Alienação
"Enquanto houver aqueles que sonham será possível lutar no mundo real pelo rompimento das correntes que escravizam a humanidade", escreve Carlos D'Incao
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Tanto na filosofia em particular, como na linguagem em geral, o termo “alienação” possuiu, por muito tempo, um sentido negativo: alienação seria a condição daquele que é alienado, ou seja, está excluído (por opção ou vontade própria) do mundo ao seu redor - seja na consciência, ou nas condições políticas e inter-relacionais com seus semelhantes.
Essa condição de “alienação” ou “alheiamento” de tudo foi abordada em inúmeras obras literárias e, volta e meia apareceu na filosofia como condição dos “Homens vulgares”, como estilo de vida típico de reis e imperadores alheios ao seu povo e como demência dos bárbaros que invadiam e saqueavam continuamente a Europa Ocidental, a partir do século IV d.C.
Já na filosofia política do século XVI podemos observar o início de algumas mudanças… alguns semblantes - ainda que vacilantes - de autores que começaram a perceber um sentido mais profundo da alienação. Em capítulos ou parágrafos dos humanistas já notamos a possibilidade da alienação ser vista não como uma simples condição humana, mas como um produto social.
Essa tendência se avolumou na filosofia iluminista como oposição à liberdade e ao livre pensamento e… atingiu sua inflexão plenamente negativa - enquanto conceito - no século XVIII.
Foi apenas com Hegel que finalmente encontraremos um sentido não apenas positivo da alienação, mas também como parte integrante de um processo dialético de progresso do mundo das ideias.
Em breve síntese a alienação, como afastamento, possibilitava a análise objetiva e racional de qualquer pensamento passado, presente e futuro; e a alienação em seu ponto máximo abriria espaço para a “verdadeira consciência” pois, apenas podemos ver o todo de um objeto quando não estamos inseridos nele.
Um exemplo bem simples, mas eficiente, é a imagem de um indivíduo no interior de uma sala... Estando no seu interior, ainda que no ponto mais privilegiado de observador, sempre lhe faltará uma parte que o mesmo não conseguirá ver (o espaço que está em suas costas, acima do seu campo de visão, etc.
Apenas conseguirá ver o todo alguém que possa sair da sala (ou seja, alienar-se do ambiente) e vê-la em sua integridade e totalidade totalmente do lado de fora, como se flutuasse pela mesma.
Como não via essa possibilidade, no campo prático, para nenhum ser humano, Hegel aferiu a Deus como a única entidade capaz de ver o todo e ao Estado como única instituição humana que se aproxima dessa capacidade pela sua estrutura burocrática.
A filosofia de Hegel não se reduziu a apenas esse tema. Ao ser um fervoroso e hábil defensor da dialética como método de compreensão dos fenômenos sociais e naturais, gerou uma vasta gama plural e fiel de seguidores que, mesmo em vida, este filósofo alemão vislumbrou - mas quase nunca interviu nos debates porque julgava que isso seria “per si” uma quebra do sistema dialético.
Em meados do século XIX, um jovem hegeliano irá romper com essa filosofia (chamando-a de idealista) ao mesmo tempo que, como pensador adepto da dialética, reivindicará tê-la superado por apropriação crítica. Esse jovem se chamava Karl Marx.
Em estilo combativo, muito comum no interior dos grupos hegelianos naquela época, Marx afirmou que havia trazido Hegel “do céu para a terra” invertendo muitas de suas prerrogativas centrais e tornando-a compreensiva sob a luz da ciência e da objetividade, que se tornavam cada vez mais dominante em sua época.
Marx foi o primeiro a afirmar que “não é a consciência que determina a existência material dos indivíduos mas, ao contrário, são as condições de existência material dos indivíduos que possibilitam determinadas formas de sua consciência.”
No que tange ao Estado não o compreendeu como uma entidade promotora do desenvolvimento e do progresso, mas como uma instituição a serviço de uma determinada classe social.
O fato de no seu interior haver pluralidade de ações, muitas vezes contraditórias, não era expressão de sua “natureza semi-divina” não compreendida por cidadãos sem plena consciência… mas produto da luta de classes que se opunham em interesses ontológicos: os trabalhadores e os donos dos meios de produção.
