Antes de vitimizadores, vítimas do Estado

Devemos ter clareza de que a redução da maioridade penal é um placebo, insuficiente para construirmos a sociedade de paz que todos almejamos

Devemos ter clareza de que a redução da maioridade penal é um placebo, insuficiente para construirmos a sociedade de paz que todos almejamos
Devemos ter clareza de que a redução da maioridade penal é um placebo, insuficiente para construirmos a sociedade de paz que todos almejamos (Foto: Erika Kokay)


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Está em marcha na Câmara Federal um profundo retrocesso nos direitos de nossa sociedade viver em paz. Somos totalmente contrários à redução da maioridade penal no Brasil, seja integral ou parcialmente. Assim como o conjunto da população brasileira, nós também estamos empenhados em buscar soluções que resultem na diminuição da violência. No entanto, devemos ter clareza de que a redução da maioridade penal é um placebo, insuficiente para construirmos a sociedade de paz que todos almejamos.

Em vez de diminuir a violência em nosso país, essa medida apenas a recrudescerá, jogando jovens que estão em um sistema cujo índice de reincidência gira em torno de 20% em outro, onde o mesmo índice supera os 70%. Em São Paulo, Estado com o maior sistema socioeducativo do país, dados da Fundação Casa apontam que apenas 15% dos jovens que passaram por uma de suas unidades voltaram ao sistema. E em algumas cidades, esse índice está abaixo de 2%, quando as medidas socioeducativas são cumpridas em meio aberto. Essas informações foram fartamente repassadas ao Parlamento por especialistas e estudiosos dos sistemas socioeducativo e carcerário brasileiros, mas acabaram ignoradas pelos defensores da redução da maioridade penal.

Ignorou-se, da mesma forma, o relatório Mapa da Violência no Brasil 2014, que constatou serem os adolescentes mais vítimas do que algozes neste país. Diariamente, 82 jovens morrem de forma violenta em nossas cidades: 77% do total de jovens assassinados são negros. Por outro lado, de acordo com o coordenador-executivo do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), Cláudio Augusto Vieira da Silva, 0,08% dos adolescentes brasileiros (23 mil pessoas) entre a população de 12 a 18 anos cumprem atualmente medida de privação de liberdade. Do total de adolescentes, somente 0,01% cometeram atos contra a vida. Ou seja, mesmo que eliminássemos toda a violência protagonizada por adolescentes neste país, ainda teríamos uma sociedade extremamente violenta. Em nenhum lugar do mundo reduzir a maioridade penal resultou em diminuição da violência, nem resultará aqui no Brasil.

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Vejamos o exemplo dos Estados Unidos. Dos 51 estados norte americanos, 38 têm a maioridade penal fixada em 18 anos – conforme estudo de Túlio Kahn, disponível no site do Ministério da Justiça. E vários dos que reduziram a maioridade estão revendo essa redução, de acordo com a ONG americana Campaign for Youth Justice. Em carta encaminhada à Câmara Federal contra a redução da maioridade penal em nosso país, a diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch, Maria Laura Canineu, explica que, durante décadas, se argumentou que a possibilidade de os adolescentes estadunidenses serem julgados e punidos como adultos evitaria que entrassem em conflito com a lei e, consequentemente, reduziria as taxas de criminalidade. Uma premissa que se mostrou equivocada, e é revista em vários países do mundo e estados norte americanos. Relatório de 2010 produzido pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos apontou que as taxas de reincidência eram mais altas entre os adolescentes julgados como adultos: no caso de crimes violentos, apurou-se 100% de reincidência. O relatório do Departamento de Justiça concluiu que o julgamento de adolescentes como adultos "não produz proteção para a comunidade", mas sim "aumenta substancialmente a reincidência". Portanto, se os presídios não recuperam, apenas recrudescem o conflito com a lei, colocar adolescentes em prisões é vingança, não solução.

São estudos como esse e recomendações internacionais de se implantar legislações e justiças especializadas para julgar, processar e responsabilizar adolescentes autores de delitos que embasam a fixação da maioridade penal aos 18 anos em mais de 150 países, incluindo o nosso. É imperioso aqui esclarecer que, no Brasil, embora a maioridade esteja fixada em 18 anos, a responsabilização de quem entra em conflito com a lei é possível a partir dos 12 anos: o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece nada menos do que seis medidas socioeducativas, de acordo com a gravidade do ato cometido, a partir dos 12 anos. Portanto, cai-se o mito de que os adolescentes brasileiros em conflito com a lei ficam impunes.

