Angélica
Inacreditável. Acabaram com o futuro. Já não se aposentaria tão cedo. Teriam que trabalhar mais doze anos. A reforma da previdência foi aprovada. Ficaram em desconfortável silêncio. Não vinham se falando muito, é verdade, mas aquele era um silêncio denso, quase palpável. Assistiam na TV as autoridades e os comentaristas explicando que a reforma era necessária para o futuro do Brasil
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Não era mãe, era sogra do próprios filhos. Só lhes punha defeitos. Desde que nasceram. Do marido também era sogra. Tratava-o com um comovente desprezo. No começo era apenas autêntica, eufemismo autoindulgente com que se definia. Com o tempo foi melhorando sua performance, a prática leva à perfeição. Aos quarenta, especialista.
Os filhos cresceram com os insultos ao traste e aos tranqueiras, que a ele saíram, e sabe-se lá como arrumaram namoradas. À do mais velho chamava de jeitosinha ou de lambida, alternando as alcunhas por algum de seus inúmeros e indecifráveis critérios. A do segundo era referida como a escurinha.
Das pretendentes era mãezona, uma querida. Elogiava-as, fazia-lhes mimos na máquina de costura, preparava seus melhores quitutes para as norinhas. E jamais criticava seu filhos para elas. Eram uns fofinhos, embora pouco carinhosos com a mãe, segredava às meninas. Nunca as chamava pelos nomes, se por birra ou por memória fraca não se sabe. Preferia usar tratamentos neutros como docinho, essa-menina ou meu-bem. Era mãe das noras e sogra dos filhos. E do marido.
Na presença delas jamais disparava sua tirânica metralhadora verbal contra os meninos e o pai deles. Guardava seus xingamentos para a intimidade familiar, imputando aos três atávicas coincidências de caráter.
Nem ligavam. Era assim mesmo, metia a boca por carinho. Entre eles tratavam-na como a bruxa.
Nunca a chamaram de mãe, ela não permitia. Envelhecia-a, explicava. Exigia ser tratada pelo nome de batismo, composto, Maria Angélica ou por Lica . Nunca beijou-os. Chamego enfraquece os homens. Nem quando eram bebês. Era o jeito dela. Carinho em filho emascula, desviriliza, veja o pai de vocês, um frouxo, mimado que foi pela mãe dele.
Era uma boa esposa, a comida sempre na hora, fazia-lhes os pratos, os bifes contados. Cuidava de suas roupas, colarinhos sempre impecáveis, e das crianças. A ela, religiosamente, todo dia primeiro, entregava 80% de seu ordenado na repartição. O restante, sagrado, era dele. Não era muito, o suficiente para o boteco depois do expediente e para duas visitas mensais à casa das primas, para relaxar. Dizia ser sua terapia. Os meninos sabiam, óbvio, e entendiam o pai. Lica também sabia, não era boba, mas jamais admitiria. Ao contrário, repetia-lhe com frequência, tua sorte foi ter me encontrado, uma ingênua, não fosse por mim você morreria virgem. E aos meninos: nunca gostou muito dessas coisas, inapetente para os calores carnais, um corno vocacionado. Sorte eu ser eu, fiel. Outra teria ornamentado aquela cabeça avoada.
Não tinham grandes necessidades. Nem poupança. Viviam dentro do orçamento. Faltava menos de três anos para a aposentadoria do velho. Até lá os meninos já teriam se formado e que fossem cuidar das vidas deles. Que casassem logo com as sirigaitas que encontraram, já tinha feito a parte dela. Passaria o mico para as noras. Elas que os assumam. Assim é a vida.
Quando saísse a aposentadoria e já livre dos tranqueiras iria meter o pé na bunda do traste.
Quando saísse a aposentadoria, os filhos encaminhados na vida, se livraria da amarga. Poderia, enfim, ser feliz.
Ninguém tocava no assunto, cotidiano é assim, com interditados temas. De segunda a sexta-feira, a repartição, cerveja no caminho de volta, compartilhando infelicidades e refugiando-se em comentários sobre futebol com os seus, todos fazendo arminha com as mãos. No final de semana, o sofá, a televisão, a carne na churrasqueira depois da missa, exigências dela. O que é que custa? Não te peço nada, apenas o braço para enganchar a caminho da igreja cumprimentando esses vizinhos enxeridos que nos vigiam. E sem se perceber passaram a contabilizar o que faltava para a redentora jubilação.
Cada um com seu segredo, com sua contagem regressiva. Agora, menos de mil dias que passariam como passou cada uma daquelas vidas sem-graça, nem rápido, nem lento, no ritmo da convivência, dos insultos e dos silêncios. E das ausências.
Ele teorizava. A vida é assim. Do trabalho para casa, de casa para o trabalho. Vida mesmo, só depois da aposentadoria. Angélica sonhava, sonhava. Haveria de encontrar um homem de verdade. Vida mesmo, só depois da separação. Da aposentadoria de suas tarefas domésticas que viria com a dele.
Não vão mexer com isso daí, pelo menos não no serviço público. Não são nem loucos. Seria uma quebra do combinado.
E, assim, do nada, o mundo virou de pernas para o alto, mergulhando a família no vazio da frustração. Os meninos haviam perdido os empregos. O mais velho, já se formando, falava em ser motorista de uber. O caçula só arrumava trabalho intermitente ou terceirizado. E os palermas perderam as namoradas. Definitivamente, saíram ao pai. Nunca estavam em casa. A vida como ela é, dizia um tal de Nelson lido por ambos quando as crianças eram pequenas.
Inacreditável. Acabaram com o futuro. Já não se aposentaria tão cedo. Teriam que trabalhar mais doze anos. A reforma da previdência foi aprovada. Ficaram em desconfortável silêncio. Não vinham se falando muito, é verdade, mas aquele era um silêncio denso, quase palpável. Assistiam na TV as autoridades e os comentaristas explicando que a reforma era necessária para o futuro do Brasil. Um baque daqueles. Passaram o sábado no sofá, sem ânimo para nada, nostálgicos.
No domingo de manhã, só os dois em casa, antes da missa, tomaram café. Ela foi para a lavanderia e subiu no tanque. Ele foi para a sacada da sala onde há pouco tempo, em momento de rara euforia familiar, haviam batido panelas. Cada um no seu território. E ao mesmo tempo, sem se falar, sem terem combinado nada e sem se insultar, saltaram do décimo-quinto. Dois sons molhados, não de ossos se partindo, mais para bexigas cheias de líquido, quase em um só baque. Daqueles.
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