As razões de um assassinato

Quem matou o embaixador de Moscou em Ancara queria frustrar um movimento geopolítico crucial: a Turquia está cada vez mais próxima da Eurásia, para desespero dos EUA e União Europeia

Embaixador russo na Turquia, Andrei Karlov, no chão após ser morto a tiros por homem armado em galeria de Ancara. 19/12/2016 Hasim Kilic/Hurriyet via REUTERS
Embaixador russo na Turquia, Andrei Karlov, no chão após ser morto a tiros por homem armado em galeria de Ancara. 19/12/2016 Hasim Kilic/Hurriyet via REUTERS (Foto: Pepe Escobar)


✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Vamos logo ao que interessa: Ancara 2016 não é Sarajevo 1914. Não é prelúdio da 3ª Guerra Mundial. Quem tenha urdido o assassinato do embaixador russo na Turquia Andrei Karlov – diplomata calmo, educado, contido, da velha escola russa – pode esperar revide de altíssima octanagem.

O assassino Mevlut Mert Altintas, graduado da Academia de Polícia, 22 anos, recebeu pena de suspensão da Polícia Nacional Turca por suspeita de laços com a Organização Terrorista Fethullahista [ing. Fethullahist Terrorist Organization (FETO)] depois do fracassado putsch de 15 de julho contra Erdogan, mas retornou ao serviço em novembro.

Não é segredo que os gulenistas estão pesadamente infiltrados dentro da Polícia Nacional Turca; assim sendo, um específico efeito do ataque será ataque ainda mais furioso e incansável, de Erdogan/AKP contra a rede de Gulen. A investigação turca terá de se concentrar na falha (gigantesca) de segurança naquele prédio do moderno centro de artes de Ancara, – mas também terá de alcançar outros muitos pontos. A evidência de que o ministro do Interior turco Suleyman Soylu só se manifestou, em frases tensas, mais de três horas depois do evento mais preocupa que tranquiliza.

O assassino, vestido num terno preto com gravata, gritou slogans sobre vingança "por Alepo" – incluído o indefectível "Allahu Akbar" – em língua turca e em árabe, coisa que pode estabelecer alguma conexão com a retórica de um grupo islamista, mas não é prova conclusiva.

O momento do crime é crucialmente importante. Aconteceu apenas um dia antes da reunião dos ministros de Relações Exteriores de Rússia, Turquia e Irã, em Moscou, para discussão estratégica sobre a Síria. Já estavam em contato próximo há várias semanas, prontos para firmar um amplo acordo sobre Alepo – e além de Alepo.

E isso exatamente depois do acordo crucial, recentemente assinado entre Pútin-Erdogan, que implica nada menos que milhares de "rebeldes moderados" sob comando da Turquia serem autorizados a safar-se por um "corredor" para fora de Alepo. Ancara estava perfeitamente informada sobre esse desenvolvimento. Só esse detalhe basta para eliminar a possibilidade de ataque provocado por Ancara sob falsa bandeira.

O presidente Pútin, por sua vez, disse muito claramente que quer saber "quem dirigiu o assassino". Pode-se interpretar como alguma espécie de código sutil para dizer que a inteligência russa já sabe quem fez o que.

O Grande Quadro


No front bilateral, Moscou e Ancara trabalham atualmente juntas e muito próximas no campo do contraterrorismo. O ministro da Defesa da Turquia foi convidado a visitar a Rússia para negociações do sistema de defesa antiaérea. O comércio biliteral está novamente florescendo, inclusive com a criação de um fundo conjunto de investimentos. No sempre importante front da energia, o gasoduto Ramo Turco, apesar da obsessão no governo Obama para fazê-lo desandar completamente, foi consolidado numa lei do estado turco, em Ancara, no início de dezembro corrente.

Os atlanticistas estão em pânico, agora que Moscou, Ancara e Teerã estão trabalhando em tempo integral para traçar as linhas de um futuro para a Síria depois da Batalha de Alepo e exclusão e vergonhosa expulsão de lá, de todo o combo Otan-CCG (Conselho de Cooperação do Golfo).

Sob esse contexto é que de deve interpretar a recente noticiada captura pelas Forças Especiais Sírias em Alepo, de um punhado de agentes de Otan-CCG – operando na Síria camuflados" dentro da "coalizão" que os EUA lideram pela retaguarda.

Fares Shahabi, deputado do Parlamento sírio, presidente da Câmara de Comércio em Alepo, publicou os nomes dos agentes presos. A maioria são sauditas; há um qatari; a presença de um marroquino e um jordaniano explica-se porque Marrocos e Jordânia são membros "não oficiais" do CCG. Mais um turco, um norte-americano (David Scott Winer) e um israelense. Apenas dois agentes da Otan, mas a conexão Otan-CCG está super estabelecida. Se essa informação procede – ainda há um grande "se" – esses todos podem bem ser a coalizão de pessoal militar e comandantes de campo que antes dava aconselhamento aos "rebeldes moderados" e agora está convertida em formidável moeda de troca nas mãos de Damasco.

Ambos, Otan e CCG não disseram uma palavra; nem negações do tipo "não nego que…" apareceram até agora. Pode significar algum acordo clandestino já firmado para a saída de prisioneiros de alto valor, o que dá ainda mais peso à posição de Damasco.

Foi o presidente Pútin que realmente estabeleceu um eixo de fato Rússia-Irã-Turquia para lidar com fatos em campo na Síria – ação paralela ao embuste e solução-zero dos "trabalhos" em andamento na ONU em Genebra. Moscou enfatiza diplomaticamente que o trabalho do eixo complementa o que se faz em Genebra. De fato, o russo é o único trabalho baseado na vida real. Espera-se que tudo esteja assinado, com parâmetros definitivos bem fixados em campo ainda antes de Donald Trump entrar na Casa Branca.

Resumidamente: o projeto combo de mudança de regime, cinco anos (e ainda não terminou), que custou à Otan-CCG multibilhões de dólares, para expulsar Assad da Síria… fracassou miseravelmente. Erdogan, o matreiro, parece que afinal aprendeu sua lição de realpolitik. Mesmo assim, foram abertas no front atlanticista miríades de avenidas para canalizar o ressentimento geopolítico.

O grande quadro não poderia ser mais absolutamente insuportável para os atlanticistas neoliberais/neoconservadores. Lentamente, mas sem parar de andar, Ancara vai tomando o rumo da Eurásia. Bye bye União Europeia e, talvez, Otan; bem-vindas as Novas Rotas da Seda, também chamadas Projeto Um Cinturão, uma Estrada [ing. One Belt, One Road (OBOR)], puxado pela China; bem-vinda a União Econômica Eurasiana [Eurasia Economic Union (EEU)] puxada pela Rússia; bem-vinda a Organização de Cooperação de Xangai [Shanghai Cooperation Organization (SCO)]; a parceria estratégica Rússia-China; e a Turquia como nodo chave de entroncamento na integração da Eurásia.

Para que tudo isso aconteça, Erdogan concluiu que Ancara tem de estar a bordo da estratégia de longo prazo de Rússia-China-Irã para pacificar e reconstruir a Síria e fazer dela um nodo chave também das Novas Rotas da Seda. Entre isso e uma "aliança" de interesses em conflito, com Catar, Arábia Saudita e EUA, a escolha não é difícil.

Mas que ninguém se engane. Ainda haverá sangue.

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.

Comentários

Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247

continua após o anúncio

Ao vivo na TV 247

Cortes 247