Apesar de Bolsonaro, China e Brasil têm boas oportunidades de atuação conjunta na geopolítica mundial no pós-pandemia
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A pandemia da Covid -19 expôs no Brasil a continuidade do racismo em relação à China. Asiáticos e comunidades asiáticas foram marcados como portadores e disseminadores do vírus, sujeitos a agressões e violências, capitaneadas pelo presidente Jair Bolsonaro que, em inúmeras falas, responsabilizou a China pela tragédia sanitária e debochou da vacina Coronavac – vacina desenvolvida pelo país asiático e produzida no Brasil, em parceria com o prestigioso Instituto Butantan. Acontece que a China vem se tornando um parceiro estratégico para alavancar o crescimento recente de inúmeros países da América Latina e, de forma cada vez mais contundente, do Brasil. A corrente de comércio (exportações+importações) entre Brasil e China, de acordo com a Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia, tem apresentado excepcional crescimento: passou de US$ 3,2 bilhões em 2001, para US$ 56,3 bilhões em 2010, US$ 102,6 bilhões em 2020 e mais de U$125,0 bilhões em 2021. As trocas continuam crescendo a despeito da recessão que se abateu sobre o mundo em decorrência da pandemia da Covid-19. A China, a partir de 2009, tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil no mundo e o principal destino das nossas exportações com geração de superávits comerciais (exportações - importações) sucessivos que se contrapõem aos crescentes déficits no comércio exterior com os Estados Unidos (EUA), segundo maior parceiro. Hoje, em torno de 1/3 das exportações totais do Brasil vão para a China. As exportações de commodities, principal grupo da pauta de exportações, foram importante fator dinamizador do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro ao longo de boa parte dos anos 2020 e 2021.
É a China que tem nos assegurado um superávit em transações correntes positivo, algo fundamental para compensar nossos históricos déficits nos balanços de serviços e rendas em um momento em que experimentamos escassez de dólares e ingressos insuficientes de investimentos estrangeiros diretos (IED). Não contar com esse parceiro pode nos custar muito caro nos curto e longo prazos, em termos de geração de empregos e renda e retorno a uma trajetória ascendente de crescimento sustentável.
A China, vem mantendo uma relação amistosa com o Brasil. Afinal, o Brasil é o maior país da América Latina, em tamanho e número de habitantes, e o maior produtor de alimentos e de commodities estratégicas para os projetos de crescimento e segurança alimentar do gigante asiático. Exportamos para China soja, minério de ferro, petróleo, celulose, carne bovina e outras proteínas animais. O Brasil é, também, um mercado consumidor para as mercadorias produzidas pela China nada desprezível, com seus cerca de 213,4 milhões de habitantes. O comércio entre os dois países, contudo, tem sido assimétrico: de acordo com dados do Ministério da Economia quase a totalidade das importações brasileiras da China, no período recente, são de produtos da indústria de transformação, de elevado valor agregado e complexidade tecnológica, enquanto as exportações se concentram em commodities de baixo valor agregado. Esse aspecto não favorece a indústria brasileira que vem a décadas sendo sucateada e já enfrenta um processo de desindustrialização preocupante. Ao mesmo tempo, o modelo de exportações capitaneadas pelas commodities deixa o país em situação de vulnerabilidade em relação a preços e demanda internacionais.
O Brasil é o principal destino dos fluxos de investimentos estrangeiros diretos (IED) da China na América do Sul. Entre 2007 e 2020 a China investiu cerca de US$ 66.1 bilhões no Brasil, totalizando algo em torno de 47% dos investimentos chineses no continente, em setores diversos, passando por extração de petróleo e gás natural, extração de minerais metálicos, máquinas e equipamentos, energia, infraestrutura (alguns projetos relacionados à iniciativa BRI - Belt and Road Initiative ), serviços financeiros, mobilidade urbana e meios de pagamentos digitais, entre outros. Desde 2010, a China se tornou nossa maior fonte de IED. Para além de fluxos de comercio e IED temos com os chineses parcerias diversas, desde cooperação no lançamento de satélites (cooperação que completou 31 anos) a posições conjuntas em fóruns multilaterais internacionais.
