Biden e Bernie e os caminhos de Allen Ginsberg: vitória e derrota do fascismo no sonho americano
A vitória de Biden tornou-o um mensageiro antifascista e democrático, no momento histórico atual, porque neste momento ele não encarna mais a si mesmo, mas aqueles que projetaram o sonho americano de forma libertária
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Qual é a sua estrada
homem? A estrada
do místico, a estrada do
louco, a estrada
do arco-íris, a estrada
dos peixes, qualquer
estrada…há sempre uma estrada em
qualquer lugar, para
qualquer pessoa, em
qualquer circunstância.
Como, onde, por
quê?” (Jack Kerouac).
“A tendência democrática da escola não pode consistir apenas em que um operário manual se torne qualificado, mas em que cada cidadão possa se tornar governante”. A frase é de Gramsci e poderia ser assim parodiada, no plano da política: “a tendência da política democrática não pode consistir apenas em que as suas grandes e pequenas vitórias sejam apenas de proveito de alguns, mas que possam educar e serem fruídas de forma universal”.
Jack Kerouac teria dito, há setes décadas, que “os fatos de hoje não atingem as pessoas da mesma forma”. Sua sentença serviria como uma luva nas mãos dos que agora disputam a política pelas informações em redes ou são especialmente atingidos por elas. Seja nas bolhas fechadas das patologias bolsomínicas, seja nos espaços escondidos do “hackerismo” insurgente contra a ordem. Ou mesmo nas covas do racismo, propagadoras de todas as formas de ódio.
Os fatos políticos que vêm rondando a História atual – tanto a nova emergência do fascismo, como a vitória de Biden – não podem ser avaliados seriamente sem considerar a espetacular virada eleitoral do atual presidente americano contra Donald Trump. Como a vitória de Biden “atinge” as pessoas concretas na atualidade? e como ela influi na luta contra o fascismo? é o que deve predominar neste ciclo de resistência democrática e reconstrução republicana do país.
Derrotar o líder mais odioso e seus asseclas, bandido integral das democracias capitalistas do ocidente depois de Hitler, é um fato a ser celebrado. Mais do que isso: é um episódio que deve ser integrado nas estratégias da luta social e de bloqueio do ultra liberalismo, a partir dos interesses nacionais soberanos de cada país. Assim como não importou que juntos com Roosevelt, Stalin e Churchill, vibrássemos com a vitória contra o nazismo, celebremos com Merkel, Lula e Macron, a vitória de Joe Biden contra a barbárie “trumpista”!
As ideologias, sejam como falsa consciência, sejam como enquadramentos pensados sobre o mundo exterior, são sempre estimuladas por fatos históricos que “atingem” as pessoas de forma diferente. Não as atingem – como disse Kerouac – de uma mesma forma, em cada época: um raio caído no centro de um lago pode ser entendido como uma promessa de fartura na próxima pesca, a depender da cultura religiosa e dos conhecimentos de quem presenciou o fenômeno. Há centenas de milhares de anos seria mais provável que aquele fenômeno da natureza fosse erguido à condição de uma mensagem faiscante dos deuses.
Uma vitória militar de um Estado colonialista contra um povo colonizado pode inundar a ideologia nacional dominante de promessas fantásticas, tornar-se uma praga do fascismo em ascensão, mas pode também envergonhar aqueles que respeitam a lutas pela independência política dos povos, mesmo sendo cidadão do próprio país colonialista. As pessoas não são atingidas pelos fatos e pelos raios da mesma forma em épocas diversas, mas onde caem os raios e como as pessoas sentem os fatos da História importa para a formação das consciências para enfrentar os desafios da história.
O estupendo documentário de Martins Scorsese sobre Bob Dylan tem falas memoráveis de Allen Ginsberg e do próprio Dylan, sobre o real e o falso, no sonho americano. “Ver Ginsberg” – fala Dylan – “era como ver o oráculo de Delfos, ele não se importava com riqueza material ou poder político (…)” Ele conta: “eu vi os mortos mais brilhantes da minha geração destruídos pela loucura”. Dylan fala, ainda, que poucas pessoas, – talvez com algumas exceções como Robert Frost – tenham passado por isso no curso de épocas que prometeram luzes “muito antes do amanhecer”.
A cultura política que elegeu Trump vem, predominantemente, da John Birch Society, da Klan, do Senador Mccarthy, de Nixon e do Tea Party, seduzindo expressivos setores do mundo do trabalho excluídos do sonho americano, precarizados pelas necessidades do mercado. Também seduziu uma multidão de pobres do vasto império americano, humilhado pelo crescimento chinês e pela perda de espaços imperiais.
