As esquerdas frente ao bolsonarismo: hora da unidade para poder avançar
"De Lula espera-se que seja o aglutinador da grande frente popular de resistência. Ninguém tem mais condições de exercer essa liderança", diz o colunista Roberto Amaral
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Será uma tragédia para a democracia e nosso País se as forças progressistas não se derem conta das transformações político-sociais mais recentes, notadamente aquelas que se fizeram conhecidas a partir de 2013, sismo social que demoramos a entender e, por isso mesmo, só nos foi dado assistir (e sofrer) ao cortejo de suas consequências.
É fundamental ter em conta que o mundo mudou, mas nós, nossos partidos, nossas organizações e seus intérpretes, não mudamos, nem como discurso, nem como práxis.
O mundo de hoje, e nele o Brasil, pouco ou nada tem a ver com aquele que em 2002 assinalou, com a primeira eleição de Lula, a emergência das massas e o início do ciclo de governos de centro-esquerda, encerrado com o golpe de 2016, ato preparatório e essencial para as eleições de 2018 e a ascensão de um projeto de extrema-direita, pondo à luz do sol a face real de um Brasil que nos recusávamos a reconhecer.
O encontro da ameaça autoritária com a desmontagem da promessa do Estado social é fato objetivo, e cobra das esquerdas brasileiras visão analítica e resposta instrumental.
Insisto neste ponto descurado: a rejeição pelo PSDB do resultado das eleições de 2014, a desestabilização do segundo governo Dilma e o impeachment, o governo Temer e a eleição de Bolsonaro, constituem momentos decisivos de um mesmo processo político-social que terminou se consolidando como um golpe de Estado permanente, que chega agora com a desmontagem da ordem constitucional de 1988 em seus princípios básicos, a defesa nacional, a proteção dos direitos sociais e individuais, a proteção do trabalho, as franquias democráticas, a liberdade de cátedra e associação, a integridade federativa.
Não nos podemos considerar alheios ao que ocorre no mundo a partir da matriz trumpiniana, e em nosso continente. Somos peça do mesmo tabuleiro onde se jogam interesses hegemônicos da grande potência do Norte, em contradição com os projetos nacionais de desenvolvimento autônomo.
O aprofundamento do autoritarismo entre nós, um capítulo da nova geopolítica, é a garantia da “Pauta Guedes”, em que aposta o dito “mercado”, e para atingir seus objetivos a burguesia nacional não conhece limites.
Se tiver a menor chance, a direita não tergiversará em romper o pacto constitucional. Esta é sua história no mundo e entre nós.
Sem cair no escapismo de confundir crítica e autocrítica, reflexão ou revisão histórica com ato de contrição, é preciso que as esquerdas reflitam sobre a história presente com disposição para, identificando erros, corrigir posturas e, eventualmente, projetos. É preciso considerar a importância das avaliações de experiências para poder traçar rumos políticos. É o que se pode esperar de uma esquerda que em algum momento tenha se alimentado nas fontes da dialética. É a hora agônica de revermos nossos métodos de análise e de interpretação da história viva, e de pôr em xeque nossas certezas, para estarmos à altura dos novos desafios.
A tarefa de hoje não se cinde a fazer oposição a um governo, mas consiste em impedir que, na sua continuidade, se consolide o projeto autoritário e antinacional.
Precisamos, conhecendo bem o adversário, formular as teses corretas para seu enfrentamento teórico e prático, e nenhuma ação será consequente se não considerar como prioridade a organização das forças populares, ponto de partida para a mobilização de massas.
Muitos de nossos partidos ainda não se deram conta de que perderam ou estão perdendo suas bases sociais, que deixamos de falar para grandes segmentos da população, que não nos ouvem ou não nos entendem. As dificuldades de hoje questionam os meios tradicionais do fazer política. As classes não são mais as mesmas, o proletariado sofre redução quantitativa e tem sua importância política relativizada; aprofunda-se a desindustrialização do País, o sindicalismo vive sua pior crise. O neoliberalismo, causa e efeito do monopólio do sistema financeiro, trouxe à cena o precariado, coletivo de trabalhadores sem trabalho, sem emprego estável, sem salário certo, sem previdência social, sem sindicalização, uberizado, atomizado, candidato a pária. A nova ordem econômica despreza o trabalho e o trabalhador, reduzidos a mercadoria, e mercadoria passa a ser tudo, inclusive o País, inclusive a vida.
