As esquerdas distraídas
As esquerdas "não apresentaram, ao menos até agora, nenhuma agenda, nenhuma estratégia. Permanecem na penúria e na sonolência que as caracterizaram no primeiro semestre", escreve o colunista Aldo Fornazieri
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Insistir no tema da crise e defensiva das esquerdas não é uma predileção. É uma necessidade, em face das derrotas alarmantes que elas colheram no primeiro semestre e da tendência de não apresentarem uma estratégia relevante no segundo semestre. Na próxima semana começa o segundo semestre político do país. Não há nenhum sinal de que as esquerdas estejam preparadas para enfrentá-lo, pois não apresentaram, ao menos até agora, nenhuma agenda, nenhuma estratégia. Permanecem na penúria e na sonolência que as caracterizaram no primeiro semestre.
No primeiro semestre Bolsonaro primou em distrair as esquerdas e as esquerdas se esmeraram em ser distraídas por Bolsonaro. O fato concreto é que Bolsonaro está na ofensiva e as esquerdas na defensiva. Lançando uma profusão de temas diversionistas e secundários para o debate do que interessa para o país, como armas, cadeirinhas de crianças, fiscalização de motoristas nas estradas, declarações homofóbicas e machistas, reverência a Trump e aos Estados Unidos e assim por diante, ele vai conseguindo pautar as esquerdas com esses temas culturalistas, ideológicos e moralistas. Não que este embate não deva ser feito, mas ele não é o principal para uma estratégia de esquerda. Em sendo a sociedade conservadora, debater esses temas pautados pela agenda conservadora do Bolsonaro significa perder.
Bolsonaro promove o confronto ideológico porque sabe que este lhe é favorável e porque é um dos poucos trunfos que tem neste momento. Com a economia travada e com o Estado sem recursos este debate lhe é conveniente: vai fincando estacas ideológicas, conservadoras e moralistas esperando uma virada na economia. No momento em que esta vier, ele recuperará popularidade perdida e terá erguido uma barreira de avanço conservador na sociedade. A sociedade poderá assumir contornos ainda mais conservadores se a economia se recuperar. Esta é a aposta de Bolsonaro.
As esquerdas não conseguirão enfrentar de forma inteligente o conservadorismo de Bolsonaro no terreno e nos termos que são favoráveis a ele. A agenda culturalista e a política da moralidade não podem ser os pontos prioritários de uma estratégia das esquerdas. A agenda conservadora e a política de valores deve sempre ser acompanhadas pelos interesses concretos da sociedade. A disputa da hegemonia não é só cultural ou prioritariamente cultural. Ela precisa partir do concreto para o abstrato, do empírico para a ideologia, do desemprego de 15 milhões de trabalhadores para a noção de bem estar e de direitos, da desigualdade e dos privilégios inaceitáveis para a ideia de uma sociedade justa... e assim indefinidamente. A disputa pela hegemonia, como ensinou Gramasci, envolve principalmente os interesses concretos.
O fato é que se Bolsonaro sequer fala ou se preocupa com o desemprego e a desigualdade, as esquerdas não têm esses pontos como prioridades em sua agenda e não mobilizam em torno deles. Não têm os desmanches na saúde e o meio ambiente como pontos cruciais no enfrentamento de Bolsonaro. Não têm a dramática e trágica situação das periferias como algo do seu interesse e de sua ação. Abandonaram a pauta da violência nas mãos de Sérgio Moro.
As esquerdas estão distraídas com os temas diversionistas de Bolsonaro, com Sérgio Moro, com o The Intercept, com a interminável incapacidade da campanha Lula Livre, com o combate ao fascismo conceito que a maioria esmagadora do povo sequer sabe o que significa. A tática das esquerdas consiste exatamente no seguinte: esquecer-se do principal e transformar o secundário em prioridade.
