As negras raízes do tango argentino

(Foto: Divulgação El Abrazo Tango)


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E se alguém lhe dissesse que o tango, principal gênero musical argentino e que sempre teve na figura de Carlos Gardel o seu principal ícone, é de origem africana e nasceu na periferia do país entre os afro escravizados, você ficaria surpreso? Pois então, não se surpreenda tanto. Assim como rock, também de raízes africanas e que teve no canto dos afros americanos escravizados a extração da sua essência, passou por um processo de branqueamento cultural quando a indústria fonográfica transformou Elvis Presley no grande rei do gênero, ignorando o trabalho precursor de vários outros artistas negros, como Muddy Waters, Chuck Berry e Little Richard, o tango também foi vítima do mesmo processo de apropriação cultural e de invisibilização de seus criadores.

Não apenas na música, mas também em outras vertentes culturais, como, por exemplo, a religiosa, a contribuição dos africanos foi muito significativa para a formação da cultura no país. A Festa de San Baltasar, um dos três reis magos, conhecido como “el santo negro”, que é comemorada no dia 06 de janeiro, dia dos Santos Reis Magos no Brasil, é uma das grandes manifestações religiosas celebradas pelos descendentes de africanos do país. A festividade é composta por toques e danças de influência africana, entre elas, o Candombe, que são oferecidos em culto ao santo. Apesar de ser um país de maioria cristã, a Argentina, depois do Brasil, é o país da América do Sul onde mais se encontram terreiros de Umbanda, segundo pesquisa feita pelo antropólogo Ari Pedro Oro, autor do livro “Axé Mercosul”, lançado em 1999 pela editora Vozes. Um dado que surpreende, uma vez que Buenos Aires, a capital do país, é formada por uma população majoritariamente branca, tendo os indígenas como grupo minoritário e os afrodescendentes como inexistentes.

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A negação da negritude na Argentina é quase um pacto pela criação de uma nova identidade étnica e cultural para aquele país. Apesar de registros históricos mostrarem que há mais ou menos 200 anos, os negros representavam 20% da população da capital argentina. Na tentativa de apagar qualquer resquício da presença africana da história do país, houve uma manipulação que se tornou a história oficial ensinada nas escolas e que virou o cânone da historiografia argentina. Um processo de invisibilidade que resultou no esquecimento historiográfico de figuras como Maria Remédios del Valle, uma mulher de origem africana, que integrou os exércitos de Manuel Belgrano na luta pela independência do país do domínio espanhol. Devido às suas importantes contribuições, Maria Remédios foi proclamada a “mãe da pátria argentina”, título que lhe pertenceu até 1870, quando começou a história sobre a imigração passou a ser reescrita e toda a herança africana ocultada.

Antes de Gardel imortalizar o tango de nossos “hermanos”, outros músicos contribuíram para que o gênero se tornasse a principal referência da cultura argentina. Entre eles, Gabino Ezeiza, que ficou conhecido como El negro Ezeiza, por causa de sua cor. Compositor, cantor e violonista, Ezeiza, que começou sua carreira aos 15 anos de idade, foi considerado o maior artista de payada, uma forma de poesia improvisada, da história do país. Compositor de tango, Gabino inseriu a famosa milonga nos desafios de trovas dos quais participava. Morto em 1916, teve seu maior sucesso, “Heroico Paysandu”, gravado por Carlos Gardel em 1922. Outro músico negro argentino que teve grande importância na evolução do tango, foi Higino Cazón, que gravou os primeiros tangos crioulos da história do gênero. Payador, escritor e compositor, formou um grupo de tango juntamente com os compositores José Madariaga e Àngel Villoldo.