No passado, os fluxos internacionais de comércio e investimentos do Brasil se estruturavam em torno do eixo Norte-Sul. No presente, fica evidente que as relações Sul-Sul passaram a prevalecer. O Brasil, em 2021, exportou mais para a Ásia do que para a União Europeia, para os Estados Unidos e Mercosul. Esses resultados são extraordinários. O mercado chinês para os produtos do agronegócio brasileiro tornou-se indispensável e há oportunidades para troca de experiências em tecnologia e inovação em economias de baixo carbono e em inúmeros outros setores.
O Partido Comunista Chinês (PCC) que comanda a China há cem anos é pragmático. Sabe que os governos como o do Brasil são temporários e parcerias estratégicas são mais duradouras. O PCC não parece levar o presidente Bolsonaro e suas verborreias muito a sério.
A parceria estratégica do Brasil com a China já dura mais de 50 anos. No início dos anos 1970, houve tentativa de aproximação comercial bastante tímida com a venda de açúcar brasileiro aos chineses. O ministro Pratini de Morais conseguiu convencer o governo militar de que a venda de açúcar não tinha caráter ideológico. Era uma necessidade para um país em crescimento estabelecer relações de comércio com países sem levar em conta seus modos de produção. Com o fim da Guerra Fria, em dezembro de 1991 - após a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mudanças políticas e econômicas se seguiram e o Brasil redimensionou sua estratégia de inserção internacional, passando a priorizar um relacionamento mais intenso com a região da Ásia-Pacífico, vislumbrando potenciais possibilidades de complementaridades e parcerias.
O sucesso dos modelos de desenvolvimento de inúmeros países asiáticos – China e os velhos e novos `tigres asiáticos’ - além do tradicional parceiro na Ásia, o Japão, chamavam a atenção dos nossos governantes. Em 1993, no governo Itamar Franco, a Ásia foi definida como uma das prioridades da diplomacia brasileira em função de seu potencial cooperativo nos campos científico e tecnológico, mas, também, enquanto mercado para comércio bilateral - exportações e importações. Por outro lado, já havia a percepção de que, politicamente, juntar-se a países em desenvolvimento atendia aos objetivos brasileiros de relacionamentos bilaterais e de associação para a defesa e fortalecimento de posições similares em fóruns multilaterais – no G20; no âmbito das Nações Unidas, a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC na sigla em inglês), na Organização Mundial do Comércio (OMC) - de forma a garantir os interesses brasileiros. A diversificação de parcerias nos fortalecia na busca por inserção independente e autônoma na ordem econômica mundial.
Os presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995), Lula (2003) e Dilma Rousseff (2011) foram na mesma direção, atribuindo atenção redobrada para o que vinha acontecendo na China e mais tarde na Índia. Ou seja, a partir dos anos 1990, há um aprofundamento do relacionamento brasileiro com a Ásia, com notórias diferenças em relação aos períodos anteriores. O Japão perde sua posição como o mais importante parceiro no campo comercial e em investimentos, entre os países asiáticos, ao tempo em que as relações com a China, Coréia do Sul e os países da ASEAN (Indonésia, Malásia, Filipinas, Singapura, Tailândia, Vietnã) são significativamente ampliadas e sobrevivem às turbulências das crises asiáticas e do próprio Brasil do final do século passado. O governo golpista de Michel Temer (2016) não altera a política externa prevalecente e o de Jair Bolsonaro (2019), embora não fazendo qualquer mudança de fato, muda o tom do discurso mostrando um alinhamento ostensivo com o governo dos EUA de Donald Trump, ancorado basicamente em razões de cunho ideológico haja vista que em termos de comércio o país já vinha perdendo a antiga liderança.
