As crises da esquerda latinoamericana
"O que vivemos é o final do primeiro período da construção de modelos alternativos ao neoliberalismo. Já não se poderá contar com dinamismo no centro do capitalismo, nem com preços altos das commodities", afirma o sociólogo e colunista do 247 Emir Sader; ele analisa o poder da mídia na desconstrução do governos de esquerda na América Latina, como na Argentina, na Bolívia e no Brasil, escondendo "os grandes avanços em cada um dos nossos países"
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Se pode dizer que há duas esquerdas na América Latina e que ambas estão sofrendo crises, cada uma à sua maneira. Uma é a que chegou aos governos, começou processos de democratização das sociedades e de saída do modelo neoliberal e que hoje enfrenta dificuldades – de distinto tipo, desde fora e desde dentro – para dar continuidade a esses processos. A outra é a que, mesmo vivendo em países com continuados governos neoliberais, não consegue sequer constituir forças capazes de ganhar eleições, chegar ao governo e começar a superar o neoliberalismo.
A esquerda pós-neoliberal teve sucessos extraordinários, ainda mais se levarmos em conta que os avanços contra a pobreza e a desigualdade se deram nos marcos de uma economia internacional que, ao contrario, aumenta a pobreza e a desigualdade. No continente mais desigual do mundo, cercados por um processo de profunda e prolongada recessão do capitalismo internacional, os governos da Venezuela, do Brasil, da Argentina, do Uruguai, da Bolívia e do Equador diminuíram a desigualdade e a pobreza, consolidaram processos de integração regional independentes dos EUA e acentuaram o intercâmbio Sul-Sul.
Enquanto as outras vertentes da esquerda, por distintas razões, não conseguiram construir alternativas aos fracassos dos governos neoliberais, que os casos do México e do Peru são os dois mais evidentes, mostrando incapacidade, até aqui, de tirar lições daqueles outros países, para adaptá-las às condições específicas dos seus países.
Em que consiste a crise atual das esquerdas que chegaram ao governo na América Latina? Há sintomas comuns e traços particulares a cada país. Entre aqueles estão a incapacidade para se contrapor ao poder dos monopólios privados dos meios de comunicação, mesmo nos países em que se decretaram leis e medidas concretas para quebrar a espinha dorsal da direita latino-americana. Em cada um desses países, em cada uma das crises enfrentadas por esses governos o papel protagônico foi dos meios de comunicação privados, atuando de forma brutal e avassaladora contra os governos, que contaram com seus sucessos no governo e com um amplo apoio popular.
Esses meios de comunicação esconderam os grandes avanços em cada um dos nossos países, os censuraram, assim como as vidas novas que os processos de democratização social promoveram na massa da população. Por outro lado, destacam problemas isolados, dando-lhes projeções irreais, difundindo inclusive mentiras, com o proposito de deslegitimar as conquistas conseguidas e a imagem dos seus lideres, seja negando-as, seja tentando destacas aspectos secundários negativos dos programas sociais.
Os meios de comunicação promoveram sistematicamente campanhas de terrorismo e de pessimismo econômico buscando baixar a auto confiança das pessoas no seu próprio país. Como parte específica dessa operação estão as denúncias sistemáticas de corrupção, seja a partir de casos reais, aos que dão dimensão desproporcional, seja inventando denúncias pelas quais não respondem quando são questionados, mas os efeitos na opinião pública já se produziram. As reiteradas suspeitas sobre a atuação dos governos produz especialmente em setores médios da população sentimentos de crítica e de rejeição, aos que podem se somar outros setores afetados por essa fabricação antidemocrática da opinião pública. Se esse fator, se pode dizer que as dificuldades teriam sua dimensão real, não seriam transformadas em crises políticas, movidas pela influência unilateral que a mídia tem sobre setores da opinião publica, inclusive de origem popular.
Não é que se trate de uma questão de fácil solução, mas não considerá-la como um tema fundamental a enfrentar é subestimar o plano em que a esquerda está mais em inferioridade: a luta das ideias. A esquerda conseguiu chegar ao governo pelo fracasso do modelo econômico neoliberal, mas recebeu, entre outras heranças, a hegemonia dos valores neoliberais disseminados na sociedade. "Quando finalmente a esquerda chegou ao governo, tinha perdido a batalha das ideias", segundo Perry Anderson. Tendências a visões pré-gramscianas na esquerda acentuaram formas de ação tecnocráticas, que acreditaram que fazer boas políticas para as pessoas bastaria para produzir automaticamente consciência correspondente de apoio aos governos. Se subestimou o poder de ação na consciência das pessoas da mídia e dos efeitos políticos de desgaste dos governos que essa ação produz.
