As guerras e as comparações perigosas

"A manipulação da informação é o normal no estado da arte de uma guerra", escreve Flávio Aguiar

Um soldado tira uma foto de seu companheiro enquanto ele posa ao lado de um tanque russo destruído e veículos blindados, em meio à invasão da Rússia na Ucrânia em Bucha, na região de Kiev, Ucrânia 2 de abril de 2022
Um soldado tira uma foto de seu companheiro enquanto ele posa ao lado de um tanque russo destruído e veículos blindados, em meio à invasão da Rússia na Ucrânia em Bucha, na região de Kiev, Ucrânia 2 de abril de 2022 (Foto: REUTERS/Zohra Bensemra)


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Por Flávio Aguiar 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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“A razão, já tão insuficiente para prevenir as nossas desgraças, ainda mais o é para nos consolar delas”. (Choderlos de Laclos, Les liaisons dangereuses).

Em termos de guerras, meu batismo de fogo jornalístico se deu com a Guerra do Vietnã. Na verdade, foi um batismo de fogo sem fogo. Ele aconteceu porque no começo de 1970 fui trabalhar no escritório brasileiro da United Press International (UPI), em São Paulo, no mezanino do antigo prédio do Estadão, na rua Major Quedinho, 28, esquina com a rua Martins Fontes.

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Era no tempo do telex e da máquina de escrever, que faziam um barulhão danado. Eu e mais uma dezena de jornalistas éramos tradutores para o português das notícias que chegavam em inglês. Muito de vez em quando aparecia uma notícia em espanhol, ainda mais raramente alguma em francês. E também muito de vez em quando a gente escrevia alguma matéria sobre tema brasileiro, que seguia para o exterior pelo telex.

Com a barulheira e a posição permanentemente sentada, o trabalho era considerado insalubre, e o turno diário era de cinco horas, sem pausa. Havia atenuantes: as cadeiras eram mais altas do que o comum, e as mesas mais baixas. Os braços da gente ficavam meio “caídos”, forçando menos a musculatura. Eu trabalhava no turno da tarde, a partir das 13 horas, até as 18. De quinze em quinze dias a gente dava plantão nos fins de semana. O chefe de redação chamava-se Mário, e além de nós, tradutores, havia um repórter externo e sempre um ou mais datilógrafos que trabalhavam nos telex transmissores, enviando as traduções para a rede de clientes da UPI no Brasil, e também, vez ou outra, nossas poucas matérias, em inglês, para o exterior. Mário recebia as matérias impressas pelos aparelhos de telex e as distribuía para nós, os tradutores. Depois ele as revisava e repassava para o operador de telex.

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Detalhe: éramos todos homens. Não havia mulheres. Mas naquele ano de 1970, isto mudou. Pelo fim do ano entrou, por minha indicação, a Lúcia para o corpo de tradutores. De início os jornalistas mais velhos rezingaram, pois o número de palavrões e de piadas hoje consideradas machistas ficou reduzido a zero. Mas depois se acostumaram: a Lúcia era uma simpatia.

Os jornalistas veteranos eram dois. Trabalhavam de paletó e gravata, ao contrário de nós, da juvenília, que ficávamos em manga de camisa, porque mesmo no inverno a sala fervia de calor. Um dos mais antigos ainda usava expressões, em textos esportivos, como “a redonda foi beijar o véu da noiva”, para referir-se a um gol. Por outro lado, eu tive de me adaptar, pois chegado em São Paulo havia um ano, vindo do Rio Grande do Sul, ao invés de “gol” eu ainda usava a palavra “golo”, como até hoje se escreve em Portugal.

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Voltemos ao fio da meada. Naquele início de 1970, além do noticiário da guerra na Ásia dominar grande parte das matérias recebidas, multiplicavam-se os protestos contra ela nas universidades norte-americanas e também, por tabela, na América Latina e na Europa. Eu vivera nos Estados Unidos durante o ano letivo de 1964/1965, e lá retornara em 1968. Graças a isto o Mário começou a me repassar as notícias referentes aos protestos, para eu acrescentar-lhes “uma cor local”, se pudesse. Por extensão, ele passou a me dar grande parte do noticiário sobre o conflito. E assim eu me tornei, na redação, uma espécie de “especialista” em matéria de Guerra do Vietnã.