Na agenda internacional de alianças e, em particular, na voltada para as mudanças do clima que se descortina, no pós-pandemia, a mesma tendência de aproximação entre Brasil e Ásia vem se confirmando. No Século XXI, em 2006, surge o BRIC (coletivo formado por Brasil, Rússia, Índia e China) que em 2010, com a incorporação da África do Sul, se torna BRICS; e o BASIC (grupo composto pelo Brasil, África do Sul, Índia e China) que surgiu em dezembro de 2009, para alargamento de ações conjuntas na 15ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 15) quando estava em jogo o estabelecimento de metas internacionais de redução de gases causadores do efeito estufa. Essas iniciativas se fortaleceram ao longo da década de 2010 com a criação, em 2014, do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o Banco do BRICS, com o objetivo de financiar projetos de infraestrutura em países emergentes. Tudo se desorganiza, no início de 2020, quando o mundo mergulha na maior crise mundial sistêmica desde 1930, dessa vez decorrente da crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19.
A dimensão da crise sanitária e seus efeitos econômicos e sociais catastróficos se manifestam em escala mundial. A esses efeitos soma-se o arrefecimento das crises climáticas. A publicação do relatório do IPCC (Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas da ONU), em agosto de 2021, deu um alerta máximo. O Planeta está aquecendo e o homem é o maior responsável por essas mudanças e suas consequências: eventos climáticos extremos de calor, de secas, inundações, incêndios, derretimento de geleiras, nuvens de poeira, elevações no nível do mar etc. As soluções são conhecidas: urge reduzir a utilização de combustíveis fósseis, investir em energia limpa, produzir de forma sustentável, combater desmatamentos e recuperar as florestas. O Observatório do Clima tem alertado que, sob Bolsonaro, a maior floresta tropical do mundo, a Floresta Amazônica, vem perdendo, em média, algo em torno de 8.800 quilômetros quadrados de área por ano por conta de desmatamentos. Com isso afugentamos investidores e consumidores que no mundo inteiro passam a exigir condições de produção que se adequem às exigências de uma economia mais respeitosa com o meio ambiente. Mais retrocessos. Mais entraves ao crescimento do Brasil.
A pobreza aumenta em todos os continentes. No caso do Brasil, a pandemia agravou de forma contundente as desigualdades de renda e de riqueza e aprofundou os desequilíbrios sociais. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, antes da pandemia, o grupo dos 10% mais pobres da população brasileira se apropriava de 0,8% da renda enquanto os 10% mais ricos recebiam 43% da renda total. A comparação da renda das famílias revelou que o 1% dos mais ricos e que representam o topo da distribuição recebiam uma renda 38 vezes maior do que os 50% mais pobres da população. No final de 2019, o Brasil havia sido destaque no relatório de desenvolvimento humano divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). De acordo com o estudo, o país era o sétimo mais desigual do mundo, atrás apenas de nações africanas. A concentração de renda sempre foi algo que nos envergonhou e com a pandemia só se aprofundou. De acordo com dados recentes da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em estudo do FGV Social, a pandemia jogou para baixo da linha da pobreza cerca de 17,7 milhões de brasileiros que se somaram a 9,5 milhões previamente existentes totalizando 27,2 milhões em fevereiro de 2021 o que equivale a 12,8 % de uma população de 213,4 milhões de pessoas. Os cálculos mostram o papel devastador da Covid-19 no País.
A história recente da China surpreende. É a economia que mais cresceu nas últimas três décadas sendo hoje a segunda maior economia do mundo com possibilidade de ultrapassar os EUA até 2030. É um caso de sucesso fenomenal. Com 1,41 bilhão de habitantes, nos últimos cinco anos, a China logrou erradicar de seu território a extrema pobreza e busca agora melhorar as condições de vida da população que ainda permanece abaixo da linha de pobreza. Realizou mudanças no modelo de desenvolvimento com ênfase mais na qualidade e menos na magnitude das taxas de crescimento, fortalecimento do seu mercado interno e criação de empresas líderes globais em setores tais como energia, transporte e tecnologias de ponta mirando a independência tecnológica. Tais dimensões e uma agenda ambiental internacional ambiciosa, explicitada no seu 14º Plano Quinquenal para 2021/2025, apontam para uma reviravolta na forma como a China atuará nos próximos anos na geopolítica mundial que vai moldando a propalada “nova ordem econômica mundial”.
