Argentina: Novas lições deste Dia Nacional da “Memória pela Verdade e Justiça!”
A mobilização de centenas de milhares no Dia Nacional da “Memória pela Verdade e Justiça” na Argentina não só recoloca no banco dos réus os genocidas da ditadura dos anos 76, mas põe na berlinda a violação da independência do poder Judiciário em relação ao Executivo neste governo.
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Neste 24 de março, a mobilização de centenas de milhares no Dia Nacional da “Memória pela Verdade e Justiça” na Argentina não só recoloca no banco dos réus os genocidas da ditadura dos anos 76, mas põe na berlinda a violação da independência do poder Judiciário em relação ao Executivo neste governo.
Num contexto de crise, protesto social contra a loucura dos atentados de Estado de “Cambiemos” aos direitos humanos, econômicos e trabalhistas conquistados na gestão precedente de Néstor e Cristina Kirchner, há elementos novos neste 24 de março: um salto político de qualidade, como conotam todas as recentes mobilizações, das sindicais (21F), à das mulheres (8M), à dos direitos humanos (24M). Vejamos fatos, ocultados pela mídia hegemônica, para embasar úteis reflexões às quais contribuem leituras de meios de comunicação minoritários, jornalistas de esquerda, analistas políticos e juristas progressistas nesta Argentina que resiste.
Um novo 24 de março no contexto atual
Nesta data, em 1976, há 42 anos, o golpe cívico-militar de direita deixou marcas profundas de crimes de lesa humanidade, um genocídio com 30 mil desaparecidos, dentro do terror do Plano Côndor que volta a ameaçar nossa América Latina. Graças ao governo kirchnerista pôde-se instituir o 24 de março como data nacional, unindo feriado com mobilização de massas. Não é uma data qualquer: é jornada de luta na Argentina. Hoje, totalmente ignorada pelo governo; Macri não deu nenhum pronunciamento em TV, ou sequer um discurso volátil numa praça vazia como o fez na sua posse, em dezembro de 2015, dançando solitário no balcão da Casa Rosada.
Mas este significativo detalhe, acusando cumplicidade com os promotores daquele golpe, engrossa o caldo político da massiva contestação deste 24M. Transborda-se assim, o protesto contra o estado calamitoso do país nestes dois anos e meio de neoliberalismo devastador, desemprego em massa, fechamento de fábricas, privatizações, desmonte previdenciário e trabalhista, repressão política à oposição. Não há dúvidas de que esta Data Nacional que tem raízes na histórica batalha das mães, avós e filhos dos desaparecidos, nas rondas semanais de protesto na Praça de Maio, tecidas com dramáticas histórias de coragem e luta de jovens militantes que deram a vida por um ideal, tornou-se o melhor exemplo internacional na luta pelos direitos humanos; exemplo vivo de uma imprescindível escola de formação política.
Representantes do mundo inteiro viveram com emoção o clima destes dias no país, seja na manifestação – com a presença de Pablo Iglesias (Podemos da Espanha) –, seja em atos políticos – com Rafael Correia, ex-presidente do Equador – recém-vindo da caravana com Lula, visitando Buenos Aires, coordenando forças pela reintegração da esquerda latino-americana. O Brasil também marcou presença com o pronunciamento solidário das Mães da Praça de Maio contra a trágica execução da vereadora Marielle Franco, a supressão dos direitos humanos e a perseguição ao ex-presidente Lula. Juntou-se a essa avalancha de energias positivas, o ex-secretário legal e técnico do governo kirchnerista, Carlos Zannini. Aplausos e emoção na multidão não faltaram pela sua libertação nesta data. Zannini, foi detido por 3 meses, sob acusação político-midiática pelo memorando de entendimento com o Irã para investigação do caso Amia. Juízas de primeira instancia ordenaram a sua libertação, recorrendo aos princípios de presunção de inocência e igualdade perante a lei. Leia.
O mais notável de tudo isso (além das organizações políticas, sindicais, juvenis, artistas, intelectuais, comunidades de bairro e de fábrica, jornaleiros) foi a presença de cidadãos que há muitos anos não participavam politicamente, e que decidiram romper com a letargia. No dia 24, os metrôs transbordavam: desde anciãos carregando histórias na mente (de um familiar, um vizinho desaparecido entre os 30 mil), multidões de jovens e mães com crianças no colo. A imagem que emerge desta impressionante e comovedora manifestação pela “Memória, Verdade e Justiça” é que a Argentina do Macri está ao borde do colapso, e o povo decidiu dar um basta: “Temos memória. Nunca mais!”.