Enfim, no tocante à alienação a pontuou em dois processos distintos, mas não desagregados:
1 - a classe trabalhadora em suas lutas ao longo da alvorada do mundo moderno teve usurpada (alienada) de si todos os meios de produção (terra, instrumentos de trabalho, direitos, acesso à áreas comunitárias, etc) - o que a levou necessariamente a um processo contraditório com o trabalho: como meio de sobrevivência é uma atividade vital, mas como prática social não o sente como atividade humanizadora, pois a nova sociedade retirava-lhe sentido, direção e qualquer protagonismo na própria produção.
2 - como classe completamente alienada de todos os meios de produção, os trabalhadores da nova sociedade se tornavam único grupo social capaz de ver e sentir em sua própria carne as contradições e violências acometidas contra ela mesma pelos detentores dos meios de produção (vistos como usurpadores e exploradores).
O sistema capitalista teria gerado, assim, pela primeira vez na História da Humanidade, a possibilidade da existência de uma classe trabalhadora que, por sua condição material alienada, poderia tomar plena consciência de sua condição social, o que poderia levar-lhe a um processo de emancipação radical.
Em suma, para Marx, o sistema capitalista não apenas empreendeu desenvolvimento e racionalização do processo produtivo, mas também criou uma nova classe capaz de findar o que chamou de “última página da pré-História da humanidade”.
A emancipação dos trabalhadores e sua tomada do poder do Estado geraria uma nova sociedade “efetivamente histórica” pois a exploração seria abolida, o verdadeiro sentido humano do trabalho revelado e reconstituído e, por fim, se acabaria com todos os elementos que hoje opõe seres humanos contra outros seres humanos (exploração do trabalho, nacionalismos, religiões, rixas históricas, disputas comerciais, diferenças étnicas, etc).
Obviamente que Marx não era um determinista e nunca reivindicou uma abolição de todos os males da sociedade como se desse através de um efeito dominó. Uma sociedade verdadeiramente democrática iria ter a cautela de debater e estabelecer ações positivas em todos os temas, principalmente àqueles que são de tradição milenares.
Mas isso não autoriza ninguém de retirar-lhe o título de revolucionário, passando-lhe para o nebuloso mundo do reformismo (como Karl Kautsky tentou fazer no início do século XX).
Como detentor de um pensamento dialético, deduziu que a construção da nova sociedade passaria por avanços e retrocessos e, no interior da luta de classes também concluiria que - obviamente - a classe dominante defenderia com todas as suas garras a manutenção da velha sociedade valendo-se de todas as formas para dissuadir a emancipação do gênero humano: boicotes, repressão policial, intervenções armadas, golpes de Estado, assassinato de lideranças, censura, perseguição, mentiras, deturpações, etc.
Marx sentiu na própria pele boa parte dessa repressão: foi expulso da Prússia, da França, da Bélgica e quase se tornou apatrida, não fosse pela ajuda de amigos que conseguiram que o governo britânico lhe desse residência, “com a condição de não participar de nenhum movimento político” (algo que o fundador da Primeira Internacional do Trabalho desobedecerá).
Para além disso, Marx passou fome, perdeu filhas devido à subnutrição, viveu em cortiços insalubres, foi constantemente vigiado e frequentemente teve seus poucos bens particulares e até manuscritos confiscados pela polícia…
Apenas no final da vida, seu grande amigo Engels conseguiu lhe proporcionar uma vida pobre, mas não miserável. Como ele mesmo disse em uma carta à Engels - em seus últimos meses de vida: “Abri mão de uma vida boa, com dinheiro e com tudo aquilo que um intelectual burguês pode ter em nome de lutar, estudar e escrever para que um dia a humanidade possa, enfim, ser livre”.
Até hoje ainda estamos alienados desse sonho, mas… o próprio sonho é um fenômeno psíquico de alienação. Assim sendo, enquanto houver aqueles que sonham será possível lutar no mundo real pelo rompimento das correntes que escravizam a humanidade e libertá-la de toda a opressão existente em nosso mundo… tudo para que enfim possamos viver em paz, unidos, em um mundo sem miséria e que valorize as pessoas por aquilo que elas são e não mais por aquilo que elas têm.
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