Após quase dois séculos, retornamos ao mesmo ponto?

A França do século XXI parece retroceder à do século XIX, até pela sujeição à Alemanha. E o Brasil? Cairá na meritocracia da corrupção, como nas jornadas francesas de 1848?

Emmanuel Macron vence eleições presidenciais francesas
Emmanuel Macron vence eleições presidenciais francesas (Foto: Pedro Augusto Pinho)


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Permitam-me os leitores reproduzir um trecho do editorial do diário francês Le Monde, após a vitória de Emmanuel Macron, para Presidente. Ressaltando o “tom grave” do discurso, o cerimonial “milimetrado” e com incompreensível ataque à candidata derrotada (medo do terceiro turno com as eleições legislativas?), escreve Jérôme Fenoglio (tradução livre):

“... neste país em depressão, o otimista novo presidente deverá rapidamente demonstrar, por sinais concretos, que recebeu as mensagens desta inédita campanha. ..... não transigir com qualquer exigência que causou a queda dos concorrentes: probidade, competência e atenção à crise social ..”

No jornal Le Figaro, um subtítulo afirma: “Macron carrega as esperanças de milhões de franceses e europeus”. Parece que a Europa foi salva; pode-se respirar aliviado, desde que não se pergunte de quem? MasL’Humanité, escrevendo sobre a agonia da V República, chama-o de “estepe da finança” (roue de secours de la finance).

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Há quase 200 anos a França vivia uma situação política complexa. Trato do final dos anos 1840, que coloco na visão de um aristocrata e de um então jornalista alemão.

O aristocrata é o Conde de Tocqueville, Alexis Clérel (1805-1859), autor da conhecida “A Democracia na América”, proprietário de terras na Normandia e membro do parlamento francês. O período que trata está em seu “Souvenirs”, traduzido por Modesto Florenzano (Lembranças de 1848, Companhia das Letras, 1991). O jornalista é Karl Marx (1818-1883), autor do “Dezoito Brumário de Luís Bonaparte”, também sobre este momento histórico.

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Começo pela referência do competente professor Renato Janine Ribeiro na Introdução da obra de Tocqueville: “A modernidade deve muito, em política, a um trecho do Leviatã, no final do capítulo 10, em que Hobbes nega que o merecimento ou a aptidão confiram, a quem quer que seja, o direito de mandar nos outros. Dizendo de outro modo, Hobbes nega que o mais capacitado tenha direito a governar”.

Curiosa a referência do professor; contemporâneo e colega parlamentar de Tocqueville estava o grande romancista Victor Hugo, que também escreveu sobre o mesmo momento (Choses Vues, Gallimard, 1997, dois volumes – I: 1830-1848; II: 1849-1885). Se podemos elogiar a capacidade de compreensão de Tocqueville sobre os interesses em jogo, lamentamos a ingenuidade de Hugo. No turbilhão que se formara no final de fevereiro de 1848, tendo abdicado o rei em favor do neto e sendo Regente a Duquesa de Orléans, Odilon Barrot, que almejava o cargo de Primeiro Ministro, pede ao popular e querido escritor que acalme a multidão comunicando a substituição monárquica. E vai Hugo, alçando-se num pedestal, anunciar a abdicação de um Orleans em favor de outro. Óbvio que só produziu maior revolta no povo ali reunido que invade a Câmara Municipal.

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O historiador Fernand Braudel prefaciando “Souvenirs”, em 1977, pergunta se a França de seu tempo teria mudado diante do que escrevera Tocqueville: “os líderes de partido da minha época pareceram-me quase indignos de comandar, uns por falta de caráter ou de verdadeiras luzes, a maioria por falta de qualquer virtude”.

Quem era, efetivamente, o Poder na França de então? Destes que citei e de outros historiadores parece não haver dúvida que eram o capital financeiro e a alta burguesia. Qual o mal que afligia o povo? Retiro de Braudel que remete às Actes du Congrès de 1848: a fome, que a má colheita e o aumento de 150% nos preços dos alimentos provocaram; o desemprego, que resultava da suspensão do crédito de um bilhão de francos para as obras, e, como natural consequência, o aviltamento dos salários, com queda estimada em 30%. Mas não conheço, nem de historiadores nem de romancistas, como Émile Zola cuja saga dos Rougons Macquart se desenrola nesta época, qualquer queixa vinda dos rentistas.

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Na excelente análise desta obra de Zola, Daniel Augusto Gonçalves, chama a atenção que “a guerra entre a Montanha (artesãos, pequenos burgueses sensíveis aos sans-culottes) e a Gironda (alta burguesia, proprietária, rentista) foi conduzida, de um e de outro lado, pelos membros da burguesia, e o triunfo da primeira nunca fez baixar o poder às mãos do povo”.

Temos pois a realidade de hoje. O povo continua massa de manobra dos detentores de sempre do Poder: o capital. Apenas a mudança de mãos, ora pelos fundiários, ora pelos industriais, ora pelos financistas, ora pela acomodação de interesses, provoca as novas disputas políticas. E o operário? O camponês? O  verdadeiro produtor da riqueza?

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Estes não recebem a lição da conscientização. Ao contrário, são massacrados diuturnamente pelas comunicações de massa, pelas escolas sem partido, pela mais profunda alienação. A França do século XXI parece retroceder à do século XIX, até pela sujeição à Alemanha.

E o Brasil? Cairá na meritocracia da corrupção, como nas jornadas francesas de 1848? Recordemos a célebre frase do mencionado jornalista alemão: a história se repete pela primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

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