Ayrton Senna em um primeiro de maio

"Somente agora, à distância de anos, é possível ter algo semelhante à frieza de Ayrton Senna, ainda que não tenhamos a sua fé. Aquela fé superpoderosa, que dizia, 'Não tenho limites. Estou com 33 anos e acho que ainda tenho muito pela frente'"

(Foto: Divulgação)


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Agora há pouco, procurando arrumar umas linhas para esta coluna de primeiro de maio, eu me lembrei de um texto de 1994. Foi num certo primeiro, que marcou o Brasil de modo diferente. Assim foi. 

Quando Ayrton Senna morreu, estávamos eu, Francesca, Lupicínio e Luanda no bar de Eduardo, no mercado público da Encruzilhada. Tomávamos o café da manhã naquele domingo de primeiro de maio de 1994. 

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Sobre uma prateleira do bar, o português Eduardo ligara a televisão, para que os clientes assistissem a mais uma corrida de Fórmula 1. Com sinceridade, eu lhes digo que a televisão desligada, para mim, seria bem mais emocionante. Portanto, além de objetos coloridos que de passagem na tela da tevê deixavam um zumbido de voo de abelhas, eu nada mais via. Me concentrava no cuscuz com galinha, que o safado do português dizia ser “à lisboeta”, para enaltecer o tempero e o preço de uma galinha à brasileira.

Súbito, um grito. Súbito, vários gritos. Os alcoólatras das primeiras horas do dia se levantam. “Estão bêbados”, me digo, e nem sequer olho para a televisão. Mas o som sobe, fica mais alto, e me viro para ver: Eduardo se esquecera de tudo, e se plantara bem juntinho à tela, como se surdo fosse. Ele parecia querer entrar em Ímola naquele instante, procurando entrar na imagem da televisão. Os bêbados e os sóbrios também se fecham, compactos, em pé. Então ouço, se não me falha a memória, “Senna bateu, Senna bateu ... o acidente é sério ... a cabeça dele se mexeu... ele está vivo...”, e mais adiante, “nós torcemos para que ele esteja vivo... é muito sério.... bateu a mais de 200 por hora... pelo amor de Deus, todos torcemos para que esteja vivo....”. 

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Então eu soube que Senna havia sofrido um acidente, muito sério. Paguei a conta e saí. Notei que Eduardo nem contou o dinheiro pago.

No decorrer daquelas horas do domingo, eu e o resto da gente esperávamos mais uma vitória de Senna. Ele batera antes, outras vezes. Ele escapara milagrosamente de acidentes, para surgir em pé, em meio à poeira, imune, sem riscos, sem amasso no vinco do macacão. Era mais que um caubói, como um Clark Kent sem óculos 24 horas por dia, com um sorriso de kriptonita. “Se depender de mim, vocês, jornalistas, irão esgotar todos os adjetivos do dicionário”, dizia, entre uma corrida e outra. Aquilo passava, passaria, não podia mesmo ser muito sério. As pessoas, no entanto, não descolavam os olhos da televisão. Em dúvida, até o fim. Que foi: “Ayrton Senna está morto”.

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Houve muita estupidez junta proclamada naqueles dias. Dos enfáticos, “Senna era o Brasil que dava certo”, até chegar aos bárbaros da nossa memória, que proclamavam: “O Brasil perde o seu maior herói”. Essas coisas, a formar uma procissão, terminaram por empanar o brilho real do  real talento de Senna, da sua real pessoa, do seu real, à margem do seu valor em dólares. Havia nele, passada a tempestade das lágrimas, passada a rendição ao culto do espetáculo, passada a admiração por seu sucesso, havia nele uma disciplina, um método de trabalho, uma paixão pelo que fazia, que muito nos serve, a todos, corredores, sedentários, amantes das pistas ou das artes. Havia nele, nesse homem que se foi aos 34 anos, um drama que reclama um criador, sim, um poeta, daqueles que ganham mil reais por mês, daquele tipo de imortal brasileiro que é imortal porque não tem onde cair morto.

Naquele primeiro de maio, engasgado, nada pude falar. Eu não gostava, não gosto e jamais gostarei de corrida de carro. E mais me engasgava aquele culto ao herói, para mim um falso herói, pois sabia e sei quantos mais valorosos existem entre toda a gente. Mas havia um drama humano sem palavras que não se falavam, apenas se pressentia. Era um fenômeno além das pistas, além da fama. Havia um drama humano em Senna e sua morte. E, por último e por fim, não era decente ser a voz discordante de uma tragédia, quando todo o povo chorava. Então entrei no fusquinha e voltei para casa. No caminho, vi filas de carros em silêncio e tristeza.  

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Somente agora, à distância de anos, é possível ter algo semelhante à frieza de Ayrton Senna, ainda que não tenhamos a sua fé. Aquela fé superpoderosa, que dizia, “Não tenho limites. Estou com 33 anos e acho que ainda tenho muito pela frente”. Nem mesmo o super-homem seria capaz de afirmar algo parecido. Clark Kent sempre soube que o excesso de exposição à kriptonita era o seu limite: matava.

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