A violência, escolar ou não, só será vencida com Bem Estar Social

É coisa estrutural num processo que, obviamente, piorou na era Bolsonaro com a sua sacralização, discursos de ódio e acesso às armas, mas vem de longe

Sala de aula
Sala de aula (Foto: CECILIA BASTOS/USP Imagens)


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O Brasil tem uma sociedade extremamente violenta. É coisa estrutural num processo que, obviamente, piorou na era Bolsonaro com a sua sacralização, discursos de ódio e acesso às armas, mas vem de longe.  O antídoto tradicional do Brasil contra a violência das ruas, totalmente ineficaz, aliás, sempre foi a violência e a repressão do Estado essencialmente contra os pobres. Esse antídoto, que continua em uso corrente, (vide a recente invasão da Maré de 17/04) é um método que produz quantidade de homicídios “colaterais” de escolares, gestantes e pais de família, (normalmente pretos) e pode ser assimilado às expedições punitivas de uma guerra.

O problema da ideologia, entretanto, é que ela mascara lógicas consensuais subliminares e sutis que persistem para além das mudanças de governo.  

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Temos que reconhecer que o discurso abjeto em favor da violência foi substituído, e não é pouco, pela ideia de um “uso da força” privativo do Poder Público. 

Dito isso, é preciso também termos a coragem de reconhecer, que esse uso da força, na vigência do Estado de direito, coincide com a ideia que alimenta o modo fascista de lidar com problema: o crime deve ser combatido como uma questão militar. Uma guerra para a qual se mobilizam os dispendiosos instrumentos bem conhecidos da presença policial em toda parte e inevitavelmente da violência antipobre que é inamovível. Trata-se, portanto, de entender o que  e como o racismo estrutural faz para sobreviver sob roupagens diferentes no fascismo ou no Estado de direito. 

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Obviamente que, apesar do discurso do novo governo estar inserido no modo democrático de governar, o que, reconheçamos é um bálsamo, o principal beneficiário, politicamente falando da realimentação da engrenagem da força para o enfrentamento da violência, é, indiscutivelmente, a extrema direita cujo propósito é o de fazer a socialização do seu uso pelos de cima contra os de baixo, substituindo a ideia de que é coisa privativa do Estado.

Sobre a extrema direita, aliás, paira a percepção de que é autora ou influenciadora de diversos desses atos de violência escolar que, de fato, acurralam o Estado a uma lógica na qual ela reina soberana: a da violência, método que poderia ir se tornando, por diminuição das margens de manobra, uma alternativa cada vez mais incontornável ao Poder Público democrático. 

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Miopia das miopias é o Poder Público atribuir à violência escolar uma terapia que cobre um leque de abordagens focados unicamente na escola e que vai da presença policial, (o soldado na porta, a revista às mochilas escolares ou a ronda escolar), a dispositivos de inteligência para a identificação de criminosos potenciais, ou a estratégias de apoio psicológico a vítimas e (mais raramente) eventuais controles de bullying e fomento a uma bucólica cultura de paz...

Ou seja, a um problema social sistêmico, a arma do Estado, em todos os níveis, parece ser focal e com alvo no último elo da cadeia onde a violência finalmente eclode: a escola. 

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É óbvio que, como políticas coadjuvantes, essas iniciativas focais podem ser entendidas como necessárias, elas podem até mesmo fazer flutuar para baixo a ocorrência de problemas, mas é bom que vejamos que a sua presença e permanência se deverá a um fato claríssimo: elas são essencialmente contra gradiente numa sociedade que produz, como respira, mais e mais violência em toda parte e não somente na escola.

A violência escolar é de natureza diferente da violência que mata jovens negros nas periferias brasileiras todo dia? 

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É diferente da violência que assola os presídios e foi um dos elementos centrais da onda de violência recente no RN onde a tortura figura como um dos elementos da crise? 

É diferente da falta de oportunidades a que se submente os adolescentes do Brasil para sempre capados do acesso à Cultura, ao Esporte e ao Lazer? 

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É diferente da violência silenciosa que a sociedade comete cotidianamente contra a população em situação de rua que nem lugar para evacuar dignamente tem? 

É diferente da violência que se opera na invisibilidade num país que não tem política de abrigamento de idosos vulneráveis? 

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É diferente do assassinato de líderes sindicais, agrários e indígenas em toda parte?

É diferente da humilhação a que o nosso povo, estrangeiro em seu país, é submetido, se for pobre, em cada maldito guichê de serviço público ou privado?

É diferente da seleção racial da revista na rua por uma polícia assassina o que aterroriza os jovens negros quando voltam para casa?

É diferente da que “autoriza” o policial a esbofetear mulheres à luz do dia?

Não! 

