Abuso de autoridade: os atos falhos e a inconstitucionalidade nos vetos de Bolsonaro

O resultado não poderia ser diferente. O texto final após os vetos não apenas origina vácuos legislativos, como se conforma em uma colcha de retalhos com buracos, gestando insegurança jurídica e atentando contra o devido processo legislativo constitucional, não restando ao Congresso Nacional outra alternativa senão derrubá-los

(Foto: Alan Santos - PR)


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Ao tratar do ato falho, Sigmund Freud assentiu que ele ocorre quando há mais de uma intenção em jogo, que pode ser percebida, mas não anunciada. No discurso, o objetivo do sujeito, seja do intuito consciente ou reprimido, acaba por ser revelado, a despeito de não ter essa sua intenção.

Ao sancionar na quinta-feira (05) a Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019), Jair Bolsonaro vetou 36 dispositivos, distribuídos em 19 artigos. 

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A Lei em questão define 37 crimes de abuso de autoridade, que podem ser cometidos por servidores públicos membros dos Três Poderes. Oriunda do Senado Federal, onde teve parecer substitutivo apresentado pelo senador Roberto Requião a um projeto do senador Randolfe Rodrigues em 2017, e aprovado na Câmara dos Deputados no último dia 14 de agosto, a norma ficou totalmente descaracterizada, em sua intenção de promover algum parâmetro de controle e sanção aos desvios e abusos, cometidos por autoridades contra cidadãos.

Conforme pontuei em artigo escrito ao tempo da tramitação do projeto no Senado Federal, o texto “formata condutas praticadas por agentes públicos que implicam em danos concretos, afetando bens jurídicos tangíveis, como a liberdade e a integridade física e psicológica. São, neste sentido, bens jurídicos tradicionais do direito penal mínimo, que não possuem o condão de produzir aumento de repressão e são compatíveis com a criminologia crítica. Não se trata, portanto, de crença na pena como solução de conflito nem apego à norma criminalizadora. Cuida-se, antes, de garantir a não violação de direitos humanos fundamentais na relação entre o indivíduo e a autoridade estatal, inscrevendo uma sistemática assentada em regras de conduta inafastáveis de uma prática civilizatória.”[1]

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As manifestações dos agentes públicos e políticos que trabalharam em favor dos vetos, bem assim as justificativas postas formalmente pelo governo, são claramente atos falhos. Utilizam uma linguagem segundo a qual a nova lei prejudicaria a prática de funções, a autonomia e a liberdade do exercício de poder. A frase dita pelo ministro da Justiça e Segurança Pública à imprensa é muito emblemática: 

“Claro que o abuso tem que ser coibido, mas não ao limite de impedir a atividade ou fazer com esses profissionais tenham medo de tomar a decisão certa por receio de sofrerem acusações infundadas”

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Em evidente lapso freudiano, a elocução defende que se pode admitir abuso de autoridade e permitir atividade ilegal, para não causar temor ao agente que o pratica. 

Em elementar inversão do conceito de legalidade e da correta aplicação do Direito, deseja-se garantir a prática do arbítrio, para que não prejudique a atividade dos servidores públicos. Em virtude disso, alega-se que não podemos ter uma lei que coíba a ilegalidade, para que os mesmos gestores não sintam receio de empregar condutas que possam vir a ser definidas como ilegais.

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Indagado acerca da deformidade e absurdeza de sua afirmação, é provável que o ministro da Justiça negue seu sentido. Frases assim é que permitem a compreensão do ato falho em sua dimensão reveladora, para além do que o sujeito conscientemente confirma. A falácia de que a lei quer destruir o combate à corrupção não se sustenta mais em pé. As consequências de ações de agentes públicos que se imaginam com poderes exorbitantes já se mostraram extremamente danosas, com as revelações feitas por diversos meios de comunicação, de condutas dos membros da operação Lava Jato.

Sobre o conteúdo dos vetos, cabe pontuar que eles foram feitos de forma abstrata e com fundamentação genérica, na linha do ministro Moro, excluindo, desde o dispositivo que trata da vedação de decretar prisão ilegal (art. 9º), até o crime de violar direito ou prerrogativa de advogado (art. 43), procedimentos cuja ilicitude, a propósito, é tão irrefutável em um Estado Democrático de Direito, que pode ser considerada redundante.

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Por outro lado, os vetos causam danos formais ao ordenamento jurídico, decorrentes de impropriedades técnicas que, no limite, indicam sua inconstitucionalidade.

Ao fazer desaparecer o inteiro teor do art. 3º, criou-se uma lacuna sobre como e por quem será proposta a ação penal sobre abuso de autoridade. Ao vetar o inciso III, do art. 13, elimina-se a pena que corresponde ao crime, o que se caracteriza como um erro grotesco, haja vista que não pode existir a tipificação de um crime sem uma reprimenda que lhe corresponda, justamente para firmar a repulsa social àquela ação. Por fim e fundamentalmente, ao não vetar o art. 44, que determina a revogação integral da Lei 4.898/65 (antiga Lei de Abuso de Autoridade), criou-se vazios jurídicos sobre tipos penais e condutas antes descritas e apenas modificadas, gerando na prática sua descriminalização.

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A inspiração que impulsionou os legisladores a aprovar a Lei de Abuso de Autoridade decorrera não de um ou outro fato isolado, mas da necessidade de estabelecer preceitos para que servidores públicos, pagos com o dinheiro do contribuinte, limitem suas ações aos parâmetros da legalidade, fortalecida dentro das premissas constitucionais, sem arranjos que justifiquem condutas desviantes e práticas repulsivas. A motivação dos vetos, por seu turno, foi eliminar qualquer contenção à violação de direitos e de prerrogativas de cidadãos, e considerar válidas ações arbitrárias de agentes públicos, exortando sempre o sentimento de que os fins justificam os meios.

Os vetos demonstram, na verdade, o anseio em tornar sem eficácia qualquer salvaguarda contra o autoritarismo estatal, e evitar qualquer apuração de excessos.

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O resultado não poderia ser diferente. O texto final após os vetos não apenas origina vácuos legislativos, como se conforma em uma colcha de retalhos com buracos, gestando insegurança jurídica e atentando contra o devido processo legislativo constitucional, não restando ao Congresso Nacional outra alternativa senão derrubá-los.

[1] https://jornalggn.com.br/justica/projeto-de-abuso-de-autoridade-e-uma-salvaguarda-para-a-democracia-por-tania-maria-de-oliveira/

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