A cultura política, todavia, que permitiu a Bernie Sanders falar em socialismo, bem como disputar as primárias com o Presidente Biden (que se deslocou para a esquerda visando cooptar os operários fascinados pelo “trumpismo”), vem da tradição democrática e libertária dos anos 60\70.
A poesia, a música e a literatura desta cultura e filosofia de vida – refletidas em Bob Dylan, Jack Kerouac, Joan Baez, Allen Ginsberg e muitos outros – à época, penetraram fortemente no Partido Democrata pela voz do Presidente Jimmy Carter. Ele se encantava com os versos de Willie Nelson e Bob Dylan, defensores de que “a América não estava morrendo, mas começando a nascer”.
Estas fantasias que a cultura democrática americana fez sobre o seu destino, baseadas no republicanismo contraditório dos seus “pais fundadores” – ao mesmo tempo imperial e formalmente democrático – disputou o sentido político da nação. Este sempre se equilibrou entre o seu pacto democrático fundador e a sua violência imperial, impulsos que disputavam influências sobre os rumos do ocidente. Extorsão imperial e “apharteid” social-racial, todavia, sempre foram os principais elementos formadores do “ethos” nacional da grande política americana, mesmo após a derrota do país na Guerra do Vietnam.
Por dentro das lições daquela guerra é que se formaram vultos históricos como Nixon, Trump, Johnson, Bernie e Biden, bem como o retorno à superfície da política da atual cultura democrática e libertária, que saiu da sua letargia com Bernie Sanders e provocou a vitória de Biden. As lutas pelos direitos civis que se fortaleceram depois da derrota do nazi-fascismo já tinham aberto um ciclo de disputas intelectuais e morais de grande intensidade, nos “undergrounds” da vida artística, nas “bolhas” libertárias das universidades americanas e nos espaços de imprensa livre das grandes cidades do país.
Estas lutas recriaram o sonho e, ao mesmo tempo, reforçaram seu destino imperial, levando a uma boa parte do senso comum do povo americano a novas formas de resistência e também de reação política.
Aquilo mesmo que Marx previra ao cumprimentar Lincoln pela vitória eleitoral “por uma larga maioria”, em 1864, dizendo com todas as letras do significado universal da vitória: “os operários da Europa se sentem seguros de que, assim como a Guerra da Independência Americana iniciou uma nova era de ascendência para classe média, também a Guerra americana contra a escravatura o fará para as classes operárias.”
A cultura dos jovens heróis da música e da poesia e a solidão dos que lutaram contra a guerra do Vietnam se fundiram com a experiência dos que foram à Guerra, crentes que defendiam a democracia contra o comunismo: o “bem” contra o “mal”. Na volta destes ao convívio social, todos já se consideravam “sós” – como expressava Allen Ginsberg – mas uma solidão que, por décadas, foi tecendo nos laços invisíveis da história a possibilidade de unidade contra o perigo assassino de uma extrema-direita armada, que passaria a buscar o poder a qualquer preço.
Hitler, Mussolini e seus asseclas reciclados pelas redes da infâmia já estavam dentro do território americano como já estão dentro do nosso, ora como racistas misóginos, ora como milicianos nos clubes de tiro, ora como golpistas prontos para invadir o Capitólio e fechar o STF. A derrota de Trump é uma derrota histórica, que certamente interfere nas pessoas segundo a visão que cada uma delas tem das suas tarefas para vencer a barbárie.
Se a tarefa imediata é derrotar o fascismo genocida tais pessoas, individualmente ou agrupadas, terão a vitória de Biden como suas, cientes que, sem a destruição dos “mitos” que o fascismo procria, não teremos um próximo capítulo para ninguém, nas próximas décadas: nem utopias nem democracias.
Os filhos da história que ressurgiram na herança integrada de Ginsberg, Luther King e Malcom X, já também vozes “amplas que continham multidões”- como profetizava Walt Whitman – amalgamaram uma esquerda em torno de Bernie Sanders. Ela – ao fim e ao cabo – elegeu Joe Biden contra Donald Trump, maldito facínora da pós-modernidade, na qual o mercado fez fenecer as utopias. A vitória de Biden tornou-o um mensageiro antifascista e democrático, no momento histórico atual, porque neste momento ele não encarna mais a si mesmo, mas aqueles que projetaram o sonho americano de forma libertária.
Joe Biden – nem que queira – vai mudar as características imperiais do Estado que está presidindo, mas, na sua glória, se abriu uma clareira que nos ajuda respirar e lutar. Os versos de Gregory Corso, poeta desta mesma geração de luzes, diz que “não há relatos através da eras de que um espírito mensageiro tenha alguma vez tropeçado na escuridão”. É um verso determinista e falso como história, mas – pela sua beleza que é verdadeira – esperemos que seja vigorosamente profético.
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