Antônio Maria em Vento Vadio
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“Com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria. Brasileiro, cansado, 43 anos, cardisplicente (isto é: homem que desdenha do próprio coração). Profissão: esperança”.
Assim terminava a crônica “Evangelho, segundo Antônio”, em 23/07/1964, último ano de vida do gênio da crônica brasileira. Na frase estava também o mote do grande espetáculo “Brasileiro, profissão Esperança”, com Paulo Gracindo e Clara Nunes, que percorreu com sucesso todo o Brasil em 1973, repleto de canções de Dolores Duran e textos e canções de Antônio Maria.
Mas agora, com duas boas notícias. A primeira delas é que o pesquisador Guilherme Tauil, na antologia “Vento Vadio”, reuniu 185 textos de Antônio Maria, a maioria só publicada em jornais e revistas. Para mim, é um dos melhores livros de 2021. E continua a ser neste começo de 2022 e próximos.
A segunda boa notícia, ou dizendo melhor, a ótima notícia, são as próprias crônicas do escritor que cantava “sou do Recife com orgulho e com saudade, sou do Recife com vontade de chorar”. A primeira vez em que o li foi no livro “O jornal de Antônio Maria”, que conheci no ano da desgraça da ditadura em 1970. Esse era o meu volume guardado e resguardado em um quarto de pensão, com risco até de ser reimpresso em um mimeógrafo, que mal se escondia debaixo da cama.
Mas desta vez, de outra maneira o encanto permanece. Na altura da leitura deste “Vento Vadio”, estamos maduros para duas ou três observações. Hoje, podemos ver que Antônio Maria envelheceu muito cedo. Quero dizer, ele escreveu como se fosse um homem da idade de mais de 70 anos sobre o Recife da sua infância e juventude. No entanto, ele estava com apenas 30 anos de idade! Nele há crônicas que são verdadeiras Evocações, como seria a imortal Evocação número 1 de Nelson Ferreira:
Não à toa Antônio Maria pôs nomes nos seus lindos frevos de Frevo número 1, Frevo número 2, Frevo número 3. E um dado curioso do seu gênio: ele antecipou as Evocações de Nelson Ferreira, que compôs a Evocação número 1 em 1956, enquanto o Frevo número 1 vem de 1951. Mas aqui importa mais a sua prosa poética. Antônio Maria fez mais que evocar. Invocou para sempre:
“Não se pode fazer ideia do que era o povo do Recife, solto nas ruas do Recife, após a declaração irreversível de Carnaval. Faziam parte da corte imperial mulheres morenas, que suavam, em bolinhas, na boca e no nariz. Mulheres de olhos ansiosos, presas de todos os atavismos de religião e dor, a dançar a mais verdadeira de todas as danças – o frevo.
Ah, de nada serviam suas heranças de submissão, porque o despontar do Carnaval era um grito de alforria. E seus corpos, seus braços, seus pés teriam sido repentinamente descobertos, assim que os clarins do Batutas de São José romperam o silêncio a que os humildes eram obrigados. Tão louca e tão bela aquela dança! Uma verdade maior que as verdades ditas ou escritas saía dos seus quadris até então bem-comportados”.
Na leitura das suas crônicas, sobe na gente uma enganosa sensação de que Antônio Maria escreveu seus melhores textos na idade de 70 anos, quando na verdade possuía menos de 40. Notem:
“As pessoas quando chegam à nossa idade, perdem o direito aos receios e às aflições. É uma pena. Os medos e as agonias, tão graciosos, só são permitidos até os quarenta anos. Depois disso, apenas se nos permitem as esperanças. Qualquer esperança. Todas”.
Este Vento Vadio, pelas datas que registra ao pé dos textos, revela que desde os 32, 33 anos, Antônio Maria escreveu como se fosse um autor mais idoso. Seria isso uma precognição da morte súbita aos 43 anos? Uma intuição de que sua vida terminaria em pleno vigor das forças intelectuais? O fato é que ele escrevia como um idoso pela saudade distante do Recife, uma distância que era mais do tempo sentido que separação geográfica. Um idoso pelas observações que fazia como um homem que estivesse perto do fim da vida. E estava!
Nele há crônicas que devemos ler 2 ou 3 vezes, reler um mesmo parágrafo. É que existe nos textos um significado oculto às vezes, um sentido entrevisto, uma frase não escrita de modo claro, que será revelada na 3ª. leitura, se possível. Mas fica sempre um sentido de humanidade velada. Como na crônica sobre Elsie Lessa (mãe de Ivan Lessa e esposa Orígenes Lessa), ou sobre Caymmi em “O Violão”:
“Caymmi está dizendo que ‘no Abaeté tem uma lagoa escura, arrodeada de areia branca’. Que ‘o luar prateia tudo, coqueiral, areia e mar’. Uma mulher, com muita razão, fecha os olhos, prende o ar da respiração, aperta com os dedos o maço de cigarros que ainda continha cigarros. Caymmi está em São Paulo, cantando num bar. Em sua volta, há um justo silêncio cometido por mulheres de olhos fechados”.
