Alheias
A contemporaneidade bolsonarista criou territórios em que as feras saíram das jaulas, as grades do assombrado controle civilizando-nos, protegendo-nos delas e de nossos mais primitivos instintos de justa vingança ou de violenta indignação, espécimes ameaçadas de extinção
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Sessenta e tantos, cada uma. A mandarim aposentada, de uma burrice cultivada ao longo da carreira onde exerceu, vanglória, sua psicopatia meritocrata, era a mais estridente. A menos espalhafatosa, pensionista do exército, nunca trabalhou, filha de general, casou sem papel-passado para não perder o que era seu por direito. O inventário continua enrolado. A terceira, viúva como as anteriores, ainda na ativa, algo efervescente, gritona, só esperava os atrasados, que viriam até o final deste ano, sem falta, para se aposentar se deus quiser. Antes, impossível, não incorporavam o auxílio-moradia.
Nenhuma frase ou ideia interessante. Platitudes, de um moralismo hipócrita, que devem fazer sucesso nas relações interpessoais que, cada uma, mantém com os das respectivas laias, e lugares-comuns enganchados uns nos outros.
A aposentadoria integral lhe garante conforto e tranquilidade, rejubilou-se. Mais de um salário mínimo por dia, supõe o indiscreto enxerido, para viagens com seus semelhantes, tipo um-ônibus-brasileiro-em, para compras e para poses, sorrisos artificiais, diante de monumentos, edifícios ou ruínas dos quais nada sabe. Nem quer saber. O objetivo das viagens possivelmente se resume a selfies, a comprar bugigangas e a tentar causar inveja nas amigas. E a fotos de comidas e de animaizinhos fofos. A outra não gosta de viajar, vem de saber, dá trabalho, não nascera para aquilo, malas, aquela coisa toda, não tem com quem deixar a lulu e o baltazar. A menos velha, na aparência, religiosa, crente com certeza, deus e jesus em todas as frases, só quer o bem de todos, a paz universal, voltou para a ioga recentemente.
Três excertos, tristemente memoráveis, ouvidos pelo bisbilhoteiro da mesa ao lado que, aos poucos, entre estupefato e dissimulado, as decifrava, pensando em suas weberianas jaulas de ferro.
Terminavam, gralhando, um vinho carmenere chileno. Chama o garçon e pergunta se tem meia-garrafa, para terminar a janta. Decepciona-se, bufando e remexendo os olhos no rechonchudo rosto plastificado que a todos poupa das presumíveis expressões faciais de outrora, ao saber que só as tinham de chianti. É bom vinho quiante? E sem esperar pela resposta, decide. Pode trazer. Cacoete profissional.
Outra. Vinda a conta, cada uma saca o respectivo cartão de crédito, todas falando ao mesmo tempo, sem nem olhar o atendente de mesa, com a maquininha. O da pior foi o terceiro. Alguém conferiu a conta? As outras duas, em um átimo de vaga humanidade, se constrangem. O garçon, quase-indignado, embora contido por saber se colocar no seu devido lugar, pergunta a senhora quer conferir. Não quer. Não precisa. Pode passar. Demonstrou que para boba não serve, que não é daquelas fáceis de enganar, é viajada e mais esperta. Três cafés, pago em dinheiro, minhas convidadas, quero mostrar umas fotos no celular.
Parece aquele espancado no Carrefour, pelo segurança. Extra, foi no Extra. Não foi não, Carrefour, tenho certeza. Extra da barra da Tijuca. Está ficando mais teimosa do que nunca. Não parece. No Extra o segurança matou o pretinho. Era branquinho, as orelhas escuras, parecia usar máscara, que nem esse aí, lembro bem, tive um parecido, o melchior. Era um criolo, tenho certeza, envolvido com drogas, retardado pelo que soube, boa coisa não era. O segurança? Do que está falando, era um vira-latas branquinho, vivia por ali, um amor, tadinho, bonitinho. Era um menino negro, estão senis. Credo. Vocês duas misturam tudo. No Carrefour um segurança sem alma, covarde, matou um guapequinha branco, uma maldade. No Extra foi outra coisa, um mulatinho, viciado, criou problemas e, imobilizado, acabou tendo o azar de ficar sufocado, gravata aplicada pelo segurança que estava ali para isso mesmo. Tem razão, confundi as histórias, cegueta, vocês sabem. Morri de pena do cachorrinho. Eu também. Eu também.
Restabelecidos os adequados consensos, cataram as bolsas enormes e saíram exibindo, vaidosas, suas classudas inanidades.
A contemporaneidade bolsonarista criou territórios em que as feras saíram das jaulas, as grades do assombrado controle civilizando-nos, protegendo-nos delas e de nossos mais primitivos instintos de justa vingança ou de violenta indignação, espécimes ameaçadas de extinção. Contraditórias vontades. De fugir, jaguaras, cada vez mais para dentro da gaiola digital, das nossas reconfortantes bolhas em redes sociais, ou de meter o louco, reagindo à iniquidade boçal. Quem mandou ficar escutando conversas alheias? Cada uma.
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