Ainda sobre o racismo iluminado de Allan Kardec

Racistas, iluminados ou sem luz, não passarão

Allan Kardec
Allan Kardec (Foto: Divulgação/Instituto IDEAK)


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No último dia 28 de fevereiro, esta coluna publicou um artigo intitulado “O racismo iluminado de Allan Kardec, no qual propus uma reflexão sobre a iluminação espiritual do escritor francês, com base na sua visão com relação à raça negra. Sabemos que quando falamos de religião, sobretudo quando tecemos críticas a alguém que a represente, a grita costuma se ouvir ao longe. Em primeiro lugar, quero escurecer algumas que parecem não terem ficado evidentes no artigo anterior. Principalmente, no que se refere ao espiritismo como doutrina e aos espíritas como praticantes desta, aos quais manifesto o meu profundo respeito. Não se encontra em lugar algum no texto em questão, uma frase sequer onde eu associe o espiritismo e os espíritas à prática de racismo. A não ser que, ao trazer à luz os equívocos raciais cometidos pelo principal líder do segmento, eu tenha ofendido toda a doutrina e os seus adeptos. E se a doutrina espírita se resume a Kardec, no que diz respeito ao racismo, existe um problema muito sério e que não deveria ser encoberto sob o pano de uma mesa branca.

Fui acusado de tirar frases do contexto, de omitir enunciados dos textos citados como referência, de ser desonesto intelectualmente, de estar fomentando polêmicas desnecessárias e de achincalhar com a memória do educador francês. No entanto, nenhum dos argumentos apresentados, por mais de outro mundo que tenha sido o contorcionismo feito para ajustá-los à questão proposta, conseguiu desdizer o que havia sido escrito por mim naquele texto. Allan Kardec era racista e eu desafio a qualquer espírita a me provar que não era. Voltemos ao texto “Perfectibilidade da raça negra” publicado na Revista Espírita em abril de 1862, como um capítulo do artigo “Frenologia Espiritualista e Espírita”. Se eu “omiti” a 3ª pessoa que Kardec utilizava para descrever os negros como “seres tão brutos, tão pouco inteligentes, que seria vão esforço querer instruí-los. São uma raça inferior, incorrigível, profundamente incapaz”, eu também deixei de relatar o que ele, agora em 1ª pessoa, diz na sequência.

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“Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos. Como Espíritos, são inquestionavelmente uma raça inferior, isto é, primitiva. São verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes, é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já representa um progresso que levarão para outra existência, e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório de melhores condições. ” No parágrafo seguinte podemos encontrar ainda, também dito em 1ª pessoa, que “por isso a raça negra, enquanto raça negra, corporalmente falando, jamais atingirá os níveis das raças caucásicas, mas como Espíritos é outra coisa: pode tornar-se e tornar-se-á aquilo que somos. ” Eu nem quero perder meu tempo explicando o óbvio em questão, porque para um negro é bastante doloroso ler tais coisas. Principalmente, vindas de alguém cuja iluminação espiritual era superior aos demais. Pausa para um dramin, e vamos em frente.

 

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Ainda em “Perfectibilidade da raça negra”, Kardec recorre a Frenologia, pseudociência criada pelo médico alemão Franz Joseph Gall, para dizer que “o exame frenológico dos povos pouco inteligentes constata a predominância das faculdades instintivas e a atrofia dos órgãos da inteligência. Aquilo que é excepcional nos povos adiantados é a regra em certas raças. Por quê? Será uma injusta preferência? Não, é a sabedoria, pois a natureza é sempre previdente; nada faz de inútil. Ora, seria inútil dar um instrumento completo a quem não tenha meios para dele se servir. Os Espíritos selvagens são ainda crianças, se assim se pode dizer. Neles muitas faculdades ainda estão latentes. Que faria o Espírito de um hotentote no corpo de um Arago? Seria como alguém que nada sabe de música diante de um piano excelente. Por uma razão inversa, que faria o Espírito de Arago no corpo de um hotentote? Seria como um Liszt diante de um piano contendo apenas algumas cordas estragadas das quais o seu talento não conseguiria jamais tirar sons harmoniosos. Arago, entre os selvagens, com todo o seu gênio, seria tão inteligente quanto o pode ser um selvagem, e nada mais. Ele jamais seria, numa pele negra, membro do Instituto. Seu Espírito faria o desenvolvimento dos órgãos? Dos órgãos fracos, sim; dos rudimentares, não. ”

 

