Barbárie à brasileira: arte destruída e democracia ferida

O que assistimos em Brasília foi a junção entre a destruição do patrimônio cultural da humanidade e a tentativa de golpe contra a democracia.

(Foto: Marcelo Camargo/Ag. Brasil)


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Brasília foi projetada por Lúcio Costa e Niemeyer para ser, além de capital do Brasil, um símbolo urbano da democracia e da liberdade. A “ágora tropical”, situada no coração do País, tornou-se modelo de uma arquitetura baseada na supremacia do coletivo e singularizada pelo concreto armado, polido e emoldurado na beleza de suas curvas. Nessa concepção estética inaugural, o concreto armado virou arte feita de pedra, ferro e cimento. Os materiais artísticos foram amaciados pelas mãos de operários pioneiros, os conhecidos “candangos” de Brasília.


A “Praça dos Três Poderes”, construída em forma de triângulo equilátero, possui vértices que representam, de forma harmoniosa, o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal.

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Ao longo dos anos, foram se reunindo, no interior desse conjunto arquitetural dos três poderes, obras representativas da arte moderna brasileira acrescidas de relíquias do tempo do império. Destacam-se duas imagens sagradas, Santa Maria Madalena e Santa Teresa de Ávila, ambas no estilo barroco do século XVIII. O Relógio de pêndulo de Balthazar Martinot, do Século XVII, presente da Corte Francesa para Dom João VI, seguramente constitui uma das peças de maior destaque do Congresso Nacional.
O manancial das obras distribuídas no espaço de representação do poder executivo faz com que seus ocupantes, os eleitos do Congresso, os ministros da Suprema Corte e demais visitantes ocasionais possam, em seus trajetos ao local, admirar obras de grandes artistas brasileiros e estrangeiros. Dentre estas, podem ser mencionadas as esculturas e pinturas de Alfredo Volpi, Djanira da Motta e Silva, Alfredo Ceschiatti, Frans Krajcberg, Bruno Giorgi, Maria Martins, Maria Leontina da Costa, Kennedy Bahia, Victor Brecheret. Além de estátuas de anjos e santos barrocos, a arte se faz presente no mobiliário com design do arquiteto Sergio Rodrigues, Jorge Zalszumpi e do próprio Niemayer. As pinturas flamengas do século XVII de Cornelis de Heem e Jan van Huysum realçam no conjunto da sala.

Impressionam aos visitantes da Biblioteca os três mapas antigos emoldurados: o da América do Sul (1645), do Brasil (sem data) e o da Capitania do Brasil (1656). Destacam-se também duas pequenas pinturas a óleo, Moça Sentada ao Piano (1857) e Senhora Sentada (1885), de Rodolfo Amoedo.

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Vale ainda um registro especial das obras expressivas de Di Cavalcanti, (1897-1976), grande artista do modernismo brasileiro que retratou em suas obras o cotidiano nacional popular. O painel “As mulatas”, assim como a tapeçaria intitulada “Múmias” embelezam a área de circulação que fica entre o hall de entrada da biblioteca e o salão nobre do planalto. No local também se encontram três urnas funerárias indígenas, da Ilha de Marajó e duas esculturas de Alfredo Ceschiatti. Na Câmara dos Deputados, no Salão Verde, próximo à Presidência daquela Casa, destaca-se um enorme quadro do artista Di Cavalcanti, retratando e homenageando os “candangos”, que foram os pioneiros e “heróis” da construção de Brasília. Na biblioteca ressalta-se uma tapeçaria de Emiliano Di Cavalcanti intitulada “Músicos”.

O conjunto das obras apresenta uma quantidade de telas e esculturas que mesclam arte contemporânea e antiga. A parede principal do Palacio é feita de jacarandá-da-baía. O vitral do Congresso Nacional foi concebido pela artista plástica Marianne Peretti (1927-2022).

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Não é possível continuar na descrição de tantas obras de arte presentes nesse espaço que foi legitimamente tombado como patrimônio cultural da humanidade.
A visibilidade das obras adquiriu, no entanto, outro sentido nefasto e inesperado por conta de um ataque terrorista da extrema direita, ocorrido em 8 de janeiro, feito pelos seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro em protesto contra os resultados eleitorais.
    

É lamentável igualmente o fato de que a tentativa de golpe na democracia brasileira teve participação tanto da polícia do Distrito Federal, como apoio de parte considerável das forças armadas, incluindo ainda empresários e representantes do parlamento brasileiro.

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Algumas semelhanças no modus operandi das extremas direitas?
Os bens culturais e patrimoniais construídos ao longo da história podem estar representados em diversos objetos. Além da arquitetura, outras obras destacam-se: livros, instrumentos musicais, móveis artísticos etc. São bens cujo valor extrapola sua condição material, tornando-se símbolos de uma coletividade e de uma nação.
Nesse sentido emerge a pergunta: Por que tanta fúria contra um símbolo maior da democracia no Brasil? Por que destruir um patrimônio cultural da Humanidade? Por que destruir bens culturais?


