Adélio e a omissão das autoridades, que faz dele peão de xadrez num jogo obscuro

O autor da facada ou suposta facada em Bolsonaro pode ser solto antes que a família conseguisse um direito que busca há quatro anos: visitá-lo

Adélio, a irmã Maria das Graças e Bolsonaro
Adélio, a irmã Maria das Graças e Bolsonaro (Foto: Reprodução/arquivo pessoal/REUTERS/Ueslei Marcelino)


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A notícia de que o autor da facada ou suposta facada em Jair Bolsonaro, Adélio Bispo de Oliveira, passará por exame de uma junta médica nesta segunda-feira e poderá ser solto saiu na imprensa, mas ninguém da família foi informado.

A omissão revela nesse caso um padrão de conduta que envolve instituições brasileiras desde 6 de setembro de 2018. Adélio virou um pedaço de carne trancado em uma cela de Campo Grande há quase quatro anos, sem que a família tenha sido autorizada a visitá-lo.

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Nesta manhã, uma das irmãs dele, Maria das Graças Oliveira, que não sabia da notícia da perícia, chorou ao falar de Adélio. 

“Eu queria ter visitado meu irmão antes de 16 de maio, quando é o aniversário dele, mas não deram resposta”, disse, após segundos de silêncio no telefone, em que chorava, um choro contido, aparentemente envergonhado.

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Adélio morou com Maria das Graças, que os irmãos chamam de Lia, antes de “cair no mundo” para trabalhar em serviços modestos, como auxiliar em restaurante ou servente de pedreiro.

Ainda assim, pelo padrão social e econômico da família, ele era considerado o mais bem sucedido, um exemplo para os sobrinhos, como um dos filhos de Maria das Graças, que entrevistei sob condição de anonimato.

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Adélio também era considerado uma pessoa articulada, inclusive por vizinhos, na periferia de Montes Claros, Minas Gerais, onde nasceu e cresceu.

Falava de política com vizinhos, e era assíduo frequentador de uma igreja evangélica, onde pregava, e abordava tema que faz parte do ideário bolsonarista, como o combate à chamada “ideologia de gênero”, e fazia defesa de militares.

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Quando foi preso, para surpresa dos conhecidos e da família, o criminalista Zanone Júnior, famoso em Minas Gerais, se ofereceu para defendê-lo.

Zanone estava em Belo Horizonte e queria tanto o caso que enviou um ex-estagiário que morava em Barbacena para obter procuração de Adélio enquanto se preparava para ir no próprio avião para Juiz de Fora.

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O ex-estagiário foi alvo de zombaria na Polícia Federal ao dizer que estava ali por indicação da mãe de Adélio. “Minha mão morreu faz muito tempo”, respondeu Adélio. “Me enganei, foi uma tia”, insistiu o ex-estagiário.

“Não tenho contato com nenhuma tia”, comentou Adélio. No entanto, o autor da facada ou suposta facada em Juiz de Fora aceitou a oferta de Zanone, o que acabou se revelando uma má decisão. O advogado parece nunca ter defendido adequadamente os interesses do cliente.

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No dia seguinte, Zanone, que não conhecia Adélio, pediu à juíza federal da audiência de custódia que abrisse um incidente de insanidade mental, mantivesse o caso sob jurisdição federal por “crime político”, e o transferisse para um presídio de segurança máxima longe de Minas Gerais.

Adélio foi levado para Campo Grande, Mato Grosso do Sul, onde se encontra até hoje. Há quem veja na insistência de Zanone para assumir o caso uma estratégia de propaganda.

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Como sabia da repercussão que os fatos teriam, talvez quisesse oportunidade de exposição midiática. Pode ser. Mas, se este era o real objetivo, o caminho mais eficaz seria tentar levar o caso para a Justiça Estadual, e provocar um julgamento no Tribunal do Júri, que é sua especialidade e onde ele apareceria muito mais.

Foi o escritório de Zanone que providenciou o primeiro laudo de insanidade mental de Adélio, que o juiz Bruno Savino, de Juiz de Fora, não aceitou.

O magistrado determinou a realização de uma perícia oficial, e a conclusão dos médicos é que Adélio tinha "transtorno delirante persistente”.

Com base nesse laudo, o juiz, mesmo sem interrogá-lo, considerou Adélio inimputável e determinou que cumprisse medida de segurança no presídio em Campo Grande.

Na sentença, Bruno Savino determinou que, após três anos, deveria ser reavaliado e, se os médicos o considerassem apto para o convívio social, colocado em liberdade.

É essa avaliação que será feita nesta segunda-feira. 

Maria das Graças e o filho dizem que Zanone nunca viabilizou a visita de um parente a Adélio, apesar das solicitações. 

“Ele sempre disse que esperava o melhor momento, mas nunca veio esse melhor momento”, afirmou Maria das Graças.

Há cerca de dois anos, Adélio escreveu uma carta de próprio punho para a Defensoria Pública da União em Campo Grande e pediu que o advogado fosse afastado.

Também escreveu uma carta para a irmã e pediu que ela procurasse outro advogado e tentasse sua transferência uma cadeia em Minas Gerais, mais perto da família.

Zanone deixou a defesa de Adélio, mas não o processo. Ele se tornou curador processual do antigo cliente, e está autorizado para acompanhar a perícia, nesta segunda-feira.

Na época em que o defensor público Valber Rondon Ribeiro Filho atuava em Campo Grande, Adélio chegou a ter uma defesa efetiva.

Valber entrou com mandado de segurança para transferir Adélio para uma hospital psiquiátrico, já que o presídio federal em Campo Grande não tem estrutura médica para atender a um cliente diagnosticado com transtorno delirante persistente.