Este é o mundo no qual a hegemonia do capital financeiro canta de galo, fazendo explodir a desigualdade social e construindo bolsões de miséria. Metade dos brasileiros vive com 413 por mês, ao tempo em que cresce a precariedade dos sistemas de saúde, previdência e educação. Enquanto isso, na outra ponta da linha, o 1% mais rico, apenas 2,1 milhões de afortunados, recebe 16.297 por mês por pessoa, 40% mais que a metade da base da pirâmide populacional (Dados da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar Contínua-PNAD, do IBGE).
Temos, inclusive, um ministro da educação que combate o ensino público.
Temos um presidente da Fundação Palmares que prega a extinção do feriado da Consciência Negra e define a escravidão como “benéfica para os descendentes”.
Este é o mundo do bolsonarismo (com ou sem o capitão), um populismo de extrema direita que associa o liberalismo econômico radical ao autoritarismo político que põe em xeque a democracia, a república e a federação. É evidente que o estágio atual ainda não é seu ponto de chegada. Urge compreender o processo presente para impedir os desdobramentos que já podemos antever. Nossas armas são a unidade das forças democráticas e a retomada das organizações populares, como antídoto à dispersão que favorece a sobrevivência da ordem dominante.
De Lula espera-se que seja o aglutinador da grande frente popular de resistência. Ninguém, hoje, tem mais condições de exercer essa liderança.
Se é notória a ojeriza do capitão à liberdade de imprensa e a todas as liberdades, seu desapreço à Constituição que tenta mutilar até com Medidas Provisórias, é conhecida sua admiração pela ditadura militar, cujo único erro, segundo ele, “foi torturar e não matar”. É a partir desse prisma que devemos analisar as recorrentes invocações ao AI-5 (salvo conduto da ditadura para fechar o Congresso, cassar mandatos, suspender as garantias constitucionais e impor a censura). Já agora, após os filhos do capitão, é o ministro da economia, e representante do mercado no governo, quem, diante de mobilizações sociais hipotéticas, apela para o instrumento ditatorial.
Tudo isso tem método.
Os acadêmicos se dividem na classificação político-ideológica do bolsonarismo, visto a partir do discurso do capitão e seu séquito, e de seu governo. Há definições para todos os gostos, como fascista, protofascista, simplesmente ditadura populista de extrema direita e, agora, “totalitarismo neoliberal”. O relevante é identificar nessa coisa que nos malsina, de par com o autoritarismo intrínseco, a regência do capital monopolista, açambarcador de bens, pessoas e valores reduzidos a mercadoria e assim entregues ao banquete das forças do mercado.
Enquanto o neoliberalismo econômico corre célere sob o comando da dupla Paulo Guedes-Rodrigo Maia, desfazendo o País, o capitão avança no aprofundamento do autoritarismo político, instrumento essencial para garantir a hegemonia dos interesses do “mercado” (a estreitíssima ponta da pirâmide social brasileira) sobre o País. Ele se precata em face da inevitável reação popular que já incendeia nossos vizinhos.
Não mais que uma semana após enviar ao Congresso Nacional mensagem propondo o chamado “excludente de ilicitude”, instrumento mediante o qual fica isento de pena o agente – soldado do exército, policial militar, policial federal, policial civil etc. – que mata em serviço, anuncia o projeto que autoriza a utilização de tropas federais na Garantia da Lei e da Ordem em ações de reintegração de posse no campo. Para agradar aos proprietários rurais, uma das bases de apoio do capitão, o Exército, fora de suas funções constitucionais, será chamado a substituir os milicianos e os jagunços dos latifundiários, dos desmatadores, dos grileiros, na defesa da propriedade improdutiva dos poderosos. As forças armadas, que não se sentiram humilhadas por atuarem como polícia à cata de criminosos nas favelas do Rio de Janeiro, correm o risco de se envolverem em conflitos sociais nos quais suas armas serão acionadas, como em Canudos, contra trabalhadores, camponeses assentados que produzem alimentos, velhos, mulheres e crianças armados de foices e tocos de pau.
Não é esta, portanto, a hora de os partidos de centro-esquerda tentarem realizar, cada um isoladamente, sua revolução eleitoral. Não é a hora dos voos solo, não é a hora de “marcar posição”: é hora de avançar coletivamente na defesa da democracia e dos interesses populares.
O cerco – A recente condenação de Lula pela 8ª turma do Tribunal Federal Regional da 4ª Região (TRF-4) – arbitrária e ilegal, lavrada contra a prova dos autos, eivada de vícios processuais e contestatória de decisões do STF – deve ser vista como um passo a mais na consolidação do Estado autoritário, de cuja construção o poder judiciário e o ministério público tem-se constituído como peças decisivas. É mais um ataque ao Estado de direito democrático, desferido por uma instância do poder judiciário.
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