Ao perseguir Aroeira, Mendonça ignora decisões do STF onde quer sentar
Jornalista Marcelo Auler afirma que o ministro da Justiça, André Mendonça, "parece desconhecer". "Ainda assim, ele sonha em um dia fazer parte daquele plenário. Pelo jeito, terá que estudar um pouco mais as decisões que ali já foram tomadas. Não bastará ser apenas 'terrivelmente evangélico'"
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Por Marcelo Auler, em seu blog - Potencial candidato a uma das duas vagas a serem abertas no Supremo Tribunal Federal (STF) durante o mandato de Jair Bolsonaro – caso este consiga permanecer no cargo até 2022 -, o atual ministro da Justiça, André Luiz Mendonça, na expectativa de agradar ao chefe, acabou por atropelar a jurisprudência daquela corte, demonstrando despreparo para compor aquele plenário.
A rejeição, por nove votos a um, do Habeas Corpus (HC 186.296) que ele impetrou no STF visando retirar o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, da investigação do Inquérito (INQ 4781) transformou-se em atestado do seu desconhecimento da jurisprudência ali firmada. O inquérito apura a disseminação de fake news e os ataques à corte e a seus ministros, situação em que Weintraub se encaixou ao chamá-los de “vagabundo” e defender suas prisões.
Mendonça pode ainda sofrer nova derrota no STF ao, em novo ato típico de bajulação, propor uma perseguição ao chargista Renato Aroeira e ao jornalista Ricardo Noblat. A derrota poderá surgir na ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 697) que os advogados da Rede de Sustentabilidade impetraram contra o pedido do ministro da Justiça à Polícia Federal e à Procuradoria Geral da República (PGR) de instauração de inquérito policial (IPL) para enquadrar os dois na Lei de Segurança Nacional, por conta de uma charge de Aroeira retratando as afinidades do presidente com o nazismo. Na visão dos advogados da Rede, isto se torna uma intimidação não apenas aos dois, mas aos jornalistas de uma forma em geral.
Tanto o habeas corpus como o pedido do inquérito assombraram o meio jurídico. Não se conhece, por exemplo, nenhum caso em quem um ministro da Justiça recorreu ao judiciário na defesa de um colega investigado. A tarefa poderia até ser feita, e ainda assim sujeita a críticas, pelo Advogado Geral da União (AGU), cargo que Mendonça deixou ao substituir Sérgio Moro no MJ. Além de uma possível “usurpação de poder”, ele usou a “via errada”, ignorando a jurisprudência da corte. Por isso, o HC sequer foi recebido. Também mostra desconhecer a jurisprudência ao tentar intimidar os jornalistas.
Para os ministros do STF, as críticas são inerentes à liberdade de imprensa, logo, aos trabalho dos jornalistas. “Não tem a imprensa livre, por definição, compromisso com uma suposta neutralidade, e, no dia que eventualmente vier a tê-lo, já não será mais livre“, sintetizou a ministra Rosa Weber sobre o entendimento vigente na corte, em decisão de junho de 2014. O uso da lei da época da ditadura para perseguir jornalistas, inclusive, já foi criticado no STF em decisão do decano do STF, ministro Celso de Mello, em agosto de 2005.
O pedido de inquérito contra chargista e jornalista já se revelou um grosseiro erro político e tem tudo para se transformar em mais uma derrota do pretenso candidato ao STF àquela corte.
A charge que Mendonça quis coibir, não se sabe se por iniciativa própria ou atendendo a pedidos, em decorrência da sua iniciativa, viralizou nas redes sociais e saiu até em jornais impressos. Por solidariedade a Aroeira e repúdio à ameaça, mais de 70 chargistas no Brasil e no exterior republicaram o desenho acrescentando seus traços ao original.
Ou seja, a iniciativa de Mendonça apenas ajudou a multiplicar a visibilidade da arte sagaz de Aroeira. Não bastasse, deixou uma questão em aberto: o ministro também cobrará providências à PF e à PGR para cada um destes chargistas, repetindo o que fez com Aroeira? Ou abrirá mão da coerência, fingindo que não viu as republicações?
Mendonça usou a “via inadequada”
Na derrota jurídica de Mendonça no HC pró Weintraub, o ministro Edson Fachin, relator do caso, ao que parece não teve muitas dificuldades para rejeitá-lo. Sem sequer chegar à análise do mérito, foi curto e grosso na decisão que não preenche duas laudas. Com 474 palavras, espalhadas por 56 linhas divididas em 14 parágrafos (cinco deles transcrevendo ementas de acórdãos) recusou a análise do mesmo, no que foi seguido por nove colegas, em um total de dez votos (Alexandre de Moraes deu-se por impedido).
