Argentina não tem medo de enquadrar seus generais
"A Constituição autoriza os argentinos a enfrentar os militares, enquanto nós ainda discutimos se um tenente e seus três garotos podem liderar um golpe com o suporte de forças militares e milicianas", escreve o jornalista Moisés Mendes
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Por Moisés Mendes, para o Jornalistas pela Democracia
A democracia brasileira aprenderia muito com os argentinos, se prestasse atenção no que eles continuam fazendo para manter golpistas civis e militares sob controle.
Eles não têm na Constituição nenhum artigo 142 que permita leituras enviesadas sobre golpismo. Não existe nada parecido com esse debate fajuto que consome os brasileiros sobre o presumido poder moderador das Forças Armadas.
Os argentinos criaram trancas que o Brasil achou que não iria precisar. E continuam criando. Esta semana, um decreto do governo antecipou o que se anuncia como uma reforma profunda nas Forças Armadas.
A decisão de Alberto Fernández tirou dos militares a atribuição de cuidar de questões internas de segurança. Exército, Marinha e Aeronáutica não se metem em conflitos de fronteira, no combate ao narcotráfico e no que possa se configurar como terrorismo.
Essas atribuições haviam sido asseguradas em 2018 por Mauricio Macri, numa tentativa de empoderar os militares e causar confusão sobre suas atribuições.
Retorna agora o que valia a partir de 2006, quando Nestor Kirchner deixou claro, também em decreto, que as Forças Armadas devem intervir apenas em casos de ameaça externa contra a soberania nacional.
Segurança nacional e segurança interna são tratadas de formas distintas. Questões internas ficam a cargo da Gendarmeria Nacional (que é bem mais do que uma espécie de polícia militar deles) e das polícias das províncias.
Seria improvável na Argentina que o equivalente à Força Nacional de Segurança se envolvesse numa intervenção como a que aconteceu no Rio em 2018, em nome das Forças Armadas. Essa poderia ser uma tarefa da Gendarmeria, não do Exército.
Não há hoje chance alguma de a Argentina ter uma figura poderosa como Walter Braga Netto, o general que depois se transformou em chefe da Casa Civil de Bolsonaro por suas virtudes como gestor da intervenção no Rio.
O decreto de Fernández é só um começo. Vem mais, num prazo de seis meses, para que os fardados fiquem apenas onde devem estar. O ministro de Defesa, Agustín Rossi, está encarregado de formular uma proposta de reforma de leis, normas e regulamentos que enquadre os militares.
A chance de golpe na Argentina não existe desde o trauma com o fiasco militar e a tragédia da Guerra das Malvinas, em 1982. Mas é preciso que isso fique ainda mais explicitado.
Também lá, como aqui, o presidente é o chefe Supremo das Forças Armadas. Mas não há na Constituição argentina, reformada em 1994, não há uma linha sequer que insinue algum poder excepcional aos militares.
Na verdade, a Constituição trata até da circulação de navios, mas não há nada, absolutamente nada sobre atribuições das Forças Armadas. É como se os argentinos, depois de tantos horrores, decidissem ignorá-las, por serem agora subalternas e desimportantes.
Mas há várias linhas sobre as garantias contra um golpe. A Constituição diz que “toda força armada” que pretenda expressar-se em nome dos direitos do povo será considerada em sedição. Qualquer atentado à democracia será enquadrado como golpista e julgado.
É a tranca contra o que aqui ainda chamam de poder moderador das Forças Armadas. A Constituição afirma que continuará em vigor, mesmo que atentem “por atos de força contra a ordem institucional e o sistema democrático”.
E aqui está o trecho decisivo, no artigo 36 do capítulo segundo dos Novos Direitos e Garantias:
“Todos os cidadãos têm o direito de resistência contra aqueles que praticam os atos de força declarados nesse artigo”.
Ao povo é assegurado o direito de resistir e desobedecer ordens diante da força de um golpe. E se sabe que só os generais têm jipes, soldados, cabos e armas para agir à força.
A Constituição autoriza os argentinos a enfrentá-los, enquanto nós ainda discutimos se um tenente e seus três garotos podem liderar um golpe com o suporte de forças militares e milicianas.
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