Uma explicação retroativa, que nos levará a outra prospectiva. Meu primeiro contato com a aquela Guerra se dera naquele período escolar de 1964-1965, através de dois meios: as notícias sobre o conflito, em jornais, revistas, no rádio e na televisão, e os protestos que já existiam contra a guerra, nos Estados Unidos, onde floresciam as “protest songs” de Bob Dylan, Pete Seeger, Peter, Paul and Mary, Harry Belafonte, Joan Baez, e outras e outros, muitos dos quais assisti ao vivo e a cores.

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Recordo-me de ter visto cenas, por exemplo, de soldados norte-americanos, cuja presença no conflito se intensificava, interrogando prisioneiros vietcongues, calcando-lhes facas na barriga e coisas semelhantes. Mas o grosso do noticiário era meio neutro ou favorável à intervenção, “para salvar a democracia” e argumentos afins. Na High School onde eu estudava, em Burlington, estado de Vermont, chegamos a estudar um dos livros do diplomata norte-americano George Kennan, especialista em União Soviética, onde fora embaixador. Foi um dos formuladores da chave para a política externa dos Estados Unidos durante a Guerra Fria: “contenção da União Soviética”, vista como uma potência irremediavelmente expansionista. Entretanto deve-se dizer que Kennan se posicionara contra o envolvimento dos EUA no Vietnã.

Em 16 de março de 1968 registrara-se mais uma “vitória” dos soldados norte-americanos contra os vietcongues, na aldeia de My Lai. Estranha vitória: registrara-se mais de uma centena de vietcongues abatidos, e algumas dezenas de civis “infelizmente” mortos no meio dos bombardeios por terra e ar, e nenhum morto ou ferido entre os esquadrões dos Estados Unidos.

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O tempo passou e aquele estranho combate ficou ruminando nos corações e mentes de muita gente. Até que vinte meses depois, em novembro de 1969, baseado sobretudo numa entrevista com o tenente William Calley Jr., o jornalista freelancer Seymour Hersh começou a puxar o fio da meada do outro lado daquela estranha “vitória”. Na verdade, não houvera combate nenhum, nem havia vietcongues mortos: eram todos civis, na grande maioria mulheres, crianças e idosos. Por alguma razão que até hoje permanece meio submersa, os oficiais e soldados que participavam da operação numa aldeia remota do Vietnã, decidiram matar, segundo outro depoimento, tudo que ali “caminhava, engatinhava ou se arrastava”.

Não houvera combate: houvera um massacre, uma carnificina. Ainda houve uma tentativa por parte do governo norte-americano para neutralizar a notícia, mas em vão. Logo outros jornalistas, incluindo televisões, começaram a explorar a revelação, com novas entrevistas feitas com outros envolvidos na tragédia. O número de mortos cresceu assustadoramente, e hoje é estimado entre 350 e 500.

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O “Massacre de My Lai”, como ficou conhecido, expôs, pela primeira vez em termos cabais, um lado estranho da contabilidade da guerra, que tínhamos de traduzir nos despachos que nos chegavam. Com frequência aquela contabilidade registrava como “vietcongues” os civis mortos nas operações, fossem elas terrestres, navais ou aéreas, o que resultava em cifras exageradas: para cada militar norte-americano ou sul-vietnamita morto, morriam dezenas e dezenas de “guerrilheiros” inimigos.

Estas informações começaram a ganhar o proscênio do noticiário, ou pelo menos dos nossos comentários internos, já que não podíamos escrevê-las nos despachos.

E nos Estados Unidos a maré da cobertura midiática começou a virar, devido a mais uma tragédia. No dia 4 de maio centenas de estudantes concentraram-se nos pátios da Universidade de Kent, estado de Ohio, em protesto contra a decisão, anunciada uma semana antes pelo presidente Richard Nixon, de estender a guerra ao território do Camboja. Um grupo de 300 deles aproximou-se do batalhão de soldados da Guarda Nacional que recebera ordem de dispersa-los e começara a jogar bombas de gás lacrimogêneo sobre os manifestantes, além de ameaça-los com baionetas caladas. Alguns estudantes responderam, jogando pedras sobre os soldados.

Em certo momento os militares começaram a atirar com suas armas carregadas com balas de verdade. Mataram quatro estudantes no ato e feriram outros nove. Era a primeira vez em toda a história dos Estados Unidos que estudantes foram assassinados durante um protesto pacifista. O acontecimento provocou uma onda gigantesca de protestos e greves em inúmeras universidades do país e a opinião pública sobre a guerra, junto com a cobertura da mídia, começou a virar.

