As milícias da pandemia

"Quem morria era substituído imediatamente pelo próximo trabalhador que aguardava nos presídios especiais montados nos estádios, onde antes ficavam os hospitais de campanha. As milícias recolhiam os cidadãos que se recusavam a trabalhar e ali aguardavam a primeira vaga", escreve em crônica o cartunista Miguel Paiva

(Foto: Miguel Paiva)


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Por Miguel Paiva, para o Jornalistas pela Democracia 

Era mais de um mês que estavam escondidos naquela velha garagem abandonada. As carcaças dos automóveis abandonados serviam de quarto para quem estava ali.  À noite o silêncio só era quebrado pelos motores das pick-ups dos milicianos que faziam a ronda atrás dos trabalhadores fugitivos. Por sorte aquela garagem não chamava a atenção. Estava localizada embaixo de uma antiga repartição pública fechada no início da pandemia. Os servidores que trabalhavam ali foram todos demitidos sumariamente e obrigados a se empregar nas empresas que haviam rompido a quarentena. 

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Alguns conseguiram escapar não só do trabalho como da morte. O índice de rodízio na iniciativa privada era enorme. Quem morria era substituído imediatamente pelo próximo trabalhador que aguardava nos presídios especiais montados nos estádios, onde antes ficavam os hospitais de campanha. As milícias recolhiam os cidadãos que se recusavam a trabalhar e ali aguardavam a primeira vaga. Famílias eram separadas. As mulheres e as crianças eram levadas para hotéis e dormitórios onde junto com os idosos e outros elementos de risco passavam a residir, indefinidamente. 

Mas a economia não podia parar. O estado de sítio havia sido decretado em alguns lugares do Brasil. As milícias governistas haviam tomado o poder com a concordância do presidente e de alguns ministros. Ocuparam Brasília e foram se alastrando pelo país e onde venciam a disputa assumiam o governos. Alguns estados resistiram e fecharam suas fronteiras.

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Ali naquela garagem estavam trabalhadores informais, técnicos, ambulantes e profissionais liberais fugitivos da pandemia. Famílias tentavam se manter unidas e à noite alguns deles se organizavam para sair em busca de comida. Era uma tarefa difícil. Achar o que comer e ainda escapar das milícias que percorriam a cidade.

E aquela noite foi particularmente difícil. Foram pegos quando entravam num supermercado sorrateiramente. Eram 2 da manhã e o estabelecimento estava aberto. Poucos funcionários, mas o gerente acabou dando o alarme depois de reconhecer a turma dos "Isolados". Eles tentaram correr mas uma pick-up  subiu na calçada e bloqueou o caminho de fuga deles. Os milicianos desceram e aos gritos foram empurrando os novos prisioneiros para a caçamba do veículo. Alguns resistiram e apanharam feio. Um deles correu e foi atingido por um disparo. Caiu na rua escura para espanto de um cachorro faminto que passava por alí. Uma janela se acendeu no alto do edifício. 

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A população acuada daquele lugar tinha voltado ao trabalho colocando seu destino nas mãos de deus. Alguns fugiram para os estados rebeldes mas quem não podia rezava todos os dias. Da janela alguém gritou: "Fica em casa". Um dos milicianos atirou e a luz do apartamento se apagou.

Os prisioneiros foram colocados lado a lado e aguardaram o motorista atirador assumir seu posto. Ele chegou à porta do veículo e hesitou. Soltou a arma e colocou a mão na testa.

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- Acho que estou com febre. Não estou conseguindo ficar de pé.

Os outros dois que o acompanhavam não pareceram se assustar. Um deles pegou a arma, colocou nas costas, ajudou o amigo a se recostar na parede do edifício e ligou para alguém. Ouviu instruções enquanto o outro ameaçava os fugitivos na pick-up.

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- Quem se meter a engraçadinho morre aqui mesmo.

O miliciano que falava ao celular e que tinha ajudado o parceiro a encostar no muro veio em direção ao carro. Ele também hesitou e cambaleou.

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- Acho que bebi demais hoje. Estou tonto e com dor de cabeça.

- É só um pilequinho. Quer que eu dirija?

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- Não sei. Melhor você chamar reforços. Somos só dois e eles são cinco.

O miliciano pegou seu celular para chamar reforços e com isso acabou se distraindo. Ele também estava meio zonzo. Foi se afastando para ligar enquanto os fugitivos que percebiam a situação foram se levantando e saindo do veículo. Um deles tinha perdido a máscara de proteção que usava. Colocou o próprio casaco em volta do rosto e os cinco foram se afastando. 

Na rua se via aquela pick-up preta com os faróis acesos e um dos milicianos que sentado no meio fio tentava falar com alguém. Os outros dois pareciam dormir encostados na parede. Os cinco fugitivos se afastaram e seguiram pela rua deserta. No alto do prédio uma outra luz se acendeu. Alguém acenou lá de cima e jogou um pacote com alimentos. Ao longe uma sirene de ambulância anunciava que os números de doentes não parava de subir. A luz do alto do prédio se apagou e tudo voltou ao silêncio e à escuridão. Ficar isolado, mesmo escondido e apesar de tudo, ainda era o único remédio.

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