2015 REUTERS/Ueslei Marcelino (Foto: Tarso Genro)


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As duas mais significativas manifestações sobre o pedido de impedimento da Presidenta Dilma foram feitas, a primeira, através de um editorial do Jornal “O Globo”, reconhecendo a precária condição moral (e penal, provavelmente) de Eduardo Cunha, para encaminhar legitimamente o referido processo, mas alegando que as questões do Presidente da Câmara, agora, “são coisas do passado”, não servem para deslegitimar o início do “impeachment”. A segunda, lamentavelmente, veio pelo ex-Presidente Fernando Henrique, ajudando impulsionar a tentativa de deposição da Presidenta Dilma, porque existem sinais -diz ele-, “no mercado”, apontando este desejo.

 
Trata-se da confissão pública de duas origens ilícitas para a iniciativa. Ambas provém de uma convergência política estratégica e de uma opinião uniformizada – geradas tanto pela grande mídia como pelo PSDB-DEM – para instituir um terceiro turno, politicamente golpista, contra um mandato que não é menos legítimo do qualquer outro que chegou ao seu final, aqui Brasil, depois da Constituição de 88. Um processo que poderá gerar, no país, uma crise econômica mais intensa e uma radicalização política ainda mais grave, portanto, está sendo impulsionado, tanto pelo mercado financeiro rentista (que quanto mais instabilidade política tanto mais aumenta os seus juros para financiar a dívida pública), como por um cidadão que motivou, publicamente, seu despacho de encaminhamento do processo, na chantagem e na revanche.
 
O PT cometeu, até a reunião da Comissão de Ética que aceitou o processo contra Cunha, o gravíssimo erro (premido por erros cometidos durante o período que ajudou a governar o país) de acreditar, que, aceitando a chantagem de Cunha e dos setores do PMDB, que poderia separar a moral da política. Moral e política, efetivamente, não moram no mesmo território, mas elas se comunicam sempre pelos princípios e o jogo da política que dissolve os princípios (separa fins e meios), pode terminar muito mal para quem não os deixa em pé. O fato de que parte dos nossos adversários sempre governou assim, só alimenta a convicção de que não deveríamos ter sequer tentado governar assim.
 
Uma questão “prática”, mas de grande relevância política e moral, é que quem aceita governar sob chantagem política, não somente incorpora – no seu modo de governar – o “programa” de interesses do chantagista, mas também pode incorporar a sua desqualificação ética, transformando o Governo numa extensão daquilo que deveria ser o seu contrário. As transformações econômicas e sociais positivas que o PT impulsionou, ao longo dos seus governos (que não foram poucas nem irrelevantes para milhões de brasileiros pobres ou de baixa renda), neste contexto, se perderiam nas nossas próprias mãos. E o PT, se bloqueasse o processo ético contra Cunha, não abriria a última chance para redimir-se e para o próprio Governo se redimir, pois estaria totalmente subjugado ao que há pior na política brasileira.
 
Com a postura que assumiu na Comissão de Ética, finalmente o PT jogou Cunha nos braços dos criadores, que o elegeram para a Presidência da Câmara, contra uma pessoa digna e republicana, que já havia presidido aquela casa com isenção e altivez, o deputado Arlindo Chinaglia. O PT, assim, assumiu a posição da sua minoria renovadora – “Mensagem ao Partido”- e jogou Cunha para os braços do Senador Aécio, do ex-Presidente Fernando Henrique (no seu surto de golpismo de mercado), do deputado Bolsonaro e dos editores e colunistas, seus parceiros da grande grande mídia nativa. Irão acolhê-lo e homenageá-lo? Acho que não. Vão descartá-lo. O brilhante artigo de Fernando Morais, publicado recentemente na Folha de São Paulo, mostra que eles deverão é fazer uma execução política rápida, de Eduardo Cunha, para tentar descartar pelo menos esta fonte mais gritante de ilegitimidade do impedimento da Presidenta.
 