Valber obteve decisão favorável na primeira instância em Campo Grande, mas o juiz Bruno Savino, de Juiz de Fora, discordou, e o caso foi para as cortes superiores.

O principal argumento da Justiça Federal em Minas Gerais é que não havia vaga em hospital psiquiátrico público. 

Até que, em agosto do ano passado, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal acatou relatório do ministro Kássio Nunes Marques e decidiu que Adélio podia, sim, receber tratamento psiquiátrico no presídio de segurança máxima.

E lá Adélio ficou, em condições de saúde impróprias até para quem não foi diagnosticado com doença psiquiátrica, como contou o perito José de Ribamar de Araújo e Silva, do Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura. 

Ribamar de Araújo e Silva encontrou casualmente Adélio durante uma visita ao presídio em Campo Grande.

Como o trabalho dele é verificar se há tortura nos estabelecimentos penitenciários do Brasil, foi orientado por presos a conversar com Adélio. “Se você quer saber sobre tortura, você tem que falar com Adélio, aquele do Bolsonaro”, disse um dos presos a Ribamar.

Na conversa que teve com Adélio, no ano passado, ouviu queixas sobre o advogado. “Ele nunca veio aqui, não sei quem paga, eu não recebo visita da família”, reclamou Adélio, segundo relato do próprio Ribamar de Araújo e Silva.

Apesar de considerado inimputável, Adélio não foi poupado em um processo disciplinar que fundamentou sua transferência para solitária no presídio.

Ele foi submetido ao castigo depois de reclamar ostensivamente das revistas invasivas a que era submetido quando ia ou voltada do banho de sol. 

Na época, a Defensoria Pública da União tentou cassar a medida que o levou para a solitária, mas não obteve liminar. No julgamento do mérito, meses depois, conseguiu uma decisão que impedia a direção do presídio de voltar a processar Adélio por infração disciplinar.

Uma decisão lógica. Se Adélio é insano, não pode responder por eventual quebra de regra disciplinar.

O defensor público Valber Rondon, com quem conversei em Brasília, para onde ele foi transferido, lembrou que o problema começa antes.

“Adélio é um caso único, não poderia estar num presídio em hipótese alguma”. 

Valber tentou, em vão, buscar a aplicação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STF): se é verdade que não há vaga em hospital psiquiátrico de Minas Gerais, ele deveria ficar junto da família e se ser submetido a tratamento médico na rede ambulatorial. 

Válber pensou em levar o caso para a Corte de Direitos Humanos da OEA, mas, como deixou Campo Grande, não tem mais competência funcional para tocar o caso.

Em seu lugar, ficaram servidores públicos que parecem não ter a mesma disposição para lidar com a complexidade do caso Adélio.

Por iniciativa de um conhecido comum, há cinco meses, entrei em contato com a Defensoria Pública da União em Campo Grande, atendendo a um pedido de Maria das Graças.

Ela queria visitar o irmão.

O defensor público Sílvio Rogério Grotto de Oliveira me atendeu e fui formalmente designado como representante legal de Maria das Graças.

Por orientação dele, enviei documentos solicitados, inclusive nova certidão de nascimento de Maria das Graças, já que a antiga estava rasurada.

Há cerca de dois meses, a Defensoria Pública entrou em contato comigo, para pedir prova de que outro documento de Maria das Graças, o RG, era autêntico.

Maria das Graças, por orientação da Defensoria, fez fotografia segurando o RG. Desde então, não recebi mais contato da Defensoria, que deixou de atender a meus telefonemas e mensagens.

No dia 1o. de julho, enviei a seguinte mensagem a Silvio Grotto:

"Recebi ontem ligação da irmã do Adélio, Maria das Graças. Ela parecia angustiada. Faz quase 4 anos que não vê o irmão. Entrei em contato com a defensora que me procurou para pedir um documento pendente. Enviei mensagem sobre Maria das Graças, mas não obtive retorno. Pode verificar, por gentileza, o que está ocorrendo? Por que o cadastro da irmã do Adélio não foi aprovado ainda, para que ela realize uma visita?”

Sílvio Grotto ignorou a mensagem.

No dia 6 de julho, enviei nova mensagem:

"Voltei a receber ligação da Maria das Graças, irmã do Adélio. Ela me pergunta se o cadastro foi aprovado. Se o senhor não puder responder, por favor me informe quem pode, e eu entrarei em contato”.

Sílvio Grotto continuou ignorando. Detalhe: não entro em contato apenas como jornalista, mas como representante legal da Maria das Graças.

Procurei também o conhecido comum, aquele que teve a iniciativa de me colocar em contato com Sílvio Grotto:

"Posso lhe fazer um pedido? Ver com o Sílvio, da Defensoria, sobre o cadastro da irmã do Adélio Ele me ligou chorando Entregou todos os documentos. E ele não dá resposta Não está nem atendendo meu telefone. É desumano o que ocorre. Se vc puder falar, já q ele tem relação anterior com vc, ajudará muito.”

Não sei se esse conhecido comum entrou em contato com Sílvio, mas o fato é que não recebi resposta de nenhum deles.

Na manhã desta segunda-feira, falo com a irmã de Adélio novamente. Ela continua angustiada. Se o irmão for solto, o que será dele?

Se continuar na situação absurda em que se encontra — se é doente, não pode ficar no presídio de segurança máxima tomando banho de sol com membros do alto escalão do PCC, e sujeito a uma disciplina que não é adequada para doentes mentais —, seu quadro vai se agravar.

A menos de 70 dias para a eleição, Adélio volta à cena, não por iniciativa própria, mas por ação de instituições que fazem dele um peão de xadrez, sem direito a nada. Nem a contar à irmã se cometeu o ato de que o acusaram. E, se cometeu, por que.

 

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