A extensão da guerra ao território do até então neutro Camboja me deu uma outra preciosa lição. Os exércitos sul-vietnamita e norte-americano começaram a invasão entre 29 de abril e 1º de maio, que fora precedida por uma série de operações preliminares. Seu objetivo era atacar unidades do exército norte-vietnamita contornando o território contíguo do Vietnã do Sul, onde as operações eram dificultadas pela presença dos vietcongues.

Lembro-me muito bem do primeiro despacho sobre a invasão, que o Mário me passou, dias antes da tragédia de Kent. Começava dizendo que as forças sul-vietnamitas e norte-americanas estavam encontrando problemas para avançar, devido a dificuldades no terreno e a uma resistência inesperada que encontravam. Assinalava que as tropas empenhadas tinham avançado “apenas” “x” (o número exato não lembro) milhas a contar do seu ponto de partida.

Mal começara a traduzir o despacho, quando soou a campainha estridente de um dos telex, anunciando a chegada de matéria considerada urgente. Era um texto que substituía o que eu recebera, sendo que este primeiro deveria ser “anulado”. Dizia o novo texto que os exércitos invasores avançavam céleres e já se encontravam a “y” milhas (que a gente tinha de converter em quilômetros) de seu objetivo. Aquilo, que era uma operação difícil e retardada pela resistência do inimigo, se transformava num avanço célere e triunfal.

Foi assim, através da contagem de mortos e da quilometragem, que aprendi ao vivo e a cores, além de na carne e ossos de meus dedos, ao contrário de suposições, que a manipulação da informação é o normal no estado da arte de uma guerra. Porque há sempre, pelo menos, duas guerras numa: a dos campos de batalha e a da mídia. Não se trata apenas de fazer propaganda de um dos lados. É preciso convencer as pessoas atingidas de que elas estão de fato convencidas. Esta afirmação pode parecer uma tautologia, mas não é. Porque não basta apresentar o seu lado como justo e correto; é preciso satanizar o outro lado, reduzi-lo a imagens grotescas e monstruosas.

Novamente me valho do exemplo de My Lai. Durante o levantamento das primeiras suspeitas, apareceu a informação de que alguns militares norte-americanos tentaram e em alguns casos conseguiram proteger os civis massacrados. Logo a informação transformou-se em denúncia: foram rotulados – inclusive no Congresso dos Estados Unidos – como “traidores” que tinham ajudado o “inimigo”. Anos depois esses militares foram condecorados com medalhas de honra. Um deles a “recebeu” postumamente, pois morrera em combate alguns dias depois da ação em My Lai.

Depois daquele ano de 1970 a vida prosseguiu, com suas veredas e quebradas. Vi-me envolvido na cobertura, ainda que episódica, ou simplesmente no acompanhamento de outras guerras. Revi ou refiz julgamentos sobre outras guerras anteriores que eu testemunhara à distância ou de modo mais próximo, como guerras de libertação nacional na África ou as das guerrilhas latino-americanas, além da repressão soviética em Berlim, na Hungria e na Tcheco-eslováquia. Neste vai-vem cronológico aprendi que cada guerra tem suas múltiplas especificidades, e que uma maneira de mistificá-las é recobrir uma com a retórica de outra.

Um exemplo dramático disto encontrei na perseguição e extermínio de grupos guerrilheiros no Brasil durante a ditadura civil-militar de 1964 a 1985. Muitas vezes as palavras usadas na mídia que apoiava a repressão para caracterizar os perseguidos parecia provir – pasme, leitora ou leitor – da Guerra de Canudos. Os líderes dos guerrilheiros eram apresentados como “loucos”, “insanos” e outros adjetivos da mesma laia. Recordo-me de uma reportagem em que se dizia que o Capitão Lamarca era “vesânico”, termo então já arcaico, mas que fora largamente utilizado para caracterizar Antonio Conselheiro como “doido”, no século XIX e no começo do XX, além de seus seguidores.

Com relação à mídia mainstream do Ocidente, algo aconteceu depois no percurso entre os anos 1970, quando boa parte dela passou a denunciar a Guerra do Vietnã e os crimes nela cometidos pelos Estados Unidos, e os anos 1990. Não sei se as causas das mudanças estiveram na financeirização mundial dos mercados e economias promovida pelos anos de neoliberalismo galopante dos tempos de Reagan-Tatcher com seus coadjuvantes mais longevos João Paulo II e depois Boris Yeltsin, ou nas mudanças dramáticas por que passou o universo da informação com o crescimento hegemônico das esferas virtuais, ou se ambas ou ainda outras.