Um outro fator condicionante, em princípio a favor, depois contra, foi o relativamente alto preço das commodities durante alguns anos, de que os governos se aproveitaram, mas não para promover uma reciclagem nos modelos econômicos, para que não dependessem tanto das exportações. Para essa reciclagem, teria sido necessário formular e começar a colocar em prática um modelo alternativo baseado na integração regional. Perdeu-se um período de grande homogeneidade no Mercosul, sem que se tenha avançado nessa direção. Quando os preços baixaram, nossas economias sofreram os efeitos, sem ter como se defender, por não terem promovido a reciclagem para um modelo distinto.
Seria necessário ter compreendido também que o período histórico atual está marcado por profundos retrocessos em escala mundial, que as alternativas de esquerda estão em uma posição de defensiva, de que se trata neste momento é de sair da hegemonia do modelo neoliberal, construir alternativas, apoiando-se nas forças da integração regional, nos Brics e nos setores que dentro de nossos países aderem ao modelo de desenvolvimento econômico com distribuição de renda, com a prioridade das políticas sociais.
Em alguns países não se cuidou devidamente do equilíbrio das contas publicas, o que gerou níveis de inflação que neutralizaram em parte os efeitos das políticas sociais, porque os efeitos da inflação recaem sobre os assalariados. Os ajustes não devem ser transformados em objetivo, mas sim em instrumentos para garantir o equilíbrio das contas públicas e esse é um elemento importante do sucesso das políticas econômicas e sociais.
Mesmo se a mídia magnifica os casos de corrupção, não há como não considerar que não houve um controle suficiente por parte dos governos em relação ao uso dos recursos públicos. O tema do cuidado absoluto da esfera pública deve ser sagrado para os governos de esquerda, que devem ser os que descubram eventuais irregularidades e as punam, antes que seja a mídia opositora que o faça. A ética na política tem que ser um patrimônio permanente da esquerda, a transparência absoluta no manejo dos recursos públicos tem que ser uma regra de ouro por parte dos governos de esquerda. O fato de não ter atuado sempre dessa maneira faz com que os governos paguem um preço caro, que pode ser um fator determinante para colocar em risco a continuidade desses governos, com danos gravíssimos para os direitos da grande maioria da população e para o próprio destino dos nossos países.
Finalmente, para destacar alguns dos problemas destes governos, o papel dos partidos em condições de governo nunca foi bem resolvido em praticamente em nenhum desses países. Como os governos tem uma dinâmica própria, inclusive de alianças sociais e políticas, de centro esquerda em vários casos, esses partidos deveriam representar o projeto histórico da esquerda, mas não conseguiram fazer isso, perdendo relevância diante do papel preponderante dos governos. Enfraquecem-se assim a reflexão estratégica, mais além das conjunturas políticas, a formação de quadros, a propaganda das ideias e a própria luta ideológica.
Nada disso autoriza a falar de "fim de ciclo". As alternativas a esses governos estão sempre na direita e com projetos de restauração conservadora, claramente de caráter neoliberal. Os governos pós-neoliberais e as forças que os promovem são as expressões mais avançadas que a esquerda latino-americana dispõe atualmente e que funcionam também como referência para outras regiões do mundo, como a Espanha, Portugal e a Grécia, como outros.
O que vivemos é o final do primeiro período da construção de modelos alternativos ao neoliberalismo. Já não se poderá contar com dinamismo no centro do capitalismo, nem com preços altos das commodities. As chaves da passagem a um segundo período têm que ser: aprofundamento e extensão do mercado interno de consumo popular; projeto de integração regional; intensificação do intercambio com os Brics e seu Banco de Desenvolvimento.
Alem de superar os problemas apontados anteriormente, antes de tudo criar processos democráticos de formação da opinião pública, dar a batalha das ideias, questão decisiva na construção de uma nova hegemonia nas novas sociedades e no conjunto da região.
É preciso construir um projeto estratégico para a região, não apenas de superação do neoliberalismo e do poder do dinheiro sobre os seres humanos, mas de construção de sociedades justas, solidárias, soberanas, livres, emancipadas de todas as formas de exploração, de dominação, de opressão, de discriminação e de alienação.
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