São crônicas que a gente não quer parar de ler. Eu fiquei contando o que faltava no volume de 491 páginas. Retardando a marcha, a andadura. Como poderia seguir veloz diante da crônica “Joaquim e sua rua”, sobre Joaquim Cardozo, o poeta raro e discreto, a passar pela calçada?
“Então, com que idade Joaquim Cardozo passeava, ‘lento e longo’, à porta da nossa casa na Rua da União? Todas as tardes, vinha da Rua da Aurora, caminhava o primeiro quarteirão da Rua Formosa, virava a esquina da venda de seu Fábio, atravessava a calçada e ia para sua casa, que era terceira depois da nossa. Tudo isso ‘lento e longo’, como descobriu João Cabral de Melo Neto. Eu o conhecia de ar e de nome, sabia-o irmão de Mariana e sempre lhe adivinhava alguma coisa dentro da vida, assim como um tesouro. Mas, como criança não sabe de nada com palavras (criança desconfia), via-o passar todas as tardes sem atinar para o poeta que habitava aquela roupa tão lenta e tão longa.
As pessoas da Rua da União quando se perdem no mundo, guardam lembranças para sempre”.
A maioria de nós pensa que é fácil, muito fácil ler e copiar. Pois o que é o copiar? Transcrever, não é mesmo? Mas para um artigo, antes de copiar, temos que selecionar. E para a seleção, devemos ser orgânicos no texto, para o texto, pois o selecionado deve ficar como um órgão transplantado que se fez parte do artigo. Aí, já fica menos fácil. Mas o mais difícil é transmitir ao leitor o sentimento que tivemos ao ler o original. Então, o que eu poderia fazer com o texto “O pequeno príncipe”, de 1963? Nele, Antônio Maria é de uma sabedoria que vai além do jornalístico e histórico. A crônica é um verdadeiro flagra do que um dia foi risível na chamada alta sociedade do Brasil. Seria preciso copiar tudo, sentimento e linhas, mas tenham pena deste autor que digita palavra por palavra com dois dedos. E não devo cometer spoiler, entendam. Então me esforço para reproduzir algumas linhas:
“Não se pode ainda estimar a extensão do mal que causou à sociedade carioca a edição brasileira de Le Petit Pince...
Pobres senhoras, estarrecidas, perplexas pois acabavam de comprovar que as raposas falavam. La Fontaine estava coberto de razão. E a raposa de Exupéry dizia coisas lindas.
O cronista que vos escreve sentiu o hálito e viu, nas réstias de luz, a saliva das citações noturnas de Exupéry. Era no Vogue. Sempre a raposa. A raposa que falava e dizia muito que era preciso, antes, cativar. Aquelas cento e tantas mulheres desamparadas a dizer que era preciso cativar. Cento e tantas mulheres sem pai e sem mãe, e o verbo infinito degradando minhas intenções, dilacerando meus nervos. Cativar. Cativar. Cativar. Cativar.
- Você precisa me cativar.
Isso durou, em clamor crescente, até 1955, quando o Vogue pegou fogo”.
Nas frases cômicas, nos textos humorísticos, Antônio Maria é como Garrincha. Imaginamos o lado para o qual ele vai dar o drible, mas ainda assim somos enganados. Porque ele é imprevisível. Confiram:
“Para adiantar serviço, estou escrevendo várias crônicas na Sexta-Feira Santa. E me pergunto, com alguma advertência: por que adiantar serviço, se muito mais decente seria protelar a morte?
A primeira providência seria não antecipar as obrigações. Fazer tudo à última hora, embora o mais bem-feito possível. Porque se na quarta-feira eu fizer todo o serviço da sexta e morrer na quinta, eu trabalhei depois de morto”.
Ou aqui:
“Minha pobreza é quase sempre cômica. Ontem, por exemplo, a cozinheira veio avisar que era preciso comprar carne. Não se são todas, mas há sempre uma alegria no olhar da minha empregada quando a carne se acaba. Uma vitória, nos olhos dela, quando vem dizer que a carne se acabou. A carne, o feijão, o arroz, seja o que for.
Meu dinheiro, ontem, era zero, e como não tenho conta no açougue, tive que fazer demorado discurso explicando a necessidade que o homem tem de comer macarrão. Por que ela estava com as pernas inchadas? Porque só comia carne, carne, carne. O organismo pede mais talharim! Tudo isso porque a padaria vende talharim e me deixa pagar de trinta em trinta dias....
As desconjunturas da pobreza incomodam um pouco, mas são engraçadas. Minha vida perderia os encantos se a geladeira estivesse sempre cheia de carne e se, sobre esta mesa, houvesse cinco ou seis cachimbos. Pobreza execranda é aquela de Braz de Pina, que a gente vê quando vai para Petrópolis. Os homens e os urubus, disputando o lixo, de igual para igual. Os homens empurrando os urubus, os urubus empurrando os homens, na mais absoluta e triste igualdade de direitos. Lembrei-me que, por ali, passa diariamente o deputado Danilo Nunes, a caminho de Campo Grande. Deve olhar o espetáculo e resmungar, entre dentes:
- Esses comunistas....”.