É perceptível que uma espécie de nova Guerra Fria vem se delineando no século XXI entre os Estados Unidos e a nova, porém milenar, potência asiática, a República Popular da China (RPC) ameaçando o fim da ordem mundial iniciada ao final da II Guerra Mundial e gerando uma disputa por liderança que força países a tomarem posições entre um e o outro. Cresce o temor do “comunismo” (personificado agora principalmente pela China) e de posições extremistas de direita que comprometem a sobrevivência de regimes democráticos sólidos e outros em fase de consolidação de suas frágeis democracias (caso do Brasil). No campo da tecnologia, essa competição por liderança é notória e se manifesta na tentativa dos EUA de desestimularem a aquisição por países, como o Brasil, de tecnologias provenientes de países considerados comunistas. Até mesmo na corrida por suprimento de vacinas, que podem livrar o mundo da pandemia da Covid-19, esse confronto é evidente e reverbera para a economia mundial impactando o processo de recuperação global.
A China desponta em condições vantajosas para pleitear posição de liderança na economia mundial. Marcha na direção de tornar-se a economia número um em termos de PIB e apresenta avanços científicos e tecnológicos surpreendentes, se tornando gigante em setores de petróleo e gás natural, comércio digital, inteligência artificial, seguro de vida, transportes, chips, entre outros. A pandemia está relativamente sob controle em seu território com mais de um bilhão de pessoas vacinadas. E a China parece determinada a ocupar posição de destaque na governança mundial, se antecipando no enfrentamento das múltiplas crises globais da atualidade: a crise sanitária, a profunda crise econômica, social e política e os severos riscos relacionados com as mudanças climáticas. Os Estados Unidos, potência hegemônica desde os primeiros anos da década de 1940, se sentem ameaçados e não abdicarão facilmente dessa posição. Os conflitos, para além da China, também ocorrem com a Rússia, no caso da Ucrânia, ameaçando a paz mundial. Rússia e China devem atuar conjuntamente nessa atual crise como já o fazem em outros fóruns voltados para a cooperação internacional e enfrentamento dos desafios da atualidade e defesa de um mundo multipolar. Os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) permanecem alinhados com os Estados Unidos.
No Brasil, muitos conjecturam sobre essa conjuntura internacional em transição e destacam sua complexidade, mas convergem quanto aos principais desafios: i) controle da pandemia; ii) busca de novos motores de crescimento quando modelos focados na industrialização (Brasil vive um momento de desindustrialização) ou alavancados por exportações de commodities estão sob questionamento; iii) a busca por formas de produção e consumo sustentáveis; iv) enfrentamento da fome e da desigualdade extrema de renda e riqueza.
Está claro que não se sobrevive sem alianças e na liderança dos países em desenvolvimento estão economias como China e Índia, tradicionais parceiros do Brasil ao longo das últimas décadas. Não podemos ceder aos desvarios de Bolsonaro e seu espírito de submissão aos Estados Unidos, retrocedendo numa política externa que nos colocava como articulador estratégico junto aos países da América Latina e dos BRICS, portanto, em posição de destaque para nos posicionarmos na geopolítica global que se configura no pós-pandemia. As atitudes de Bolsonaro, em especial com relação à China, comprometem a saída da crise sanitária, a recuperação do Brasil e toda sua história recente. As eleições no Brasil de 2022 representam uma oportunidade ímpar de colocar de volta nos trilhos o trem descarrilhado que se chama Brasil.
Notas
- Alguns dos pontos aqui abordados fazem parte do artigo do mesmo autor intitulado `Brasil e China na ordem ambiental internacional das mudanças climáticas, Teoria e Debate, edição 212, de 02/09/2021.
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