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Acho que não preciso explicar que Allan Kardec está se referindo aos africanos como “povos pouco inteligentes” e “selvagens”, e ainda colocando a natureza, ou seja, Deus, o criador, como cúmplice no seu B.O, ao dizer que ela, por ser sábia, não daria a um negro a mesma inteligência dada a um branco. Que comece o contorcionismo espiritual para passar pano para mais essa fala racista de Kardec. Ou será que a minha origem ancestral selvagem e pouco inteligente não estaria permitindo que eu entenda a “poesia” do autor, dado o seu elevado e iluminado grau de erudição? Falando em erudição, o Arago citado por ele no texto, trata-se do astrônomo, físico e político francês, François Jean Dominique Arago, que chegou a ocupar o cargo de primeiro-ministro da França entre maio e junho de 1848. O Instituto ao qual Kardec se refere, possivelmente é a Academia de Ciências de Paris, para a qual Arago foi eleito e um negro jamais entraria em função da atrofia dos órgãos da sua inteligência. Aliás, essa história de povos pouco inteligentes, deve ter inspirado aquele verso do hino do Rio Grande do Sul que diz: “Povo que não tem virtude, acaba por ser escravo. “ Espero não ter que precisar explicar que é ironia. A mesma usada no meu texto anterior, ao dizer que tal ideia de superioridade racial expressa no texto de Kardec, deve ter servido de inspiração para a Ku Klux Klan.

 

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Me deparei também com alguns comentários que apontavam um suposto anacronismo no meu texto anterior e que evocavam a época em que Allan Kardec viveu e o fato de ser ele um branco europeu, para justificar o seu pensamento e para se contrapor ao fato de eu ter questionado a sua iluminação superior em função de seus escritos sobre os negros. Eu sempre ouvi dizer que luz e trevas não se misturam. Partindo desse princípio, seria mais natural que alguém iluminado se posicionasse contra os costumes da sua época, iluminando aquelas mentes então carentes de humanidade. Como Jesus Cristo, que mesmo sabendo que fazia parte da lei mosaica (costume daquela época) o apedrejamento de mulheres adúlteras, mostrou toda a sua iluminação dentro do contexto da época em que vivia e interviu para que uma mulher acusada de adultério não fosse apedrejada. Esse papo de ser fruto do pensamento da época não cola, em se tratando de seres ditos iluminados e espiritualmente superiores aos demais.

Para finalizar, li um texto referente ao meu artigo onde a jornalista Dora Incontri, a qual aqui cito respeitosamente, em um trecho escreve: “Quanto à ideia de que Kardec, por ser um espírito iluminado – segundo apreciação do colunista em questão – não poderia ceder a essa influência da época, está em completa contradição com a interpretação que intelectuais e estudiosos espíritas praticam: Kardec era um ser humano, sujeito a todas as possíveis influências do seu meio e de sua educação. “ O problema é justamente o tipo de interpretação que alguns intelectuais e estudiosos praticam acerca do que está escrito. Os textos bíblicos e de outros livros religiosos tidos como sagrados, também sofrem com a mesma pluralidade hermenêutica de seus estudiosos e de alguns pretensos iluminados intelectualmente para elucidá-los. É um réquiem literário profuso, confuso e sem fim. Repito o que disse anteriormente, com relação a quem se proponha a ser iluminado e a iluminar. Como alguém suscetível às más influências de seu tempo, pode ter sido escolhido espiritualmente para fazer os outros evoluírem? Pausa para reflexão.

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Em suma, como homem preto e descendente daqueles que um dia foram qualificados como selvagens e pouco inteligentes, me sinto na obrigação de fazer nos dias de hoje aquilo que os meus ancestrais não puderam fazer em outras épocas. Se defender da crueldade a qual foram submetidos e expor todos aqueles que, de alguma forma, corroboraram para que eles fossem violentados em suas existências. O catolicismo e o protestantismo um dia compartilharam desse mesmo pensamento racista e excludente, quando legitimaram a escravidão e colhiam de seus frutos, sob o argumento de que os africanos não tinham alma. É doloroso demais saber que pessoas nas quais corriam o meu sangue, foram tão subjugadas, humilhadas e até mortas, em nome de uma supremacia racial cujo único interesse era submeter ao domínio político, econômico, social e cultural da branquitude, outros povos e civilizações. Os únicos iluminados e elevados, espiritual e moralmente nessa história toda, somos nós negros, que historicamente vimos suportando a tudo isso, sem manifestar nenhum desejo de vingança. Logo nós, que segundo a pseudociência frenológica a qual Kardec era simpático e sob a qual se fundamentava a criminalística, antes de ela ser considerada um "ramo" do charlatanismo, classificava como violentos e potencialmente criminosos.

Lutamos apenas por justiça e por reparação histórica. E esta será feita pela nossa voz e a nosso modo, resgatando a nossa ancestralidade e denunciando o epistemicídio estrutural ao qual nossa cultura foi submetida. E senta lá, porque é só o começo. Ainda virá muito mais por aí! Racistas, iluminados ou sem luz, não passarão! 

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