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De todos os músicos de descendência africana que contribuíram para a história do tango como gênero musical, Rosendo Mendizabal foi, sem dúvida, o mais importante deles. A partir de sua figura, podemos encontrar toda a presença africana na origem do tango. O antropólogo argentino Norberto Pablo Círio, organizou uma mostra onde centenas de peças que compõem a exposição, provam a origem africana do tango sempre apresentada na academia sob uma perspectiva branca. Entre as raríssimas peças, encontra-se uma partitura original de “El Entrerriano”, composta em 1897 e umas das principais composições de Rosendo Mendizabal, que, na opinião do antropólogo, marca o início da “Guardia Vieja”, a velha guarda do tango, como período estilístico. Embora o seu surgimento data de épocas anteriores, é nesse período que o tango consolida a sua identidade, originalidade e coreografia próprias.

Outros nomes importantes nessa fase do tango argentino e que são destacados na exposição por Norberto Pablo, que é autor de um artigo acadêmico intitulado “La música afroargentina através de la documentación iconográfica”, são o do compositor Ruperto Leopoldo Thompson e do pianista e maestro Horacio Adolfo Sálgan, considerado um dos pioneiros do tango de vanguarda, que também é chamado de tango de ponta. Morto em 2016, aos 100 anos de idade, Horacio foi líder do grupo “Quinteto Real” um dos mais emblemáticos conjuntos de tango argentino e autor de clássicos como: "A fuego lento", "Don Agustín Bardi" e "Cortada de San Ignacio", verdadeiras pérolas do gênero. Fazendo um comparativo entre o tango e a bossa-nova, eu diria que Horacio Sálgan é uma espécie de Johnny Alf argentino. Johnny, que era negro e homossexual, inspirou Tom Jobim que ia assistir a seus shows na boate do Hotel Plaza, em Copacabana. Relegado a segundo plano dentro movimento musical da zona sul carioca, Alf perdeu a paternidade do gênero o qual foi um dos criadores e seu nome pouco é lembrado quando se fala em bossa-nova no Brasil.

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A negação das negras raízes do tango no país onde o gênero predomina, é apenas um recorte do epistemicídio sofrido pelos afrodescendentes, que tiveram a sua cultura, conhecimentos e produção de saberes apagados da história. Uma nação que nega a sua própria identidade, promove o empobrecimento de sua cultura e, consequentemente, de seu povo. Um país que, segundo registros históricos, já teve 46% de sua população total composta por africanos escravizados em 1778, precisaria saber respeitar a memória e as realizações feitas por aqueles que produziram muito daquilo que hoje se utiliza culturalmente a sua sociedade. Assim como o Jazz, o tango tem raízes populares e africanas.

O antropólogo Norberto Pablo Círio considera que conhecer as raízes do tango é conhecer o tango em si mesmo e aponta a geração acadêmica dos anos 80, como a responsável pelo desaparecimento dos afro argentinos da história, através da construção de uma narrativa revisionista, onde disciplinas importantes para o desenvolvimento do senso crítico dos estudantes, como sociologia, antropologia e musicologia, obedeceram a essa narrativa eurocêntrica e dominante sem a questionar. Ele também denuncia que os argentinos são educados para não ver e nem ouvir os negros, uma orientação talvez sugerida com a finalidade de não identificar as heranças africanas na cultura do país. Principalmente, na música, onde através da escuta é possível perceber as influências contidas naquela musicalidade.

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Da mesma forma que a sociedade norte-americana rejeitava o rock, em função de sua origem africana iniciada ainda nos Spirituals, o canto através do qual os escravizados externavam o seu lamento e sua dor, passando pelo gospel e pelo blues, a sociedade argentina só fez do tango uma paixão nacional quando o gênero começou a ser comercializado por meio de artistas brancos como Gardel. Porém, é preciso fazer justiça a toda uma ancestralidade musical que sofreu com a violência da discriminação e teve suas geniais obras subestimadas apenas por serem compostas por artistas cuja cor da pele não “respeitava” os padrões considerados aceitáveis para a época.  O tango, que hoje é patrimônio cultural imaterial da humanidade, é música de preto e não pode mais continuar a ter as suas origens negadas.  

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