São inúmeras as questões para as quais os brasileiros(as) não conseguem ter respostas claras de imediato. A ação devastadora dos seguidores bolsonaristas parece superar entendimentos baseados na racionalidade moderna.

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No entanto, ampliando o olhar no horizonte histórico é possível encontrar um “modus operandi” das extremas direitas mundiais que muito se assemelha ao caso brasileiro. Via de regra, essas ações de vandalismo são guiadas pela vulgaridade, paranoia, falso moralismo e, sobretudo, são acompanhadas de uma violência desvairada. Não é preciso mencionar os já conhecidos danos devastadores contra a cultura e as democracias europeias causados pelo nazismo e pelo fascismo. O grande intelectual francês, André Malraux, Ministro da Cultura de Charles De Gaulle, ao constatar a barbárie nazista vaticinou: “é a primeira vez que o homem dá lições ao inferno!”.
 

Outra referência testamentária foi feita por Sigmund Freud, em 1938, quando apontava, em sua obra Moisés e o Monoteísmo, a decepção com a destruição e a intolerância: “Vivemos um tempo particularmente curioso. Descobrimos com surpresa que o progresso concluiu um pacto com a Barbárie.”
Não é demais relembrar que a Europa já foi vítima dessa experiência no passado. Atualmente, a extrema direita estendeu e banalizou suas práticas nas Américas.
 

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Os valores universais, fundamentos de nossas democracias, vem sendo minados em favor de ideias supostamente desaparecidas, ou definitivamente sepultadas em toda a Europa.

Nas últimas décadas, os partidos de extrema direita ganharam espaço e os governos populistas representam uma ameaça às democracias, tanto no Brasil como na Europa. O cordão sanitário que combate as formações de extrema-direita e a apologia ao fascismo e ao nazismo parece ter se rompido. Em consequência, as ideias de extrema direita se tornam amplamente difundidas, compartilhadas e defendidas no cenário político, midiático e social, tanto na Europa como nas Américas.

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As redes sociais têm papel fundamental nesse processo. Elas foram apropriadas pela extrema direita e direita conservadora, difundindo as conhecidas Fake-News para milhares de pessoas.   O efeito multiplicador dessa difusão transforma notícias falsas em “realidades paralelas”. Nunca pareceu tão atual a frase célebre de Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha nazista, para quem “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. A falsa “liberdade de expressão” instalou a ideia equivocada do “tudo pode”, tornando indistinta a verdade e a repetição de crenças. No bojo dessa concepção, a política no Brasil vem sendo também ameaçada no terreno de ideias que caminham rumo à tentativa de desmantelamento do Estado democrático.

Para além das explicações referentes ao fenômeno recente ocorrido no Brasil, existe uma característica comum entre os partidos antidemocráticos e autoritários: Todos possuem as mesmas obsessões. Opõem-se ao universalismo humanista que postula a igualdade e solidariedade entre os seres humanos. O horror à igualdade social, aparece em primeira linha, postando-se na vanguarda dos ódios da extrema-direita. As ideias comuns entre os vários movimentos de direita existentes no mundo podem ser elencadas: rejeição à democracia; nacionalismo exacerbado; racismo e xenofobia (medo e rejeição a toda diferença), incluindo, mais especificamente, o antissemitismo e a islamofobia existentes na Europa; os partidos autoritários têm uma obsessão pela segurança, confundem Estado e Nação, cultuam a liderança personalizada e reclamam de uma liberdade que seria exclusiva para propagação de suas ideias.

Nos Estados Unidos, a extrema direita encontra-se em plena expansão. Grupos e milícias têm feito incursões nas esferas política e social, adotando discursos polêmicos geralmente carregados de ódio. Os protestos de Charlottesville, em 2017 e do Capitólio, ocorrido duas semanas antes da posse do presidente Joe Biden, em janeiro de 2021, testemunham a presença dos novos grupos de extrema direita que disseminam sua ideologia entre a população americana. Essa extrema direita reforçada com a chegada ao poder de Donald Trump produz movimentos que enaltecem a supremacia branca, articulando-se a grupos neonazistas que incitam a guerra racial. A título de exemplo, durante o incidente de 6 de janeiro de 2021, ocorrido no Capitólio, foram identificados vários símbolos e emblemas de ódio associados a movimentos racistas. O símbolo OK, um sinal de mão referindo-se à supremacia branca, foi difundido por adeptos do grupo Proud Boys. Além disso, as meias-calças do grupo neonazista Nationalist Social Club, transformou-se em logomarca identificada no evento do Capitólio.

O Brasil possui uma extrema direita que se apresentou ostensivamente no governo Bolsonaro, demonstrando o quanto ela é perigosa para a democracia e a paz social. Ela denega a lógica racional dos fatos, cultua o negacionismo científico e o fundamentalismo religioso. A extrema direita bolsonarista constrói seu discurso na defesa dos valores morais da família cristã tradicional. Ao se aliar aos evangélicos fundamentalistas - hoje com crescente popularidade no Brasil - a extrema direita capta e engrossa a fileira de fiéis já fanatizados pela religião. As seitas religiosas se transformam em templos evangélicos fundamentalistas e são usadas para o patrulhamento religioso e ideológico, difundindo mentiras que reforçam o reduto eleitoral fascista. Ressalta-se que os pastores fundamentalistas, hoje são milionários e detêm os meios de comunicação, canais de televisões, rádios de grande alcance nacional, além do uso de redes sociais da internet.