Fachin lembrou que por diversos julgados ali realizados – o que Mendonça mostrou desconhecer -, já ficou caracterizado que o habeas corpus não é reconhecido na corte como remédio contra decisão monocrática de qualquer dos ministros. Logo. no início da sua decisão, o relator apontou o erro do ministro da Justiça: “A via eleita não é adequada”. Em seguida, explicou:
“Este Supremo Tribunal tem jurisprudência consolidada no sentido de não caber habeas corpus contra ato de Ministro no exercício da atividade judicante, incidindo, por analogia, a Súmula 606 deste STF“.
A negativa no Supremo também provocou resultado inverso do desejado pelo ministro de Bolsonaro. Afinal, consolidou o rol de investigados no Inquérito 4781 que apura as falsas notícias e as ameaças aos poderes constituídos. Medida ainda reforçada no julgamento pelo qual o Supremo, por dez votos a um, confirmou a legalidade desse inquérito, instaurado em março de 2019 pelo presidente da corte, Dias Toffoli e presidido, com mão pesada, pelo ministro Alexandre de Moraes. Bolsonaristas e governistas como Mendonça torciam pela decretação da ilegalidade da investigação.
É ainda Moraes quem comanda o INQ 4828. Atraves dele, esmiúça os organizadores – em especial os financiadores – das chamadas manifestações antidemocráticas. Duas apurações que certamente tiram o sono dos Bolsonaros. Tanto quanto os desdobramentos do Caso Queiroz. Mas esta investigação está a cuidado do Ministério Público e da Justiça do Estado do Rio.
Pedido provocará o questionamento da LSN
A iniciativa de intimidar chargistas e jornalistas – objetivo maior do governo ao perseguir Aroeira e Noblat – além de ser um tiro sem maiores consequências, deixará em Mendonça a marca do autoritarismo. Afinal, na solicitação do inquérito contra os dois, recorreu a um dos entulhos do regime ditatorial, a Lei de Segurança Nacional (Lei Nº 7.170), de 14 de dezembro de 1983, portanto, no governo do último general – João Baptista Figueiredo – a usurpar o poder em consequência do golpe de 1964.
O que Mendonça desconhece é que sua iniciativa pode abrir um caminho bem diferente do que desejou. Provocar um efeito contrário, caso a decisão não seja derrubada antes pela ministra Cármen Lúcia, relatora da ADPF impetrada pela Rede de Sustentabilidade.
Celso de Mello rejeitou LSN e defendeu a crítica
A ADIn 4.815, relatada por Cármen Lúcia e citada por Prazeres, foi na mesma toada. Tratou do direito sobre biografias, quando os ministros derrubaram a exigência de autorização dos biografados para que uma obra fosse publicada. Os exemplos são variados, como este BLOG já noticiou diversas vezes, até mesmo por conta das defesas que nossos advogados apresentam nos processos que nos moveram e que estão sendo, aos poucos, derrubados.
Vale citar dois exemplos claros de que no Supremo prevalece o direito do cidadão à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, até para poder formar seu juízo de valor, inclusive na hora de participar de decisões pelo voto. Pelo entendimento dos ministros do STF, no guarda-chuva da liberdade de imprensa, abriga-se, inclusive, o direito à crítica, tal como a “a arte sagaz de Aroeira”.
Um exemplo vem de uma decisão do decano na corte, ministro Celso de Mello, que se encaixa perfeitamente bem no caso provocado por Mendonça contra Aroeira e Noblat. Foi na Petição (Pet.) 3.486, apresentada pelo advogado Celso Marques Araújo, em agosto de 2005, portanto durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Por livre e espontânea vontade, Araújo pretendeu, tal como Mendonça pretende hoje, instaurar um processo penal contra jornalistas da revista Veja – Marcelo Carneiro e Diogo Mainardi -, além do próprio dono da Editora Abril, Roberto Civita. Recorreu também à Lei de Segurança Nacional, alegando o “crime de subversão contra a segurança nacional, que está colocando em perigo o regime representativo e democrático brasileiro, a Federação e o Estado de Direito e crime contra a pessoa dos Chefes dos Poderes da União”.
