Aquele domingo
De repente, não mais que de repente, no meio de uma conversa, o bloqueio por eu não compartilhar com o que fizeram do Brasil brasileiro.
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As duas horas daquele domingo não têm comparação em matéria de agonia. Nem quando o locutor José Antônio Marques, numa final entre Sergipe x Confiança, nos anos 1980, simplesmente disse: “São 17 horas, 40 minutos... Apontou, atirouuuu...”. Ele levou uma eternidade gritando gooollll. Outra eternidade e meia com o “ééé dooo...” até chegar no “Sergipeeee!” Pense! Era o meu time na época, assim como o Flamengo. Deixei ambos no meio do caminho. O futebol exige muita energia. Preferi usá-la em outras frentes. Assim, adeus idas ao Batistão, posteres na parede, comemorar gol agarrado ao rádio de pilha, compra semanal da revista Placar etc.
As duas horas daquele domingo, antes que certo tempo verbal ecoasse aos quatro cantos, não têm paralelo na parede da minha memória. Nem as da hemorragia, devido à extração de um dente, até que minha mãe chegasse das compras do comércio em Aracaju; nem a expectativa do resultado dos concursos para professor, para a seleção nas mestragens e doutoragens, nas audiências de conciliação para garantir o leite dos pimpolhos.
As duas horas daquele domingo fizeram-me lembrar tantas ruindades vividas antes delas. No esgarçar de tantos afetos e sonhos coletivos. No capítulo perdas e danos, todo mundo tem uma história pra contar. Meu amigo, o poeta Araripe Coutinho que, como no bordão de Rolando Boldrin, “partiu fora do combinado”, costumava dizer: nunca deveríamos ficar surpresos quando as pessoas nos decepcionassem. Elas sempre foram aquilo. Só esperavam uma oportunidade.
Reluto ante essa fatalidade. Mas penso numa amizade nascida nas horas duras como samango do 28º. BC, em 1980, com quem dividi poemas, punições, piadas, apelidos, morte de um colega, paixões respectivas: Zé Ramalho de um lado; Chico Buarque, do outro. De repente, não mais que de repente, no meio de uma conversa, o bloqueio por eu não compartilhar com o que fizeram do Brasil brasileiro.
Aliás, o “fora do combinado”, que pegou o próprio Senhor Brasil Boldrin, no mesmo dia de Gal Costa, foi uma pancada! Não podemos nos dar ao luxo, nessa hora de reconstrução, de perder referências desse porte. Assim, “Meu coração amanheceu pegando fogo de tristeza/ Adeus, baby Gal.” Agora é conosco. Hora de mirar os lírios e os arrozais orgânicos dos campos. Baixar a poeira e as armas da intolerância. Aquietar nosso coração tropical com as dez coisas que, segundo Rubem Braga, fazem a vida valer a pena. Nós, os delicados, contrariamos o verso de Drummond: preferimos não morrer. Ao contrário, reescrevendo Camões, preferimos acreditar na democracia, essa pequena plantinha da terra que precisa ser aguada todos os dias. Barbárie, nunca mais!
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