Anjos e demônios

(Foto: REUTERS/Dado Ruvic/Illustration)


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À época da escolástica, contemporânea de São Tomás de Aquino, a sociedade vivia cercada de anjos e demônios. Deus interferia, de vez em quando, através de homens santos que zelavam para que a situação não degenerasse. Em casos extremos, detinham os “culpados” e os investigavam a portas fechadas para descobrir como as forças do mal agiam sobre eles e os punham a perder, com consequências para o seu círculo de amigos e afins. Era a Inquisição. Alguns dos detidos se tornaram famosos, como Joana D’Arc, uma adolescente que, submetida a visões, tomou partido a favor dos franceses na luta contra a Inglaterra. Hoje, nos altares do patriotismo, ocupa um lugar de destaque no imaginário francês.

Os inquisidores precisavam descobrir como os demônios se assenhoreavam de uma pessoa. Formularam uma teoria. Ele agia por meio do pensamento. Bastava pensar que, mesmo sem evocações ou rituais, ele se instalava confortavelmente no indivíduo. O esforço que motivava os investigadores consistia em “invadir” mentes e, de lá, arrancá-lo, trazendo-o para fora. Donde se deduz que nem o pensamento representava um lugar seguro para que os culpados se refugiassem. Eis como se passavam as coisas sob o domínio de anjos e demônios. 

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A modernidade aboliu tais concepções. Pensar, para nós, constitui um espaço de liberdade, não cabendo a ninguém, sob qualquer pretexto, desbravá-lo ou criar áreas de culpa. Até na loucura, psiquiatras e psicanalistas costumam conversar com o paciente para verificar se aceita ou não partilhar a natureza de seus dramas. É por isso que não colam as notícias em torno da Primeira Dama, dando conta de seus testemunhos sobre o que se passava no Alvorada e como voavam pelos corredores, digamos assim, os demónios que ali residiram antes da chegada de marido. Religiões não acabaram em função das reviravoltas na ideologia. Elas constituem decisão de cada um, frequentemente obtidas em seus instantes de interioridade ou desespero. É possível escolher a preferida, no elenco que nos permanece à disposição, sem que por isso, porque ajoelhamos, adotemos uma postura de servilismo entre anjos e demônios. Daí que não convencem os êxtases de Michelle Bolsonaro, justo durante o período eleitoral, para atribuir aos adversários conluios com Satã. Mas não sejamos rígidos com a jovem crente no auge de suas manifestações de fé. Fará sucesso durante os cultos. Além das portas do templo, não tem vez. Talvez devesse refletir melhor onde localizar os demônios que lhe ocupam a mente. Que durma depois desta investigação e que sonhe com os anjos.

Seja como for, que panorama! De repente, ficamos com a impressão de que caminhamos para trás. No entanto, a modernidade realizou conquistas e uma delas consiste no fato de que, na democracia, não se admitem perseguições por ideologia política. Censura à exposição de ideias, igualmente não. Ainda nos indignamos quando a mão de chumbo de outros tempos interrompe o livre curso do nosso pensamento, como ocorreu com o youtube contra o Canal 247 na veiculação de documentários. Esperemos que se retratem. Lembrem-se de que o clima da Inquisição está apenas na memória. Não vamos reabilitá-lo e tornar a sofrer com ele. O recado das ruas, com a leitura da Carta pela Democracia, já fala alto. Convém escutá-lo. 

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