As entrelinhas da cúpula Biden-Putin

Biden deu a entender que os EUA querem a Rússia "de volta ao grupo", mas Putin não deixará o abraço da China tão cedo, escreve o jornalista Pepe Escobar sobre o encontro em Genebra

Vladimir Putin e Joe Biden
Vladimir Putin e Joe Biden (Foto: KEVIN LAMARQUE | Crédito: REUTERS)


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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres para o 247

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Comecemos com a palavra escrita.

Em Genebra, os Estados Unidos e a Rússia divulgaram um comunicado conjunto no qual "reafirmamos o princípio de que não há vencedores em uma guerra nuclear, que jamais deve ser travada".

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Doutores Strangelove de tipos variados terão arrepios – mas pelo menos o mundo contará com um documento escrito e pode dar um suspiro de alívio com o que pode ser visto como um avanço. O que não quer dizer que o complexo industrial-militar dos Estados Unidos, sempre "incapaz de acordos", irá obedecer.

Moscou e Washington também assumiram o compromisso de, em um futuro próximo,  se engajarem em um "Diálogo de Estabilidade Estratégica" bilateral e integrado, que será deliberado e robusto". O diabo nos detalhes é em que "futuro próximo" esse diálogo irá ocorrer.

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Um primeiro passo é o retorno dos embaixadores a ambas as capitais. Putin confirmou que o Ministério das Relações Exteriores  russo e o Departamento de Estado "darão início a consultas" logo após a extensão por cinco anos do novo tratado START-3.

Igualmente importante foi o verdadeiro Rosebud de Genebra: o protocolo de Minsk. Esse protocolo foi uma das principais razões que levaram a Casa Branca a de fato solicitar ao Kremlin a realização de uma cúpula, e não o contrário.

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O establishment norte-americano ficou chocado com a espantosa rapidez da ocupação militar do território russo contíguo a Donbass – em resposta às provocações de Kiev (Putin: "Nós realizamos exercícios militares em nosso território, mas não realizamos exercícios transportando equipamentos e armas para a fronteira dos Estados Unidos").

A mensagem foi devidamente recebida. Parece ter havido uma mudança de postura dos Estados Unidos com relação à Ucrânia - sugerindo que o protocolo de Minsk está de volta.

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Mas tudo isso pode ser - mais uma vez - um jogo de sombras. Biden disse: "Concordamos em exercer diplomacia com relação ao acordo de Minsk". "Exercer diplomacia" não significa necessariamente ater-se estritamente a um acordo já endossado pelo Conselho de Segurança da ONU, que vem sendo ininterruptamente desrespeitado por Kiev.

Uma leitura benigna revelaria que algumas linhas vermelhas estão finalmente sendo compreendidas. Putin aludiu a elas: "De modo geral, está claro para nós o que nossos parceiros dos Estados Unidos estão dizendo, e eles entendem o que  queremos dizer quando se trata de 'linhas vermelhas'. Mas eu, com toda a franqueza, deveria dizer que não chegamos ao ponto de colocar ênfase nos detalhes e de distribuir e compartilhar algo".

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Portanto, nenhum detalhe - pelo menos por enquanto.

Entregando o jogo

Falando logo antes de embarcar no Air Force One saindo de Genebra, um relaxado Joe Biden parece ter entregado o jogo - bem  no estilo auto-iludido que lhe é característico.

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Ele disse: "A Rússia está em uma posição muito, muito difícil agora... Eles estão sendo espremidos pela China. Eles querem desesperadamente continuar sendo uma grande potência".

Essa fala revela uma curiosa mistura de zero conhecimento sobre a complexa e sempre crescente parceria estratégica ampla Rússia-China, e de puro e simples pensamento desejante ("espremidos pela China", "desesperados para continuar sendo uma grande potência").

A Rússia é de fato uma grande potência. Mas a visão que Putin faz de uma soberania russa total só pode florescer em um mundo verdadeiramente multipolar, coordenado por um Concerto de Soberanos: um Equilíbrio de Poder com base em realpolitik.Há aí um nítido contraste com a unipolaridade privilegiada pelo Hegêmona, cujo establishment vê qualquer ator político que reivindique soberania como um inimigo jurado.

Essa dissonância cognitiva certamente não foi sanada pelas discussões ocorridas entre Putin, Biden e suas equipes na Villa La Grange.

É bastante esclarecedor traçar o arco que vai de Anchorage a Genebra - que venho relatando para o Asia Times nos últimos três meses. No Alasca, a China foi jogada em um ambiente esquálido e recebida com insultos na mesa diplomática - tratamento que o formidável Yang Jiechi devolveu na mesma moeda. Compare-se isso ao cerimonial hollywoodiano de Genebra.

