Adjetivos, verdades e versões
Pedro Benedito Maciel Neto comenta declaração feita em 1964 de que João Goulart teria abandonado o Brasil
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“Não sou nada. Nunca serei nada.Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”
(Fernando Pessoa)
Introdução. Começo pedindo desculpas a todas e todos, pois, às vezes os meus argumentos são assertivos demais e podem causar desconforto, mas confesso: eu busco essa inquietação, pois acredito que apenas debatendo podemos caminhar de maneira sólida e aprender uns com os outros.
Ademais, eu não sou alguém cujas opiniões possam alterar os movimentos de rotação e translação da Terra, são minhas opiniões, reflexões que submeto às críticas, correções e complementações.
Feita essa introdução vou comentar um fato que envolveu em 1964 o ex-presidente Tancredo Neves e os senadores que apoiaram o golpe-civil militar, trata-se da declaração de que João Goulart teria abandonado o Brasil.
Adjetivos. Na madrugada de 2 de abril de 1964 a presidência da república foi declarada vaga, mas era uma mentira necessária para legitimar o golpe. Tancredo Neves reagiu ao que acontecia no congresso naquele abril de 1964 e aos gritos, eternizou o: “Canalhas! Canalhas! Canalhas!”. Os adjetivos usados foram contundentes, mas Tancredo sabia que a gravidade do que acontecia só seria compreendido ao longo do tempo com o uso de um adjetivo preciso, por isso escolheu “canalhas”.Tancredo expressou sua indignação à declaração mentirosa do então presidente do senado, Auro Moura Andrade, de que a Presidência da República estava vaga pelo abandono do país por João Goulart, quando na verdade o presidente estava em Porto Alegre, como notificado ao Congresso Nacional por Darcy Ribeiro, então chefe da Casa Civil. É verdade que Tancredo poderia ter usado os sinônimos disponíveis: infame, vil, abjeto ou velhaco, mas preferiu aquele que lhe pareceu mais adequado, mais enfático, adequado ao tamanho da sua indignação e da mentira que estava justificando a vacância da presidência.Aliás, o adjetivo em questão está no dicionário e tem origem etimológica conhecida. “Canalha” vem do latim "canalia", que significa "bando de cães". Hoje, "canalha" nada mais tem a ver com cães e já não fazemos a associação de atos e pessoas infames com os cães, o que é muito justo com os cães. O uso do adjetivo “canalha” - escolhido por Tancredo para referir-se aos apoiadores do golpe civil-militar patrocinado pelos EUA no contexto da guerra fria -, ainda causa desconforto, mas esse era o objetivo do mais longevo político brasileiro. Fato é que o uso de adjetivos é sempre perigoso, sejam os elogiosos, sejam aqueles que contém censura e crítica, pois, quando usamos um adjetivo, buscamos caracterizar o substantivo, indicando-lhe qualidade, defeito, estado, condição etc., de acordo com nossa interpretação da realidade. Por exemplo, “homem bom” (qualidade), “menino traquina” (defeito), “moça feliz” (estado), “família rica” (condição). O adjetivo pode aparecer antes ou depois do substantivo, por exemplo, “Bolsonaro mentiroso” ou “mentiroso Bolsonaro”.
Por que adjetivos são perigosos?
Porque a caracterização do substantivo revela sempre o ponto de vista de quem está narrando o fato ou descrevendo o objeto e porque cada um de nós vai descrever o que vê, ouve e sente de acordo com sua compreensão.
Essa é a beleza da linguagem enquanto meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos.
Onde pretendo chegar?
Bem, ao narrar um fato, contar uma história ou descrever um objeto não temos um comportamento asséptico, somos emoção e razão, nossa forma de interpretar revela nossa formação ética, moral e espiritual.
Verdades e versões. Para tentar explicar a questão das visões de mundo e da nossa capacidade ou incapacidade de relatar fatos que testemunhamos com precisão vou me valer novamente do filme “Rashomon”, de Akira Kurosawa – filme vencedor de dois Oscar e responsável pela inaugural presença do cinema japonês no ambiente internacional, em 1951.
Bem, o filme está ambientado no Japão do século XI e tem início quando um lenhador, um camponês e um sacerdote abrigam-se de uma forte tempestade nas ruínas do Portão de Rashomon.
Num dado momento o sacerdote, instigado pelo lenhador, começa a contar sobre um julgamento no qual foi testemunha; era o julgamento de um bandido que estuprara uma mulher e assassinara o marido dela. Havia testemunhas, mas os depoimentos eram conflitantes, cada uma das testemunhas descrevia o fato de uma forma.
Enquanto o sacerdote narra em flash back vão se passando as cenas do julgamento, e os aspectos do crime sob o ponto de vista de cada testemunha, inclusive o próprio espírito do morto que é incorporado por uma médium.
O grande problema para os juízes é que existem quatro versões para a mesma história e aparentemente ninguém conhece a verdade absoluta.
O filme é uma enorme parábola sobre a honestidade e os limites da dignidade humana. Nenhuma das testemunhas mentiu, mas cada uma delas narrou de diferentes modos, de contar ou interpretar o mesmo fato, cada um contou no tribunal o que viu, ouviu e sentiu de acordo com sua própria compreensão.
A versão não é mentira; a versão é interpretação pessoal do fato, já a mentira é fraude e afirmação contrária à verdade a fim de induzir a erro. Conclusão. As pessoas ao contar a mesma história são incapazes de fazê-lo sem algumas contradições, em razão da sua formação ética, moral, emocional e intelectual, devemos compreender a linguagem usada, o texto (narrativa), a partir do seu contexto histórico e os objetivos (pretexto).
Artigos de opinião são mais ou menos isso, uma visão pessoal sobre fatos.
A beleza da democracia é que, nos limites da lei, há plena liberdade para usarmos os adjetivos que julgamos adequados ao narrar fatos e o fazemos de acordo com a nossa formação ética, moral, emocional, intelectual e ideológica, por isso devemos compreender a linguagem usada, o texto, a partir do seu contexto histórico e os objetivos.
Essas são as reflexões.
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