Aos mestres, no seu dia
Engano. Zelita nos ensinava coração. No chão da terra sem calçada, em aulas magníficas sem pagamento e sem cátedra. Sabemos hoje, Zelita nos desejava e abrigava todos como filhos, de todos os tamanhos. Aos mestres, enfim, com carinho e gratidão
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Sei que para os professores vale o lugar-comum falado sobre as mães, sobre os trabalhadores, sobre os comunistas, sobre os escritores imortais, sobre toda a humanidade que resiste: o seu dia são todos os dias. É verdade. Mas não podemos perder a oportunidade do gancho do calendário, que nos pendura à excelência esquecida. Então do meu canto de aprendiz envio para os mestres.
Para eles, primeiro vem o gênio imortal de Paulo Freire, que completou 100 anos com este nível de pensamento:
“Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um ‘tratamento’ humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores, modelos para a sua ‘promoção’.
“Só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira”
Depois me vêm os imortais que vi e vivi no Colégio Alfredo Freyre, como o Professor Arlindo Albuquerque:
Eu o vejo a caminhar na sala, com a dicção precisa, mais de uma vez com o entusiasmo na voz, a conversar conosco de igual para igual, quero dizer, de igual para a altura do seu humanismo. Ele nos escolhia como o público ideal para ouvir Jean-Jacques Rousseau. Acreditam nisso, meninos pobres em uma escola pública a ouvir um mestre em voz alta nos contar sobre o prazer de andar a pé, escrito no texto de Rousseau?
E líamos, e passávamos pela Revolução Francesa: “Le peuple, que se croyait de plus em plus trahi, se porta em masse à l'Hotel des Invalides”…. Essas coisas agora retornam como uma canção, como se fossem música, ainda que do francês eu mal consiga conjugar os verbos Avoir e Être. Esse francês a gente lembra porque uma lição mais funda vinha naquelas aulas do professor Arlindo Albuquerque. Em lugar da conjugação mecânica de verbos ele nos legava um valor permanente de humanidade. Sem trombetas, de bata azul, em um subúrbio que hoje chamam de periférico, de nome Água Fria. Ninguém nunca nos falou tão bem sobre a felicidade que é a liberdade de consciência.
Antes dele houve a eterna professora Termutes. Lembro a professora Termutes, do Ginásio Ipiranga em Água Fria, que sumiu no tempo. Ela, Termutes, a professora Termutes, ensinou a todos os alunos a dádiva da leitura em voz alta, e de tal modo que parecia formar atores do rádio, pelo que ela sabia extrair do texto com pausas, ênfases, inflexões na voz conforme o sentido da palavra escrita. Isso no antigo segundo ano primário! Ela nos ensinava a ler com interpretação na voz, tão diferente de atores de telenovelas que não sabem dar a entonação de uma pergunta.
Ainda no sentido do coração vem a professora Rosa. Ela ensinava desenho e artes plásticas aos meninos pobres do Colégio Alfredo Freyre. Alta, magra, com uma dedicação e afeto por aqueles jovens que um dia, talvez, quem sabe, se Deus provesse, poderiam ser ilustres pintores.
E mais longe, da primeira infância, vem uma professora sem diploma. Zelita, a moça solteira, Zelita, solteirona, que era discriminada por sofrer de epilepsia. Perdoem a barbárie, mas era assim, pessoas recebiam o tratamento de inválidas, estúpidas e loucas, porque de repente caíam entre convulsões. Quem tocasse na sua baba seria eletrocutado, passaria também a sofrer descargas nervosas. No entanto, nesse Recife bárbaro, Zelita se erguia e ensinava aos meninos contas de dividir, imensas, com divisores de quatro ou cinco algarismos, sorrindo, que era sua maneira de estar com os meninos. Zelita erguida a nos ensinar conta de dividir, pensávamos. Engano. Zelita nos ensinava coração. No chão da terra sem calçada, em aulas magníficas sem pagamento e sem cátedra. Sabemos hoje, Zelita nos desejava e abrigava todos como filhos, de todos os tamanhos.
Aos mestres, enfim, com carinho e gratidão.
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