A diferença do tratamento dado à Rússia e à China mais uma vez entrega o jogo.

As elites dominantes dos Estados Unidos estão totalmente paralisadas pela parceria estratégica Rússia-China. Mas o seu pesadelo supremo é Berlim entender que, mais uma vez, a Alemanha vem sendo usada como bucha de canhão - o que de fato acontece, como ficou evidente em toda a saga do Nord Stream 2.

O que pode acabar por levar Berlim para a aliança eurasiana máxima com a Rússia-China. A Carta Atlântica recentemente assinada sinaliza que o cenário ideal para os anglo-americanos - nuances da Segunda Guerra - é ter a Alemanha e a Rússia como opostos irreconciliáveis.

O principal objetivo americano na peculiar sessão fotográfica Putin-Biden (o sorriso afetado de Putin encontra o olhar distante de Biden), portanto, é enganar Putin e fazê-lo crer que Washington quer a Rússia "de volta ao aprisco", afastando Moscou de Pequim e evitando a tríplice aliança com Berlim.

E quanto à estabilidade regional?

Não houve vazamentos importantes em Genebra - pelo menos, ainda não. Não sabemos se Lavrov e Blinken dominaram a conversa quando apenas os quatro - mais os tradutores - estavam presentes na sala da biblioteca.

Na reunião ampla, a notória distribuidora de biscoitos de Maidan, Victoria 'F***-se a União Europeia' Nuland, teve lugar à mesa. O que talvez implique em que mesmo que os Estados Unidos e a Rússia cheguem a um acordo quanto à estabilidade nuclear, a estabilidade regional continua em grande medida fora da pauta (Putin: "O que há de estável em apoiar o golpe na Ucrânia?").

Biden referiu-se vagamente aos Estados Unidos e à Rússia a trabalharem conjuntamente na ajuda humanitária à Síria. Isso foi linguagem-código para Idlib – onde a Turquia da OTAN vem dando apoio ativo aos jihadistas do tipo al-Nusra. Nenhuma palavra sobre a ocupação ilegal de território sírio pelos Estados Unidos - com contrabando de petróleo e tudo, e ao fato de que a verdadeira crise humanitária síria é resultado direto das sanções dos Estados Unidos.

Nada se perguntou sobre essas questões em nenhuma das entrevistas coletivas. Uma menção de passagem ao Irã, uma outra ao Afeganistão, nenhuma palavra sobre Gaza.

Putin, em pleno comando dos fatos e insistindo na lógica, foi claramente conciliador, enfatizando "nenhuma hostilidade" e "boa-vontade em entender um ao outro". Biden, o que depõe a seu favor, disse que as discordâncias não foram tratadas em um "ambiente hiperbólico", e que sua "agenda" não é dirigida contra a Rússia.

Putin explicou nos mínimos detalhes que a Rússia vem "restaurando a infraestrutura perdida" no Ártico. Ele tem uma "convicção profunda" de que os Estados Unidos e a Rússia devem cooperar naquela região.

Quanto à cibersegurança, ele foi categórico ao afirmar que Moscou forneceu todas as informações solicitadas pelos Estados Unidos sobre ciberataques, mas nunca recebeu respostas dos americanos. Ele ressaltou que a maioria dos ciberataques se originam nos Estados Unidos.

Sobre direitos humanos: "Guantánamo ainda está em funcionamento e não obedece a nenhuma regra de direito internacional". E "foi praticada tortura nas prisões americanas, inclusive na Europa".

Muito importante: foram "casualmente" mencionadas as guerras das vacinas, e evocou-se a "possibilidade" de reconhecimento mútuo de vacinas.

Para que fique registrado: a grande mídia dos Estados Unidos foi convidada para a entrevista coletiva de Putin - e sentiu-se à vontade para colocar "perguntas" acusatórias bem fiéis ao script do "comportamento pária" do Kremlin, ao passo que nenhum jornalista russo foi admitido na entrevista coletiva de Biden.

Resumindo: aplicar o Dividir e Governar de Kissinger para tentar jogar uma chave de fenda nas engrenagens Rússia-China é trabalho desperdiçado quando se está lidando com atores ultraperspicazes como Putin e Lavrov.

Putin, em sua entrevista coletiva, disse: "Não tenho ilusões e não pode haver ilusões". Mais tarde, foi perguntado ao porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov se o encontro de Genebra faria com que os Estados Unidos fossem retirados da lista russa de Nações Inamistosas, e ele respondeu: "Não, ainda não há motivos para isso".

Mesmo assim, há lampejos de esperança. Coisas ainda mais estranhas já aconteceram na geopolítica. Se os belicistas forem deixados de lado, 2021 pode até vir a terminar como o Ano da Estabilidade Estratégica.

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