Anotações de um confinado (II)
Recebo e-mails de amigas e amigos de meio mundo ou quase, perguntando de onde diabos tiramos semelhante aberração. Perguntando como é que este país elegeu essa besta demente
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Por Eric Nepomuceno, para o Jornalistas pela Democracia - Como todo ser especialmente daninho, Jair Messias estraga tudo. Por exemplo: ando sumido daqui há alguns dias, e pensei em escrever de novo sobre esse sentimento tão, mas tão estranho que é estar isolado.
Temos um casal de amigos que está a uns oito minutos de automóvel da minha casa aqui de Araras, distrito de Petrópolis. E uma amiga a uns treze minutos daqui, no Vale das Videiras. E outro amigo no mesmo Vale, mas um pouquinho mais longe: uns dezesseis minutos. A dez minutos de casa fica a Ary Delicatessen, em cuja varanda tenho mesa cativa já lá se vão uns quinze anos. A uns vinte, a Pousada da Alcobaça, da nossa querida Laura Goes, minha segunda casa na montanha. E em outra direção, a outros vinte e poucos minutos, dois casais de amigos queridos. O Ary está fechado, e dos amigos, não podemos ver nenhum: quarentena para todos.
Aliás, até o Felipe, nosso filho cineasta, está aqui, na casinha dele lá no alto do terreno, a uns setenta metros de distância.
E, por falar em distância, é assim que nos vemos pelo menos duas vezes todos os dias: ele vem até o alpendre aqui da casa, e conversamos separados por uns três metros.
Queria falar da coisa estranhíssima que é estar na casa que amo, onde gostaria de passar muito mais tempo do que passava, e de onde agora não posso sair a não ser para coisas essenciais, e ainda assim, no máximo duas vezes por semana.
Ah, sim: a máquina de lavar morreu. Preciso comprar outra, mas como saí hoje, fica para a quarta da semana que vem.
E também falar de coisas curiosas: me considero, sem falta modéstia, um excelente dono de casa. Faço as compras, escolho a dedo, cozinho, lavo a pia, perco um bom tempo imaginando o cardápio do almoço e do jantar.
E em pleno exercício dessa qualidade, descobri na noite de ontem na gaveta da pia um esquecido instrumento muito usado antigamente: um descaroçador de azeitonas. Vibrei de alegria e de memória.
Pois era disso tudo que eu queria falar, e de que ando escrevendo muito para os jornais que me publicam no México e na Argentina, e louco para achar uma brecha para voltar ao livro que estou escrevendo faz anos. Mas não tem jeito: Jair Messias, Jair Messias, me atormenta. Atormenta o país, a América Latina, assombra tudo e todos.
Recebo e-mails de amigas e amigos de meio mundo ou quase, perguntando de onde diabos tiramos semelhante aberração. Perguntando como é que este país elegeu essa besta demente. Perguntando o que vai acontecer, e como é que ninguém tira suas ancas da poltrona presidencial.
Sinto uma espécie de vergonha alheia para explicar como é que ele foi eleito. Explicar a qualidade do seu eleitorado, de como foi armado. A omissão covarde dos que se abstiveram, votaram em branco, anularam voto. Da fúria indignada que isso me causa, a estas alturas da vida.
E ele não deixa de espalhar mostras palpáveis do seu grau de desequilíbrio não só emocional, mas psicológico.
Para os amigos mundo afora que me perguntam o que vai acontecer, não sei como responder. Claro que isso não pode continuar, aliás nem deveria ter começado. Não pode, não deveria, mas e daí?
Será que lá em Oaxaca meu editor mexicano sabe como mexer com um descaroçador de azeitona? E o formidável escritor português Valério Romão saberá?
Lá no Chile, aposto que o Antonio Skármeta sabe: ele é do meu tempo, o tempo de azeitona com caroço num vidro alto.
Será que meu filho Felipe sabe? Amanhã pergunto a ele. De longe.
Haverá um descaroçador de país para expelir Jair Messias?
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