É sério. Muitas das suas crônicas são tão reais, que se tornam cômicas:
“Morreu há dias, com 93 anos, o meu velho Camilo. Depois dos oitenta anos, virou menino e deu para fazer as coisas mais infantis deste mundo. Como uma criança, passou a ser criado por duas sobrinhas0, Ana Cândida e Rosemira. Bisbilhoteiro e indiscreto, deu para ouvir conversas e repeti-las exatamente no momento em que não devia. Uma vez, por exemplo, quando a senhora Tomás Caldas, em visita, contava histórias e dava risada, Camilo interrompeu para perguntar “se ela era a tal moça que passava o marido pra trás, com um goleiro”. Era.
Embora pareça incrível, na velhice apaixonou-se pelo futebol, e não satisfeito em assistir a algumas partidas do Botafogo, deu também pra bater uma bolinha no quintal com dois sobrinhos, alguns meninos da vizinhança e o empregado da casa. Para a idade e com relação à tardia iniciação, jogava até direitinho. De calção, camisa, chuteira de basquete e boina, era o que se podia desejar – como atleta.
A morte de Camilo andou arrancando umas lágrimas destes meus olhos secos. Era ainda uma pessoa em quem se podia descarregar certas amarguras. Ouvia o que lhe contassem, as coisas mais escandalosas e dizia sempre: “És fabuloso, és fabuloso”.... Anteontem, fui conversar com as sobrinhas Ana Cândida e Rosemira, para saber comi iam as coitadas. Estavam num estado de fazer pena. De lenço na mão, a voz cortada de soluços, Ana Cândida contou como foi a morte. Começou assim e só pôde dizer isto:
-A perna quebrou-se em três lugares. – Soluçou. – Eles dizem que não, mas, para mim, entraram em Camilo sem bola”.
Num campeonato informal, infernal, sobre quem é o campeão máximo da crônica brasileira, todos mencionam os finalistas Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fenando Sabino e Antônio Maria. A esses eternos, eu acrescentaria Manuel Bandeira, que era muito bom cronista, e o gênio da crônica esportiva em todo o mundo, que se chamava Nelson Rodrigues. Mas se eu falar, ninguém acredita. Então, do alto da minha profunda falta de credibilidade, só me resta pedir abrigo ao genial Luis Fernando Veríssimo:
“Dos quatro grandes daquela época – Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Antônio Maria -, Maria era o mais completo, para não dizer o melhor e puxar briga. Ele fazia a crônica lírica e literária dos outros, mas fazia humor superior. Como, por exemplo, aquele bilhete que deixou para o amigo em seu apartamento: ‘Se você me encontrar dormindo, deixe. Morto, acorde-me’. Infelizmente, não há maneira científica ou mágica de trazer o Maria de volta”.
De fato, não temos a desejada utopia de uma ressurreição da vida de Antônio Maria. Mas a literatura nos dá o gosto compensatório da imortalidade do criador, que caiu na rua com um enfarte em 1964. Entre os textos do imortal Maria, fica esta definitiva obra-prima:
“Se fosse possível descrever, em palavras, a introdução, ao menos a introdução, da marcha do Clube das Pás! Mas é possível dar uma ideia do que se passava por dentro de mim, que me sentia, inopinadamente, órfão e livre, desapegado de tudo e de todos. Eu era mais que um guerreiro. Era o vento. Cada homem e cada mulher eram uma parte daquele furacão libertário. Todos se emancipavam (eu digo por mim) e se tornavam magnificamente dissolutos... porque o clarim estava tocando, porque os estandartes se equilibravam no espaço, porque o mundo, naquele exato e breve momento era, afinal, de todos.
Tudo deve ter mudado. O Carnaval do Recife talvez não seja, hoje, um desabafo. Talvez não contenha aquele desafio de homens e mulheres, livres de todas as sujeições e esquecidos de Deus. É possível que se tenha transformado numa festa, simplesmente. Talvez seja alegre, e isto é sadio. Mas os meus carnavais eram revoltados. Não tenho a menor dúvida de que aquilo que fazia a beleza do Carnaval pernambucano era revolta -revolta e amor – porque só de amor, por amor, se cometem os gestos de rebeldia.
Muitas vezes, de madrugada, o menino acordava com o clarim e as vozes de um bloco. Eles estavam voltando. O canto que eles entoavam se chamava ‘de regresso’. Não sei de lembrança que me comova tão profundamente. Não sei de vontade igual a esta que estou sentindo, de ser o menino que acordava de madrugada, com as vozes dos metais e as vozes humanas daquele Carnaval liricamente subversivo.
Meu quarto era de telha-vã. Minhas calças, brancas. Meus sapatos, de tênis. Meu coração, inquieto. E nada tinha sido ainda explicado.
07/02/1964”
Hoje, sem mimeógrafo debaixo da cama, eu o copiei. Acorda, menino grade.
*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/antonio-maria-em-vento-vadio/
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