Argentina: campeã mundial de futebol e de racismo
Pretos são obrigados a escolher um racista favorito para chamar de seu, nesse esporte que mexe muito mais com a paixão, do que com a razão dos torcedores
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A Copa do Mundo do Catar chegou ao fim e a Argentina conquistou o tão esperado tricampeonato mundial. Após 36 anos na fila de espera por mais um título na maior competição de futebol do planeta, o time comandado por Lionel Messi, eleito o craque da copa, venceu a França nos pênaltis e encerrou o longo jejum de títulos mundiais, que perdurava desde 1986, quando comandada por Diego Maradona, bateu a Alemanha por 3x2 na copa do México. Além de ter sido eleito o craque da copa, Messi finalmente colocou em sua prateleira o título que faltava para consagrar a sua vitoriosa carreira futebolística. Um prêmio mais do que merecido ao melhor jogador de futebol da última década.
Fora o jogo emocionante e dramático que os argentinos venciam até os 35 minutos do segundo tempo, quando Kylian Mbappé acordou no jogo marcando dois gols, o segundo deles uma pintura digna de uma final de Copa do Mundo, levando a partida para uma alucinante prorrogação, onde outra vez ele tirou a vantagem argentina com um gol de pênalti e levou a decisão para as cobranças de pênaltis alternadas, o fato de alguns brasileiros estarem torcendo para a Argentina provocou um debate sobre como a questão racial é ignorada no país vizinho e como os pretos e pretas são tratados por eles no dia a dia. Até o tango, tradicional gênero musical argentino, entrou na dança quando teve a sua origem africana e suburbana, apropriada culturalmente pelos colonizadores europeus, segundo estudos r ealizados pelo antropólogo Norberto Pablo Círio, que, em contato com a comunidade afro argentina, organizou uma mostra de tango, onde resgata a importância da influência africana no gênero, a partir do trabalho do compositor mestiço Rosendo Mendizabal.
Conhecidos pelo comportamento extremamente racista, algo que costuma ser expressado com orgulho até mesmo nos cantos de suas torcidas organizadas quando querem provocar os adversários, os argentinos, por motivos óbvios, também não costumam se manifestar contra o racismo no futebol. E isso, historicamente, inclui os jogadores de futebol do país, não excluindo, nem mesmo, o genial e progressista Diego Armando Maradona, que, pelo que me consta, nunca emprestou sua voz a tal causa. Até o atual presidente do país, Alberto Fernández, deixou escapar uma declaração racista quando durante uma entrevista em 2021, disse que “os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da selva, mas, nós, os argentinos, chegamos nos barcos”, o que sugere uma ideia de pureza e superioridade r acial. Logicamente, se desculpou ao perceber a repercussão negativa da sua fala.
Como todo país antes colonizado, a Argentina se viu tentada a promover uma espécie de eugenia no seu processo pós independência. E a realizou com sucesso. A anterior colônia espanhola, onde dezenas de milhares de africanos foram escravizados, e eram, até meados do século 18, um terço da população, se transformou no país mais europeu da américa latina. Hoje, segundo censo realizado em 2010, o primeiro em toda a história a perguntar quem era negro no país, menos de 1% da população argentina se declara preta ou parda, o que, na opinião de historiadores, encontra explicação no fato de os negros terem sido dizimados, tanto no processo pós abolição, como nas guerras travadas no país no século 19, onde eram colocados na linh a de frente das batalhas para morrerem.
O processo de apagamento dos negros argentinos foi se dando eficaz e gradativamente, quando, no início do século 20, o governo adotou uma política de imigração para atrair europeus, como parte de um projeto de nação branca e mais evoluída. O número de imigrantes vindos da Europa foi tão grande, que, naturalmente foi superando a população preta que ainda restava no país. Acrescentamos ainda, o fato de que a constituição argentina de 1853 estabelecia que os cidadãos não seriam mais identificados por cor ou raça, o que favoreceu ainda mais a invisibilidade dos descendentes de africanos no país. A negação absoluta da herança africana na Argentina pode ser bem definida através da sua seleção de futebol, a ú nica, em toda história do esporte, a não apresentar um atleta negro sequer entre os seus selecionados.
No duelo entre França x Argentina, os mais desavisados poderiam ter a impressão de que a branquitude europeia estava sendo representada pelo time de Messi e cia. Enquanto, a França, uma das mais cruéis colonizadoras de países africanos da história, terminava a partida com 10 jogadores negros filhos de imigrantes, e apenas o goleiro Lloris sendo branco, os nossos “hermanos” ostentavam na pele o sucesso da higienização racial promovida durante longos anos, e que os levaram a se orgulhar da supremacia ariana reinante em sua nação. Obviamente, este homem preto que vos escreve torceu para os imigrantes franceses e lamentou bastante a derrota da seleção europeia mais africana dessa edição do mundial. A verdade, é que se formos analisar o contexto geopolítico dos pa íses que disputaram a Copa do Mundo, a começar pelo país sede, um verdadeiro paraíso de violação dos direitos humanos e das liberdades individuais, não torceremos para nenhum deles. Sobretudo, o nosso Brasil, um dos lugares mais racistas do universo.
Futebol e racismo não é uma combinação de muito sucesso apenas para os torcedores argentinos. A imprensa esportiva do país também costuma se utilizar do recurso, claro, de forma recreativa, para ironizar os adversários da seleção albiceleste. Em 1996, durante as Olimpíadas de Atlanta, o periódico Olé, conhecido por suas manchetes polêmicas, estampava em sua capa: “Que vengan los macacos”, em referência ao possível confronto contra Nigéria ou Brasil, na final do torneio de futebol masculino daquela edição dos jogos olímpicos. Os argentinos tiveram que engolir a manchete e o vice-campeonato da competição, ao serem derrotados pelos nigerianos por 3x2, mas não deixaram de cometer atos racistas no futebol. Principalmente, co ntra os seus “macaquitos” preferidos. Os brasileiros. Em 2005, durante partida vale pela fase de grupos da Libertadores, o zagueiro Desábato, do Quilmes, chamou o atacante Grafite, do São Paulo de “negro de merda”, após uma jogada dividida entre os dois. O jogador são-paulino registrou queixa contra o argentino, que saiu preso do gramado do Morumbi, mas foi liberado após pagamento de fiança.
Já na copa do Catar, os “hinchas” criaram cantos racistas e homofóbicos para se “divertirem” com a origem africana da maioria dos jogadores da França, e para atacar o relacionamento do craque Mbappé com uma mulher trans. Entre os, digamos, versos das canções, estão frases como “jogam pela França, mas são todos de Angola” e expressões como “cometravas” e “puto”, em referência ao camisa 10 da seleção francesa. Se levarmos em conta que o futebol é um esporte de origem branca, classista e elitista, no qual, durante muito tempo os negros foram proibidos de praticá-lo, entenderemos porque, apesar de sua massiva popularização ao redor do mundo, ele ainda nos oferece episódios e recortes de racismo em diver sas nuances. Na verdade, os séculos de tentativa de europeização da humanidade deixaram um saldo racial bem negativo para todos os sujeitos não brancos existentes no planeta. O que, de certa forma, seja humanamente resignada ou futebolisticamente deliberada, nós, pretos e pretas, somos obrigados a escolhermos um racista favorito para chamar de seu, nesse esporte que mexe muito mais com a paixão, do que com a razão dos torcedores.
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