Chega a impressionar a incongruência das esquerdas: seguindo teses equivocadas de Marilena Chauí e de outros sociólogos, elas se especializaram em hostilizar as classes médias, mas as suas pautas políticas são formadas prioritariamente por temas das classes médias. O problema estratégico das esquerdas não está na hostilização e nem na capitulação a temas das classes médias. O problema é ganhar e organizar o povo pobre e as periferias e puxar as classes médias para uma aliança. Nesta questão o Brasil caminha de forma esquizofrênica: FHC promoveu uma aliança das classes médias com os ricos fazendo-as crer que poderiam ser ricas. Lula e o PT promoveram uma aliança dos pobres com as elites fazendo-os crer que eles haviam sentado na mesa da prosperidade para sempre.
As esquerdas, especialmente o PT, se especializaram em se autovitimizar. A responsabilidade por suas derrotas nunca são dos seus erros. Não fazem autocrítica e mal aceitam críticas. Os culpados por suas derrotas são as elites, a grande imprensa, as classes médias, os bancos, o império americano, as conspirações internacionais etc. Tudo isto existe, é claro, como sempre existiu. E tudo isto precisa ser levado em consideração na definição de uma estratégia. Não dá para se aliar às elites, aos bancos e depois culpa-los pelas próprias derrotas.
O fato é que essa lamúria autovitimizadora vai criando gerações de derrotistas na militância. Cria-se a crença de que nunca será possível vencer os poderosos. A ideologia do derrotismo e da impotência é uma causa importante das derrotas das esquerdas. Mas aqui também há uma esquizofrenia: a contraface da ideologia do derrotismo é a ilusão de vitórias certas. Vitórias que não se sabe de onde virão, pois seriam vitórias sem luta.
As esquerdas precisam compreender que o povo nunca avançará na consolidação de conquistas e vitórias se a luta não for travada no terreno da organização popular e da ação de massas. Qualquer luta institucional só terá alguma consequência se houver força popular organizada. Vitórias fora desse contexto serão epifenômenos, prelúdios de novos retrocessos. O capitalismo predatório que existe no Brasil não lida com considerações civilizatórias, com princípios de direitos liberais, com a consagração da institucionalidade democrática e do Estado de Direito. Ou isto será garantido pela organização popular ou estará sempre ameaçado por predadores inescrupulosos. Qualquer estratégia consequente precisa ter como pressuposto a força social e popular organizada.
Os líderes partidários das esquerdas precisam ter enraizamento social e legitimidade popular. Falam em Lula, mas não seguem Lula. Lula estava onde o povo estava. Nunca foi general de gabinete. Os partidos precisam abrir as portas para a juventude, para a renovação, se não quiserem se estiolar no tempo. A militância precisa ser dirigida e orientada. Não pode continuar nesta situação de abandono e sem moral para o combate. Os lacrimosos argumentam que as esquerdas estão fracas no parlamento, agregando apenas 131 deputados. Mas nunca pode ser esquecida a bancada do PT na Assembleia Constituinte que tinha apenas 16 deputados e foi capaz de grandes feitos, de grandes combates, ao mesmo tempo em que tinha a sabedoria e a astúcia para negociar.
Se as esquerdas quiserem ter alguma relevância no segundo semestre precisam dar prioridade à luta contra o desemprego, as desigualdades e os privilégios; à luta por direitos; à luta contra a destruição da educação e da saúde; à luta por moradia popular; à luta pela preservação ambiental, dos territórios indígenas e das reservas ambientais, formando uma grande frente para isto. A luta pela democracia, por Lula Livre, pela reforma tributária com justiça fiscal, contra a violência, pela defesa das instituições científicas e das universidades e as lutas das políticas da moralidade devem vir adensadas àquelas lutas prioritárias. Se as esquerdas não tiverem senso de prioridade e não souberem travar a luta no campo que lhes é favorável e desvantajoso para Bolsonaro terão um segundo semestre de derrotas.
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