Há alguns meses, o governo tenta conceder a prisão domiciliar a genocidas já presos. Um deles, Etchecolatz, ex-policial e sequestrador de bebês, ficou em liberdade domiciliar na praia por uns meses, mas a rebeldia social local o reenviou à cadeia. Mesmo assim, “Cambiemos” insiste em cambiar (mudar) as regras: pede prisão domiciliar a outro genocida: Astiz, já condenado à perpétua e responsável por inúmeros voos da morte. Por este motivo, a maioria dos cartazes empunhados no 24M era: “O lugar dos genocidas é a prisão!”. A memória do povo argentino é imbatível. Há um ano atrás, graças à enorme pressão social, a tentativa de Macri aplicar a chamada lei 2x1 aos criminosos de lesa humanidade, uma espécie de indulto, foi derrotada por unanimidade (menos 1 voto contrário) no Congresso. Outro exemplo é o caso da professora, Cecília Pando, declaradamente apoiadora dos genocidas, contratada por uma escola particular; foi rechaçada pela maioria dos pais de alunos, e a diretoria foi obrigada a demiti-la. Em muitas escolas públicas, desde o jardim de infância, diretores e professores progressistas comemoram e conscientizam as crianças sobre o dia nacional da Memória, tão importante quanto é no Japão, não perder a lembrança dos mortos e responsáveis pelo bombardeio de Hiroshima e Nagasaki. Soma-se a essa demonstração de quão profundo é o processo de contestação social atual, algo marcante ocorrido neste dia 24M que foi a presença de um pequeno e corajoso grupo, sobretudo de mulheres, com uma faixa: “Histórias Desobedientes” com assinatura: “Filhas, filhos e familiares de genocidas. Pela Memória, Verdade e Justiça”. São filhos de genocidas da ditadura que hoje pedem que seus pais continuem detidos em prisão perpétua. Esta sociedade expressa uma maturidade e aptidão para uma transformação social profunda. Isso é sintoma de algo que vai além do simples protesto de uma classe média arrependida de votar no Macri, pela perda do poder aquisitivo. O surgimento das “Histórias Desobedientes” são expressão de um alto nível de dignidade humana e consciência coletiva do povo argentino acima de qualquer interesse individual.
Crise e insistência do Executivo em amordaçar o Judiciário
Na superestrutura, após 2 anos e meio, o governo de “Cambiemos” encontra-se com um Ministro das Finanças (Luis Caputo) pró-ricos questionado pelos seus vínculos com “off-shores”; um Ministro da Trabalho anti-trabalhador, publicamente acusado por uma ex-funcionária doméstica por ilegalidade trabalhista e desvios; um Ministro da Justiça (Germán Garavano) denunciado por encobrir encobridores do atentado à Amia (Leia); um Ministro da Energia ex-acionista da Shell que confessa ter dinheiro no exterior (mas não o traz por não confiar na situação do país que ele e Macri governam), e sem escrúpulos desencadeia o tarifaço e o gasaço contra a população (a tarifa do gás em Buenos Aires subiu em 1 ano 110%, e em 2 anos deste governo 1.000%); um Ministro da Defesa, sob acusação de encobrimento do desaparecimento do submarino Ara San Juan que levou à morte de 44 sub-marinheiros. O caso do Ara San Juan merecerá um novo artigo. Leia . Nem dizer do maestro dessa orquestra, Macri, que demole o estado democrático quando saúda pessoalmente um policial (Chocobar) por ter baleado e morto pelas costas a um jovem ladrão. Um deputado da FPV, Horacio Pietragalla, fez denúncia penal ao presidente, ao chefe de gabinete, Marcos Peña, e à Ministra de Segurança, Patrícia Bullrich, por delitos de apología ao crime e encobrimento, ao chamado “gatilho fácil” por parte dos serviços de segurança. O 24M desbordou de protestos contra o acionar dessa maquinária de supressão dos direitos humanos, desde a prisão da dirigente social, Milagro Salas, ao assassinato dos novos desaparecidos, Santiago Maldonado e do mapuche, Rafael Nahuel.
Para este governo de empresários e financistas internacionais, não basta a cumplicidade da grande mídia e do grupo Clarin para promover o desmonte neo-liberal. É preciso amordaçar o Judiciário. O Executivo violenta abertamente a independência do poder Judiciário. Após uma significativa ação de juízes de primeira instância e promotores públicos, nos últimos dias, que levaram a uma derrota parcial do governo de Cambiemos na sua tentativa de criminalizar a oposição kirchnerista, o Executivo ameaça inabilitar alguns juízes. Um deles, os juizes Ballestero e Farah que libertaram Cristóbal Lopez e Fabián de Sousa, proprietários do grupo Indalo, gestor do C5N, único canal privado opositor a Macri. Os outros são os juízes que poderiam libertar Júlio Devido (ex-ministro da planificação do governo Kirchner), após terem já libertado Amado Boudou, Carlos Zannini e Luis D’Elia, membros e apoiadores do governo anterior. Leia
Enfim, Macri ameaça abertamente com uma interferência política no Judiciário para favorecer a demolição da memória e das conquistas do kirchnerismo, e impedir causas contra os membros do seu governo. Algo nada estranho ao “Lawfare” no Brasil que persegue Lula/Dilma e o PT, onde os rumos da nação passam a depender exclusivamente de um STF, e de juízes de uma corte suprema, cidadãos acima de qualquer suspeita. Paira no ar o questionamento da invulnerabilidade do Judiciário e o critério de eleição dos “justiceiros da verdade”. Enquanto o povo não democratize o Judiciário e os meios de comunicação, nem tenha uma Assembleia Constituinte livre e soberana, estamos longe de ter um poder Judiciário independente do Executivo; o Judiciário estará fadado às relações políticas do comando parlamentar e midiático. Mas o 24 M na Argentina, bem como as caravanas de Lula abrem o caminho para o fim deste “Lawfare”.
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