A extrema direita conseguiu até usurpar a fé em Cristo! Hermeneuticamente deturpam os evangelhos. Em lugar de um Reino de vida, de amor e de justiça, a extrema direita fabrica cotidianamente o ódio, a raiva e a divisão, manipulando fiéis e afirmando que eles pertencem ao campo do bem em oposição ao campo do mal.

Nessa concepção maniqueísta, o Presidente Lula e o Partido dos trabalhadores, PT, incluindo toda a esquerda brasileira estariam no campo do mal. A ideia obsessiva de que “o comunismo invade o Brasil” passou a constituir um jargão repetido pelos adeptos dessa ideologia pouco afeita a dados de realidade. Todas as organizações políticas em defesa da luta contra as desigualdade, assim como as manifestações culturais são nesse sentido consideradas indignas, degeneradas ou subversivas, assim como as declarações de defesa dos direitos humanos.


Os rastros nefastos do nazismo que não devem ser apagados.

Na França, a vitória da Frente Popular nas eleições legislativas de abril-maio de 1936 foi produto da coalizão antifascista formada pelos socialistas, comunistas e radicais, após 6 de fevereiro de 1934. Dos quatro governos da Frente Popular que se seguiram, entre junho de 1936 e novembro de 1938, o mais importante foi liderado por Léon Blum até junho de 1937. A Frente Popular teve que enfrentar a oposição intransigente dos patrões e os virulentos ataques da extrema-direita Action Française que considerava Léon Blum ilegítimo para atuar em nome da República por ser judeu. As reformas sociais de seu governo também não eram aceitas, entre as mais emblemáticas, a redução da jornada de trabalho que passou para 40 horas semanais e as férias remuneradas para a classe trabalhadora. Léon Blum realizou também uma verdadeira democratização da cultura, propondo sua extensão a um maior número de pessoas. No curso dessa proposta emergiu a renovação da Comédie-Française, a criação de “Maisons de la culture” e a introdução do "lazer cultural" nas escolas.
  

Trata-se de um período próspero para a vida cultural, reunindo intelectuais, classe trabalhadora e massas populares, ou seja, os segmentos desprezados pela extrema direita.
 

No Brasil, Lula é detestado pela extrema direita porque ele foi um operário pobre migrante do Nordeste que chegou à Presidência da República em nome dos pobres e das minorias sem reconhecimento, oprimidas pela elite econômica e racista do país. Lula prioriza em sua proposta de governo a justiça social, educação, cultura e luta contra todas as formas de discriminação. Esses são valores intoleráveis para a “Casa Grande”  que é símbolo do poder tradicional. E a intolerância refere-se a qualquer forma de ascensão social dos pobres e ao tratamento uniforme destinado àqueles que “deveriam continuar na periferia da sociedade brasileira”.

A extrema direita sempre detestou os setores culturais

Entre 1933 e 1945, muitos bens culturais na Europa sofreram saques, roubos, vendas forçadas, confiscos, destruição. A partir de 1937, Hitler instruiu uma comissão, liderada pelo seu pintor favorito, Adolf Ziegler, para listar as chamadas obras degeneradas e a expurgá-las dos museus estatais. A comissão realizou um inventário, refazendo o saque sistemático das instituições. Após a saída de Ziegler, no início dos anos 1940, quando Goring assumiu o controle da comissão, foram catalogadas quase 20.000 obras. A cada uma foi atribuída uma letra: um “X” para uma obra destruída, um “V” para uma obra vendida e um “T” para uma pintura trocada, presumivelmente por outra considerada mais aceitável.

Até hoje não se tem exatamente o número de obras de arte saqueadas pelos nazistas. Ela varia conforme as fontes entre 100.000 e 400.000. Houve saque e confisco de coleções públicas e privadas em todos os países ocupados pelos nazistas, bem como a espoliação dos judeus que começou na Alemanha, em 1933.

A rejeição a certas formas de arte foi muito além do expressionismo alemão. A Alemanha de Hitler rejeitou totalmente os grandes movimentos da arte moderna da primeira metade do século XX, cubismo, surrealismo, dadaísmo ou abstração.
 

Verifica-se que até hoje a extrema direita condena manifestações culturais consideradas como indignas, degeneradas ou subversivas, assim como todas as declarações de defesa dos direitos humanos.

Os fatos repetem-se na história, como tragédia e como farsa, diria Marx. O que assistimos em Brasília foi a junção entre a destruição do patrimônio cultural da humanidade e a tentativa de golpe contra a democracia. A fúria destrutiva dos golpistas aos três poderes e a todos os objetos de arte reúne fascismo e barbárie como fios de uma mesma trama.


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