Com as suas características próprias que incluem: 

 (a) o bullying sem controle pela escola; 

 (b) as expulsões de alunos “problema” (como se o problema do aluno não fosse antes de tudo o mister da escola) sem sequer uma visita domiciliar pela autoridade escolar; 

 (c) greves por tempo indeterminado dos professores, sujeito/objeto e sem qualquer pactuação com alunos e famílias para mitigar a exposição dessa juventude às ruas; 

 (d) situações diversas que em lugar de produzir homicídios produzem suicídios (que dão menos mídia) e doença mental; 

 (e) e ações paramilitares perpetradas por criminosos inspirados do ideário da extrema direita; 

 a violência escolar é APENAS um capítulo da violência que assola o Brasil de ponta a ponta...

 Ora, sejamos honestos, querer resolver o problema da violência escolar com ações focadas na escola é como querer construir um santuário num lixão. É possível, mas haverá sempre necessidade de evitar que os ratos entrem até por debaixo da terra, num contexto em que o odor nauseabundo jamais poderá ser contido.

 É triste no Brasil termos sempre que repetir obviedades, que já deveriam, de há muito, fazer parte do repertório de intervenção do Poder Público, mas vivemos um interminável século dezoito.

 A crise da violência no Brasil decorre da insistência inquebrável do Estado brasileiro de todos os tempos de não adotar e de nunca adotar uma política sistêmica de promoção do Bem Estar Social que seria remédio para muito mais do que diminuir a violência, pois criaria cidadania e estabilizaria a democracia golpeável que nós temos.

O que fazer?

Sábado passado, num dia de discussão com uma Associação da Vila de Ponta Negra, aqui em Natal, o Fórum Vila em Movimento, discutíamos como já é tempo de completar as grandes três prioridades públicas no Brasil (Saúde, Educação e Segurança) com outras novas que não anulam as anteriores mas as recontextualizam num ambiente de mais cidadania e participação social: o acesso à Cultura, ao Esporte, ao Lazer e ao acolhimento de vulneráveis. 

Constatamos o quanto o Estado em geral é completamente surdo a essas reivindicações que seriam, no entanto, de natureza a mudar por completo a experiência de sociedade das maiorias, humanizando-a, dignificando-a e tratando-a de males, dentre outros, como os da violência.

Ontem, finalmente uma boa notícia proveniente do governo federal com potencial de gerar mais efeitos na redução da violência escolar do que a soma multiplicada por dez de todo o esforço policialesco que todas as esferas de governo farão para conter a violência escolar: o Ministério do Esporte, sem motivação na violência, mas no esporte, lançou um edital para construir pistas de skate pelo Brasil.

Inicialmente achei pelo pequeno montante unitário previsto para cada pista, (cento e oitenta mil reais) que seria uma iniciativa maciça, para disponibilizar pistas de skate em toda parte desse sofrido país, mas o edital, do Ministério do Esporte e espero que seja um piloto, prevê fazer o quantitativo, reconheçamos, irrisório de 15 (quinze) pistas, três por Região do Brasil um que equivaleria a fazer uma única pista de skate para cada país da América do Sul...

Ora, um remédio, para surtir efeito, TEM que ser dado na dose certa e, embora estejamos diante de uma política correta, a sua oferta se dá numa subdose capaz de meter vergonha em qualquer homeopata se se tratasse do tratamento de uma doença física. Em termos concretos trata-se de uma pista para cada 14 milhões de habitantes e a cada 500.000 Km2 (uma Bahia ou uma França...)

A proposta da Rede Inclusão ( sustentável do ponto de vista orçamentário aponta para a necessidade, tal como se faz no SUS, de territorializar a distribuição de equipamentos como as pistas de skate entre os mais vulneráveis. 

A Rede prevê, que dos 210 milhões de habitantes do Brasil sejam atendidos como beneficiários prioritários o terço mais vulnerável dessa população que agrupa 70 milhões de habitantes, reunidos em territórios de 20.000 pessoas, base territorial (como faz a Rede SUS) para a construção do acesso universal à Cultura, ao Esporte e ao Lazer. Essa territorialização gera, assim, 3.500 territórios de 20.000 habitantes no Brasil.

Isso significa que há um gap entre a proposta do Ministério do Esporte e a necessidade do Brasil (se é que queremos fazer chegar uma pista de skate pelo menos a cada 20.000 habitantes) de 3.485 pistas de skate que não serão realizadas ante as 15 previstas. Se em lugar de fazer 15 pistas de skate o governo fizesse 3.500 gastaria algo como 660 milhões de reais ou 0,013% do orçamento da União. 

Para dimensionar o significado desse montante que produziria resultados sociais que não precisamos comentar, o Ministério da Justiça teve que gastar no RN em virtude da onda de violência do último mês montante que deve superar os 150 milhões de reais entre o que foi deixado para investimentos futuros no estado e o que foi gasto na mega operação policial.

Quase simultaneamente, o Programa Escola Segura, por sua vez, teve um primeiro edital lançado no valor de 150 milhões de reais. 