O pedido continha um erro básico. Foi feito ao STF apesar de nenhum dos alvos do advogado – os jornalistas e o dono da editora Abril -, terem foro especial. Logo, qualquer ação deveria ser proposta junto à justiça de primeiro grau. Celso de Mello, porém, não se limitou a rejeitar a Petição pelo erro formal. Ingressou no mérito, mostrando o seu despropósito por ir de encontro à Liberdade de Expressão. Consta da sua decisão, de 22 de agosto daquele mesmo ano:
“(…) impõe-se observar que o teor da petição em referência, longe de evidenciar supostas práticas delituosas contra a segurança nacional, alegadamente cometidas pelos jornalistas mencionados, traduz, na realidade, o exercício concreto, por esses profissionais da imprensa, da liberdade de expressão e de crítica, cujo fundamento reside no próprio texto da Constituição da República, que assegura, ao jornalista, o direito de expender crítica, ainda que desfavorável e exposta em tom contundente e sarcástico, contra quaisquer pessoas ou autoridades.
Ninguém ignora que, no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão penal ao pensamento, ainda mais quando a crítica – por mais dura que seja – revele-se inspirada pelo interesse público e decorra da prática legítima, como sucede na espécie, de uma liberdade pública de extração eminentemente constitucional (CF, art. 5º, IV, c/c o art. 220).
Não se pode ignorar que a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação de pensamento e de comunicação, reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, dentre outras prerrogativas relevantes que lhe são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de buscar a informação, (c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar. A crítica jornalística, desse modo, traduz direito impregnado de qualificação constitucional, plenamente oponível aos que exercem qualquer parcela de autoridade no âmbito do Estado, pois o interesse social, fundado na necessidade de preservação dos limites ético-jurídicos que devem pautar a prática da função pública, sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar os detentores do poder.”
Imprensa não precisa ser neutra
Os exemplos se multiplicam. Como a decisão da ministra Rosa Weber ao relatar, em 30 de junho de 2014, a Reclamação 16434/ES, na qual a revista eletrônica capixaba Século Diário protestava pela censura que lhe foi imposta. Mais uma vez o STF reafirmou a impossibilidade de censura, mesmo diante de críticas aos agentes públicos.
Destaque-se, por essencial, a afirmação da ministra com relação ao dever dos jornalistas de abrirem mão da neutralidade e exercerem a crítica: “Não tem a imprensa livre, por definição, compromisso com uma suposta neutralidade, e, no dia que eventualmente vier a tê-lo, já não será mais livre.” Está em sua decisão:
“Ora, o núcleo essencial e irredutível do direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento compreende não apenas os direitos de informar e ser informado, mas também os direitos de ter e emitir opiniões e de fazer críticas. O confinamento da atividade da imprensa à mera divulgação de informações equivale a verdadeira “capitis diminutio” em relação ao papel social que se espera seja por ela desempenhado em uma sociedade democrática e livre – papel que a Constituição reconhece e protege.
Em nada contribui para a dinâmica de uma sociedade democrática reduzir o papel social da imprensa a um asséptico aspecto informativo pretensamente neutro e imparcial, ceifando-lhe as notas essenciais da opinião e da crítica. Não se compatibiliza com o regime constitucional das liberdades, nessa ordem de ideias, a interdição do uso de expressões negativas ao autor de manifestação opinativa que pretenda expressar desaprovação pessoal por determinado fato, situação ou ocorrência.
Aniquilam, portanto, a proteção à liberdade de imprensa, na medida em que a golpeiam no seu núcleo essencial, a imposição de objetividade e a vedação da opinião pejorativa e da crítica desfavorável, reduzindo-a, por conseguinte, à liberdade de informar que, se constitui uma de suas dimensões, em absoluto a esgota. Liberdade de imprensa e objetividade compulsória são conceitos mutuamente excludentes. Não tem a imprensa livre, por definição, compromisso com uma suposta neutralidade, e, no dia que eventualmente vier a tê-lo, já não será mais livre.
Toda esses julgados do Supremo demonstram que através da ADPF impetrada pela Rede de Sustentabilidade a investida contra Aroeira e Noblat poderá vir a ser derrubada liminarmente. Tudo respaldado na própria jurisprudência daquela corte, que o hoje ministro da Justiça parece desconhecer. Ainda assim, ele sonha em um dia fazer parte daquele plenário. Pelo jeito, terá que estudar um pouco mais as decisões que ali já foram tomadas. Não bastará ser apenas “terrivelmente evangélico”, qualidade defendida por Bolsonaro, em julho de 2019, para que ele indique à primeira vaga a ser aberta.
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