Antropologia da sofrência, um estudo de caso
Ouço, porque não sou surdo, por todos os lados, a dissonante estridência do culto ao sofrimento, uma descarada e alienada apologia da dor e da desgraça
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O meu vizinho de parede mora relativamente bem: casa de frente pro mar, grama verde no quintal e um jardim cheio de flores coloridas que atraem beija-flores e borboletas.
Tem, também, um pequeno comércio no centro e duas casas alugadas.
Cria dois gatos e é, ele mesmo, o animal de regaço de sua esposa amantíssima; o casal de filhos está terminando a faculdade.
Parece que temos aí uma vida feliz, não é mesmo?
Quem não imagina esse sujeito assim, com um largo esgar de sorriso nos lábios, a regar a relva doméstica, ao som d’A Primavera, de Vivaldi: fan fan fanran ran fan fan fan...
No entanto, quem o diria?, esse pequeno burguês se diverte, em casa e sempre ao pé da churrasqueira, ouvindo músicas alegremente tristes; tanto as do presente quanto as do passado.
“Desce desse pole dance..., volta pra mim..., cucurucucu Paloma...”
Por quê diabos?
Ouço, porque não sou surdo, por todos os lados, a dissonante estridência do culto ao sofrimento, uma descarada e alienada apologia da dor e da desgraça.
“Ô, Rita, volta desgramada...”
Copos sempre cheios, corpos sempre vazios e insaciados, malas de carros abertas e as ébrias lágrimas escorrendo pela sarjeta.
“Volta que eu perdoo a facada.”
Uns infelizes choram, enquanto outros cantam, trocam perdigotos, esfregam-se uns nos outros, sorriem e gargalham do infortúnio do irmão de copo, num sadomasoquismo teatral e brincante.
O diabo é que o sujeito que sorri hoje é o mesmo que pode estar a chorar amanhã.
Schopenhaeur diria que o futuro sofrente se felicita com a sofreguidão do sôfrego presente porque acredita que o sofrimento do outro é bem maior que o seu.
Humm. Já temos a cabeça do boneco.
O meu vizinho é um bom católico, se benze antes de dormir, vai à igreja aos domingos e sempre deixa umas moedas na sacola de espórtulas.
É nessa hora que o psicólogo põe a mão no queixo, inclina o corpo, curioso, e dá uma invisível baforada no charuto de Freud: “fale-me mais sobre isso”.
Sabemos que o catolicismo trouxe, junto com a chibata, a cruz que é, ao fim e ao cabo, um símbolo sagrado do culto à dor e ao sofrimento.
A Paixão de Cristo não é a Madalena, é o teatro da tortura e da mortificação.
Além do Cristo esquálido e coberto de sangue, pendurado nos altares, a Igreja também é adornada com outros santos, ditos mártires, cujo calvário é a sua marca maior.
Lembro-me de ter frequentado, quando criança, a igreja de São Sebastião. Na entrada, tinha uma enorme estátua do homenageado, nu da cintura pra cima, com uma canga pendurada na cintura e o dorso cravejado de flechas.
Quem não se lembra do pobre São Esteves, o protomártir, morto a pedradas – oh, opróbrio -, ou mesmo de São Lourenço que, ardendo vivo numa grelha infernal, gracejou a seus algozes, “podem me virar, porque esse lado já está bem assado”.
Não basta sofrer, é preciso sentir prazer na dor da morte, no êxtase deleitoso da alma que, finalmente, se desprende do corpo.
Esse lance de êxtase foi o Sartre quem falou n’O Ser e o Nada, onde afirma que tanto o sadismo quanto o masoquismo são uma “assunção de culpabilidade”.
O homem que vai ao cabaré é o mesmo que chora por ser chifrado, é um sofrimento de culpa, nada é mais católico do que a dor da culpa.
O sertanejo universitário e o arrocha da quinta-série são frutos dessa mentalidade.
No palco, o cantor sofrêncio representa o sádico da língua de chibata com a qual a plateia se masoquiza.
Para Sartre, o sádico é aquele puto covarde que aplica no outro as dores que deveras sente.
Porque você sabe, quando não está cantando, o cantor também é plateia; ou seja, aquele que fere com ferro, com ferro também é ferido.
Sedentos pela epicúrica e dionisíaca liberdade dos prazeres e presos à culpa e à castração da igreja, esses molambos vivos vivem numa eterna ambivalência.
Durante a semana, cabaré, buteco, bate-coxa nos forrós e bate-bundas nos fluxos e, no domingo, penitência, genuflexão, rezas e ave-marias.
Segunda-feira, chifre.
Meu vizinho, como os seus pares de audição, tem essa necessidade do abismo, dessa mortificação interior, necessita descer à escuridão das catacumbas.
Essa treva representa o inconsciente.
De forma consciente e conscienciosa, o sujeito entra no primeiro puteiro da esquina. Em seguida, a culpa sai com ele de mãos dadas.
O venerando Mestre Cafuna chama isso de antro-apologia.
No grego, o étimo antro designa uma caverna sombria, covil de feras, mas aqui também significa um lugar de vícios e perdição: consciente e inconsciente.
Eis aí um arranjo metafísico e psicológico para dar vida ao nosso homo sofrencius.
Os epistemólogos de buteco, cornólogos e cornólatras, chamam de sofrência a este gênero musical que é, em síntese, apenas uma nova roupagem para uma manifestação cultural brazuca recorrente, atávica e que, por isso mesmo, se manifesta como um fenômeno ontológico e patológico da nossa gente.
“Eu não sou cachorro não...”
Claro que não é, os cães são livres, andam nus, não frequentam igrejas, não adoram santos e nem querem santas as cadelas, não têm relação de posse com suas parceiras e, por isso mesmo, não traem e nem se sentem traídos.
O chifre, apesar de estar na cabeça de alguns animais e até do próprio capeta, é uma típica invenção da cristandade.
Há, no entanto, outra questão, tãomente importante e que deixa o analista em estado de aporia: é que o homem sem chifres é um animal indefeso.
Palavra da salvação.
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