Adeus “Bar Brasil”
Sempre achei o Paulo um gênio. Eu o via desenhar. Ele não usava borracha. Os traços já vinham prontos
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No final de uma das apresentações do recital “Pró-cura”, no Teatro de Arena, em São Paulo, em 1974, um cara alto e simpático se aproximou de mim. Eu ainda estava com meu figurino — uma camisa de força.
Não me lembro o que conversamos, mas, alguns anos depois, ele me convidou para trabalhar com ele. Em histórias de quadrinhos de humor, embora o recital tenha sido de poemas feitos durante os meus 45 dias de prisão no DOI-CODI.
Eu criava a historinha, os textos e diálogos, e ele, Paulo Caruso, desenhava sátiras políticas para a revista “Status”, a convite do editor Gilberto Mansur.
Numa delas — “Lula governador” — os industriais da Fiesp, ex-patrões de Lula, tinham virado seus empregados. Mas, na vida real, Lula não se elegeu governador de São Paulo.
Quando Tarso de Castro foi contratado por Domingo Alzugaray para reeditar a revista “Careta”, em 1981, chamou o Paulo para fazer uma historinha política que começava na página 2 e terminava na página 3. E o Paulo me chamou.
A reunião com o Tarso começou na redação, mas logo descemos até o “Sujinho”, vizinho da Editora Três. Já eram 11 da manhã. Tarso precisava tomar a primeira vodka do dia. De pé, encostados no balcão, diante de iguarias horripilantes, tais como os indefectíveis ovos coloridos, Paulo teve o estalo:
“A historinha vai se chamar Bar Brasil”.
E eu completei:
“O dono vai ser o general Figueiredo e os garçons, seus ministros. Os clientes vão ser os políticos da oposição. Vai ser o único lugar do país onde situação e oposição se encontram”.
Tarso gostou da ideia. E durante muitas semanas, não me lembro quantas, o “Bar Brasil” colocou os ditadores na mesma mesa de quem queria eleições diretas para presidente.
A “Careta” durou uns nove meses. Em seu lugar, Alzugaray lançou uma revista semanal de informação sob comando de seu amigo e sócio, Mino Carta, no mesmo prédio, ao lado do “Sujinho”.
Mino adotou o “Bar Brasil” logo de cara, mas o deslocou para a última página da “Senhor”. E ela passou a ser a primeira a ser vista. Até pelo próprio Mino, como ele escreveu no prefácio do nosso primeiro livro ”Bar Brasil”, da editora Paz e Terra.
Eu ia, uma vez por semana, ao estúdio do Paulo, quase em frente ao Fórum de Pinheiros. Já vinha de casa com uma ou várias ideias. E a gente escolhia uma delas na hora. É claro que a minha parte era muito menos exaustiva e demorada. A ideia podia vir em um minuto. Quem carregava o piano era ele, passava o resto do dia desenhando.
Mas nem sempre. Por exemplo: na semana do primeiro comício das “Diretas Já”, eu sugeri usar a foto da Praça da Sé abarrotada (feita por nosso colega e amigo Hélio Campos Mello) na página inteira. Ele teve que desenhar “apenas” o general Figueiredo dizendo para seu ministro Leitão de Abreu:
“Belo ponto para abrir um boteco, hein professor”?
Fomos muito felizes, rimos muito e fizemos muito sucesso. A Rádio Excelsior nos contratou para apresentar um programa chamado “Bar Brasil”, transmitido diretamente de um bar chamado Brasil, na esquina das alamedas Santos e Bela Cintra.
O Johnny Saad nos convidou para transformarmos o “Bar Brasil” numa série em desenho animado, na TV Bandeirantes. A “Isto É”, comandada por Mário Alberto, tentou nos tirar da “Senhor”. Editoras brigavam por nossos originais. Da Paz e Terra mudamos para a LP&M.
Até que, num belo dia, brigamos feio. Ninguém pôs a mão em ninguém. Aos gritos, ele tentava justificar sua decisão de assinar contrato com uma marca de cachaça, sem me incluir. “Eles querem um stand com a réplica do Bar Brasil, e quem desenhou o Bar Brasil fui eu” disse ele. “Mas a marca é dos dois” disse eu.
Ele achava injusto, no fundo, ter que trabalhar mais e dividir o pró-labore comigo. Eu não admitia na época, mas hoje acho que ele tinha razão.
Domingo Alzugaray propôs que eu procurasse outro desenhista para seguir com o “Bar Brasil”. Não topei. O Paulo, porém, topou continuar sem mim. Mas teve que mudar o título para “Avenida Brasil”. O “Bar Brasil” era nosso.
Depois disso nos reencontramos muitas vezes. Nunca mais falamos sobre o episódio. Passamos uma borracha. Fiz várias entrevistas com ele sozinho e junto com Chico, seu irmão gêmeo.
Eu o contratei ou indiquei várias vezes para fazer capas de revistas onde trabalhei, como a “Brasileiros”. Ele me indicou, certa vez, para a bancada do “Roda Viva”, onde fazia charges ao vivo, então comandada por Augusto Nunes. Entrevista com Lobão.
Nunca disse isso a ele, porque não precisava, mas sempre achei o Paulo um gênio. Eu o via desenhar. Ele não usava borracha. Os traços já vinham prontos, de primeira, do lápis para o papel. Ele conseguia traduzir, num desenho, a alma de uma pessoa. Ou o lado ridículo da alma de uma pessoa.
Aconteceram coisas inesperadas na nossa relação. Certa vez, ele namorou uma moça por quem eu me apaixonei no colégio vinte anos antes.
De tempos em tempos, eu o convidava para voltarmos a fazer o “Bar Brasil”. Ele sempre declinou. E eu sempre me iludia achando que um dia aceitaria.
Agora não me iludo mais.
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