Os dois gastos públicos somados consumirão 300 milhões de reais do erário em gastos não previstos que alcançaram, num mês, a metade do que teria custado o acesso universal nas comunidades mais vulneráveis a uma pista de skate para uma juventude que normalmente não tem, no contraturno da escola, nenhuma oportunidade ofertada, à exceção do crime organizado...

Na outra ponta, a Secretaria de Territórios Periféricos do Ministério das Cidades, grande iniciativa do governo Lula e responsável pelas políticas públicas nas periferias de todo o Brasil, recebeu 500 milhões de reais de orçamento para o seu ano de atividades.

Queremos dizer, de forma veemente, que os investimentos na infraestrutura social que fazem falta ao Brasil e são parte do problema primário que produz e reproduz a violência todos os dias nas entranhas do país, são pequenos comparativamente à magnitude dos problemas que eles atenuariam.

A Rede Inclusão que sob o nome de Rede Canto foi um dos projetos premiados pelo Instituto Lula (então não é coisa de loucos) no recente concurso de Políticas Públicas denominado “TERRITÓRIOS E CIDADES DEMOCRÁTICAS” (clique aqui) não concebe, entretanto, que 660 milhões de reais para os mais vulneráveis sejam suficientes para materializar a infraestrutura social necessária à inclusão social. 

A Rede entende que os equipamentos sociais para os mais vulneráveis devam receber orçamento anual situado entre sete e nove bilhões de reais o que representa algo como 0,3% a 0,45% do Orçamento da União, ou como 0,8% em média dos orçamentos das grandes cidades e estados se fossem somados. 

Tais recursos (dois a três milhões de reais/ano/território) devem ser aportados, ano após ano, como uma liquidez para a tomada de decisão da população de cada um desses territórios de 20.000 habitantes o que permitirá que essa política emancipatória atinja o que é efetivamente percebido como prioritário em cada território.

Considerando que o objeto desses investimentos teria o condão de produzir uma virada na experiência de cidade das maiorias, o que provavelmente atenuaria ao mesmo tempo os elevados níveis de violência; entendemos que fazê-los sai de graça para o Brasil e não fazê-los é que custa muito caro.

Esses custos já foram fartamente estudados e inclusive foram objeto de diversos artigos dentre os quais um escrito por mim, pela professora Erminia Maricato e pelo professor João Whitaker, (então não é coisa de loucos) que não deixa qualquer dúvida sobre a sustentabilidade da proposta (clique aqui). Mas o Brasil não quer fazer.

Os governos, aparentemente, querem um país mais pacífico mas querem continuamente um povo pobre sem oportunidades, compensando as arestas pelo uso da força pelo Estado. 

Como no velho adágio francófono, é como querer ter a manteiga e o dinheiro da manteiga. Não é possível. Ou você tem a manteiga ou o dinheiro da manteiga. Não se pode querer uma sociedade pacífica sem investimentos sociais robustos naquilo que faz a vida valer a pena, o que foi ilustrado aqui pela singela pista de skate. É obvio ou precisamos desenhar?

Para finalizar, vou colocar aqui um gráfico que mostra a queda dos homicídios numa comunidade de Natal, Mãe Luiza após a inauguração de um Ginásio Poliesportivo (que funciona nos três turnos). Esse fenômeno do esporte como atenuador da violência é mundialmente conhecido e, quero crer, não é novidade nem mesmo para os tomadores de decisão do nosso amado país. 

Na mesma época Natal percorria as estatísticas mundiais como uma das dez cidades mais violentas do mundo, hoje continua no pelotão de frente entre as 50. Esse bairro, tradicionalmente bem mais violento do que a cidade, percorreu o itinerário oposto se tornando cada vez menos violento no período e finalizando a série com menos homicídios por cem mil habitantes do que a média da cidade.

 

grafico

A imagem fala por si só. O Ginásio foi inaugurado em 2014, ano que marcou a primeira queda no número de homicídios. Em fins de 2017 após a crise carcerária o crime organizado se consolidou no bairro. Essa presença não alterou a tendência de declínio dos homicídios identificada quatro anos antes...

O gráfico acima faz parte da obra “Mãe Luiza Construindo Otimismo” (clique aqui) publicada pela editora Gryphus e que contem um romance de Paulo Lins intitulado “A Construção de um Novo Sol”, pelo qual o renomado autor de Cidade de Deus, em diversas entrevistas, vem se considerando contente de ter podido escrever um romance “de favela” com final feliz. (então não é coisa de loucos).

Sei que o ministro Flávio Dino, o deputado Boulos, a ministra Ana Moser, figuras que me inspiram respeito e por quem só tenho elogios têm muito mais o que fazer do que de ler esse artigo. 

Se lessem poderiam entender que é fácil e barato mudar a sociedade para melhor com uma rede robusta de equipamentos sociais para quem está exposto a toda sorte de vulnerabilidades sociais e à violência. Se lessem poderiam ajudar o Brasil a ir deixando para trás esse maldito século dezoito.

 

 

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