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A negação da realidade tem sido usada para justificar os mandatos que só existem, só se mantêm, alimentando-se do ódio e do medo em nossa sociedade. Quando a gente nega a realidade, perde a oportunidade de transformá-la. É lamentável constatar o conjunto de informações relevantes sobre o tema desconsideradas por nosso Parlamento. E, acima de tudo, que foi ignorado o ponto central da questão: as causas do ingresso de jovens na vida infracional e como combatê-las.

Se analisarmos o perfil dos adolescentes que cumprem medidas socieducativas em todo o país, vamos ver histórias e desejos muito semelhantes. Desejos construídos pelo mercado, por uma sociedade que diz que esse adolescente tem que consumir para ser respeitado, mas não lhe dá o direito de consumir. O desejo está sendo produzido como pílula pronta, derramada dentro de casa, e exerce uma pressão diária sobre milhares de crianças e jovens brasileiros. Por isso, a maioria esmagadora dos adolescentes entra na vida infracional por crimes contra o patrimônio, atendendo ao apelo de uma sociedade vergada pela lógica do mercado. Uma lógica que preenche o espaço aberto pela ausência de políticas públicas, inclusive de políticas de cultura, onde as pessoas possam reconhecer sua humanidade, uma vez que só o ser humano produz cultura.

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São meninas e meninos que não tiveram respostas do Estado. Antes de chegarem ao sistema socioeducativo, estiveram na política de Educação e foram excluídos dela por uma série de motivos. Via de regra, vitimizados, entraram em contato com conselhos tutelares e o Estado falhou na execução de medidas protetivas. São jovens que têm nas medidas socioeducativas a possibilidade (talvez única) de resignificar as suas vidas e interromper a trajetória infracional.

Portanto, ao reduzir a maioridade penal, seja integralmente, seja em casos específicos, negaremos a chance que esses adolescentes têm em uma medida socioeducativa de estar em contato com políticas públicas que foram negadas a eles ao longo de suas trajetórias. Vamos jogá-los não na escola – presente no sistema socioeducativo –, mas na universidade do crime que são os presídios.

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A sociedade deveria romper essa preguiça de analisar as causas da criminalidade. Uma preguiça que existe porque refletir pode ser um exercício doloroso. A não reflexão é expressão de uma sociedade pautada na superficialização das relações, do imediatismo que se expressa no consumismo e na drogadição. Mas, em vez de enfrentá-lo, se opta por um processo de higienização: jogar adolescentes de 16 anos em um presídio é higienizar a sociedade. É jogá-los para que não tenham mais futuro, para que se aprofundem no conflito com a lei e para deixá-los longe dos olhos da própria sociedade.

Os defensores da redução – em geral, parlamentares que querem dar à sociedade uma resposta que sabem que não resolve – repetem a lógica de gestores que lançam uma cortina de fumaça para encobrir e disfarçar sua incompetência e negligência em estabelecer, com absoluta prioridade, a efetiva adoção de políticas públicas de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes deste país. Por trás de toda infração cometida por um adolescente, há a mão invisível de um Estado incompetente e negligente com os direitos da infância e da juventude.

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Apresentei projeto que estabelece a obrigatoriedade de gestores públicos – federais, estaduais, municipais e do DF – apresentarem anexos às Leis de Diretrizes Orçamentárias anuais com seus planos para a infância e a juventude. Nossa proposta impõe regras para prestação de contas e estabelece, em caso de descumprimento, as mesmas sanções da Lei de Responsabilidade Fiscal, que vão de multas e ressarcimento aos cofres públicos à inelegibilidade por até oito anos e prisão.

Entendemos que a redução da maioridade penal não diz respeito apenas ao futuro de nossas meninas e meninos, diz respeito a que sociedade nós queremos. Se queremos a sociedade da punição, vingativa, higienista e eugenista, que extermina jovens e negros, e considera isso natural, ou se queremos a sociedade que refletirá sobre ela mesma e apontará as verdadeiras soluções da criminalidade ou da violência em nosso país.

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Que sociedade nós queremos? Que destinos nós mudaremos em nossa sociedade? Não podemos brincar com seres humanos, como acreditam aqueles que defendem que a bala e as grades resolvem tudo. Não resolvem, tampouco calarão os direitos das crianças e dos adolescentes deste país.

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