O fato é que essa mídia foi aos poucos “se curando” das “veleidades” dos anos 70. O ápice deste processo de “cura” aconteceu durante a invasão do Iraque, em 2003, em que a mídia repetiu monocordicamente o mantra das “armas de destruição em massa”, justificando a proeza militar, para anos depois constatar que elas simplesmente não existiam. Bem, de fato, tinham existido: foram fornecidas a Saddam Hussein para usa-las contra o novo arqui-inimigo dos EUA, o Irã. Mas elas foram usadas, e acabaram.

Agora estamos às voltas com outra guerra, dentre as muitas disputadas pelo globo e de momento um tanto sepultadas, a disputada na Ucrânia, em torno da qual pululam versões e interpretações as mais desencontradas. A disputa em torno da narrativa que vai prevalecer é tão renhida quanto, aparentemente, pelo que se sabe e presume, a disputa no campo de batalha.

Há uma tentativa maciça por parte da mídia mainstream Ocidental de recobrir esta guerra com uma retórica e uma cenografia que descendem da Segunda Guerra Mundial. De um lado estão as qualidades da “Resistência” virtuosa e do outro a selvageria, a brutalidade, a crueldade do invasor. Apoiam a “Resistência” os “aliados democráticos e benfeitores da humanidade”, personificados nos Estados Unidos, no Reino Unido e na OTAN, que jogam armas e mais armas na fogueira da guerra, naturalmente do seu lado “justo e correto”.

E não faltam as vozes que estigmatizam quem não pense exatamente desta forma como gente insensata que apoia o autoritarismo do novo amálgama de Hitler, Stalin e Pedro, o Grande: o inescrutável Vladimir Putin a quem, diga-se de passagem, de fato não faltam qualidades de déspota nada esclarecido. A satanização do inimigo migra, por metonímia, para quem não pense exatamente pela cartilha que pretende hegemonizar a narrativa.

É muito difícil, por exemplo, saber o que de fato está acontecendo, primeiro, do outro lado desta nova “cortina de ferro”, na verdade, uma “cortina de fumaça” que turva, mais que ilumina, o teatro da guerra; segundo, o que de fato está se passando no próprio teatro da guerra, quem está vencendo ou perdendo onde e quando.

Noves-fora, não há razões consistentes para acreditar em quer que seja que ronde o conflito, nem em Moscou, nem em Kiev, muito menos no eixo Washington-Londres-Bruxelas (sede da OTAN). Muito menos nos acólitos de ambos os lados, os pequenos falcões dos países do Báltico ou da Polônia, do lado de “cá”, ou os que afagam Putin, em Budapest ou Minsk, do lado de “lá”. Mas já vejo cenhos franzidos que, lendo estas frases de traçado difícil, as qualificarão como cortesãs de Moscou, ou simplesmente como alguém perdido na poeira, que não sabe o que diz.

Li num jornal espanhol o comentário de que é “incompreensível” que parte da esquerda latino-americana “apoie” Putin, quando, no frigir das palavras, as nossas esquerdas simplesmente não cortejam a OTAN nem os Estados Unidos, como está acontecendo em grande parte da Europa, onde a beligerância e o rearmamento estão ganhando pontos no mercado das almas, em detrimento do pacifismo.

Vai ser necessário aguardar o fim do conflito armado, que ainda não se vê no horizonte, e de momento improváveis investigações independentes, para se ajuizar o rosário de dúvidas e incertezas que cercam esta maldita guerra, cujos danos em escala mundial apenas começam a ser computados.

Para concluir, cito um lembrete que tem tanto de irônico quanto de macabro. O Massacre de My Lai acabou indo à Corte Marcial nos Estados Unidos. Diversos oficiais foram a julgamento, tanto pela participação na matança quanto por tentativas de ocultá-la, embora deste esforço também tenham participado membros do alto escalão do governo e das Forças Armadas. De todos, apenas o tenente Calley foi condenado. Sua pena foi de prisão perpétua e trabalhos forçados. Porém alguns dias depois do julgamento, o presidente Nixon comutou-a para prisão domiciliar, que ele cumpriu por três anos e meio. Hoje vive na Flórida.

Os sobreviventes vietnamitas do massacre foram levados para um campo de refugiados, que foi destruído pelo Exército do Vietnã do Sul em 1972. No ato, a culpa pela destruição foi atribuída aos vietcongues.

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