O General Dmitri Volkogonov, falecido recentemente – historiador e biógrafo crítico de Stálin e da crise do regime soviético – conta, no seu memorável “Os sete chefes do império soviético” (Ed. Nova Fronteira 2008), que logo após a morte do “Pai dos Povos”, em 5 de março de 1953, a maioria dos integrantes do Presidium do Comitê Central do PC, toma consciência do perigo que representaria, para todos os sócios diretos do poder stalinista, a memória de Béria. Ele era o temido chefe da NKVD e responsável direto por execuções, torturas, falsificações de dossiês, assassinatos e deportações, que muitos dos membros do Comitê Central assentiram ou compartilharam. Ao mesmo tempo em que Béria tinha sido, portanto, fundamental para manter o poder stalinista e do seu grupo, ele se tornaria agora uma testemunha da conivência com a barbárie, de todos os que disputassem a sucessão de Stálin.
 
Kruschev, um dos integrantes mais importantes do Presidium, juntamente com o vacilante Malenkov que o presidia – contando com o apoio de Mikoyan, Molotov e Bulganin, entre outros – numa reunião daquele organismo colegiado (logo após o falecimento de Stálin), “abre” um processo sumário contra Béria. Este, que estava na reunião sentado ao seu lado, murmura: “O que está havendo Nikita? Que é isso que você está resmungando a meu respeito?” Béria é preso, na própria reunião, por alguns Marechais do Exército Soviético -heróis de guerra como Zhukov- que já estavam ali preparados para lidar com o assunto. Béria é “julgado” rapidamente e fuzilado. Assim terminava mais uma aliança sem princípios, constituída apenas pelo medo e pela covardia.
 
Em determinados momentos da história, alguns personagens tornam-se descartáveis, pelo emaranhado de relações sem princípio que decorreram de suas posições diante da vida. Esta é a analogia de Cunha com Béria. Nenhuma outra. Mas ela é válida. Cunha agora será descartado pelos seus criadores. À medida que ele já fez o serviço, para o qual foi guindado à Presidência da Câmara, será abandonado pelos seus aliados na mídia e na oposição demotucana, para que a sociedade esqueça a ilegitimidade originária do processo de impedimento.
 
Vai se formar em torno dele uma estranha unanimidade negativa. Sybá não vai mais poder dizer que ele é um exemplo de “dignidade política” e Aécio – que foi sempre apoiado por Cunha nos seus intentos golpistas e pretensões eleitorais – vai dizer que Cunha é “coisa do passado”. Nos seus espasmos finais Cunha poderá ficar ainda mais raivoso e mais perigoso para a democracia, pois terá pela frente um longo e tortuoso “devido processo legal”. Ninguém sabe se as acusações que renderiam a ele muitos anos de cadeia são verdadeiras e, enquanto não forem devidamente apuradas nos respectivos procedimentos legais, devem ser consideradas apenas isso: acusações.
 
O que estamos tratando aqui é de política, disputa pelos rumos do país, comportamento dos agentes públicos em processos de alta complexidade, que podem causar danos a milhões de brasileiros e à nossa democracia em crise. À medida que Cunha submeteu o PT e o Governo, a um processo de chantagem visando bloquear investigações a seu respeito, ele transformou o seu despacho – que pretende iniciar o impedimento da Presidenta – num repulsivo ato de vingança pessoal. Um ato que mancha o processo de ilegitimidade desde o seu início e coloca, à luz do dia, a convergência da crise econômica com a crise da democracia.
 
Vamos atravessar mais essa. Enganam-se aqueles que tornam principal o fato de que o PT está “sofrendo por aquilo que ele mesmo promoveu”. Isso pode ser verdadeiro, mas não é a questão principal. O PT está pagando duramente, tanto pelo que ele fez, como pelo que ele não fez. E pelas coisas boas para o país que ele também fez. Neste momento, porém, a questão principal é a questão democrática, de um lado e, de outro, os danos econômicos que causariam ao país, um novo governo não legitimado por eleições e guindado ao poder através da chantagem e da manipulação. Cunha não é Béria, Fernando Henrique não é Kruschev. Mas veremos, nos próximos dias, se a analogia é verdadeira.
 
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Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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